As divergências entre os católicos alemães e o Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli

Fonte: Facebook Der Synodale Weg

02 Março 2022

 

A distância entre Roma e a Alemanha é tão clara agora sob Francisco quanto era em relação a João Paulo II e Bento XVI, e o Synodale Weg é um desafio direto à ênfase do atual papa no “processo sinodal”.

 

A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Commonweal, 28-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O Synodale Weg (“Caminho Sinodal”) da Alemanha, liderado pela Conferência dos Bispos da Alemanha e pelo Comitê Central dos Leigos Católicos Alemães (ZdK), que se reuniu pela terceira vez em fevereiro, foi provavelmente um momento decisivo no processo sinodal da Igreja alemã.

 

Cerca de 230 delegados, leigos, leigas e clérigos, debateram e votaram mais de uma dezena de documentos produzidos por grupos de trabalho em quatro áreas: poder na Igreja; o modelo de sacerdócio; mulheres e ministérios; e moral sexual no ensino da Igreja.

 

Cada um dos documentos obteve a aprovação de mais de dois terços de todos os delegados (variando de 74% a 92%) e pouco mais de dois terços dos bispos. Além de votar, alguns bispos fizeram até algumas intervenções ousadas em favor da mudança doutrinal (se tivessem falado assim quando ainda eram padres, provavelmente nunca teriam se tornado bispos).

 

Um conjunto separado de textos que receberam uma segunda leitura também foi aprovado. Eles pedem mais transparência no uso do poder na Igreja e um órgão leigo de tomada de decisões para compilar listas de potenciais candidatos a bispos a serem enviadas ao Vaticano, junto com o colégio de cônegos da catedral, uma tradição alemã amplamente reduzida pelo Vaticano nas últimas décadas.

 

O primeiro grupo de documentos aprovados pede uma reavaliação doutrinal sobre a homossexualidade e a bênção de todos os casais na Igreja, incluindo católicos divorciados e recasados, e casais do mesmo sexo. Eles defendem o desenvolvimento da ideia de “amor conjugal” no Catecismo e uma revisão do ensinamento sobre a contracepção; a admissão de padres casados na Igreja Católica Romana pelo papa ou por um futuro concílio, seguindo os passos do Vaticano II; e uma reflexão sobre o acesso de homens e mulheres aos ministérios ordenados (diaconato e sacerdócio). Há também pedidos para que o papa permita que os padres católicos se casem permanecendo no ofício – uma proposta aprovada por 86% dos delegados.

 

Se aprovadas no fim do Sínodo nacional da Alemanha em meados deste ano, as propostas serão apresentadas como contribuições para o processo sinodal global lançado pelo Papa Francisco em outubro de 2021 e que culminará no Sínodo dos Bispos em Roma em outubro de 2023. Elas não serão automaticamente adotadas pela Igreja na Alemanha, mas é difícil imaginar um futuro para o catolicismo na Alemanha sem que pelo menos algumas das mudanças recomendadas pelo Synodale Weg sejam implementadas.

 

“Eu espero que os bispos implementem aquilo que o Papa Francisco começou no início de seu pontificado: encontrar soluções descentralizadas e, assim, abrir caminhos para um futuro poderoso para a Igreja na Alemanha”, disse o presidente do Synodale Weg, Irme Stetter-Karp.

 

“Esperar que a Igreja universal resolva problemas que temos que enfrentar por conta própria localmente não é a nossa expectativa como Comitê dos Católicos Alemães. Temos que agir aqui por conta própria. Ninguém pode tirar isso de nós. Nem mesmo o papa.”

 

A estrutura do “Caminho Sinodal” da Alemanha diz muito sobre a singularidade do catolicismo alemão, incluindo o fato de que a sua presidente é uma mulher. Stetter-Karp é também cientista social com uma vasta experiência de liderança em instituições de caridade católicas e presidente do Comitê Central dos Católicos Alemães. Os dois vice-presidentes são o bispo de Osnabrück, Franz-Josef Bode, e o respeitado estudioso do Novo Testamento Thomas Söding.

 

 

O modo como o Synodale Weg surgiu também é ilustrativo. Ele surgiu a partir das trajetórias cada vez mais divergentes entre a Igreja Católica progressista na Alemanha (bispos, teólogos e leigos) e o Vaticano, especialmente sob João Paulo II.

 

A explosão do escândalo dos abusos sexuais durante o pontificado de Bento XVI também foi um fator em seu desenvolvimento. A defesa pública desafiadora de mudanças no ensino da Igreja sobre a homossexualidade – incluindo as bênçãos de casais do mesmo sexo em maio de 2021 e a saída de mais de uma centena de clérigos e funcionários católicos gays em janeiro – é obviamente expressiva do porte desse deslocamento.

 

Revelações sobre o modo como o então arcebispo Ratzinger lidou com casos de abuso em Munique entre 1977 e 1982, e a sua carta de desculpas de fevereiro foram recebidas com raiva. Mas muitos católicos alemães progressistas também são cada vez mais críticos ao pontificado de Francisco, especialmente em relação à decisão de deixar no cargo os bispos que geriram mal os casos de abuso (em Colônia, Hamburgo e Munique).

 

Antigamente, havia lideranças como o cardeal Karl Lehmann (1936-2018) que conseguiam manter a Igreja alemã e Roma juntas. Mas bispos com esse tipo de carisma são mais difíceis de encontrar agora.

 

A saída de Angela Merkel também complicou as coisas. Desde o início de seu mandato como chanceler, ela estava atenta ao papel público da religião. Em 2010, após revelações sobre os abusos sexuais clericais, ela interveio para evitar a escalada das tensões entre a Igreja e o Estado.

 

O novo governo, liderado pelo social-democrata Olaf Scholz, que deixou a Igreja Luterana anos atrás, em coalizão com o secularista Partido Liberal (FDP) e os Verdes, deixou a Igreja Católica na Alemanha em uma posição diferente em relação aos 17 anos anteriores. A crise dos abusos continua alimentando aqueles que buscam uma desestabilização e uma separação entre Igreja e Estado na Alemanha, o que teria consequências cataclísmicas, incluindo financeiras e econômicas.

 

O catolicismo estadunidense diverge de Roma à sua maneira, mas não se parece em nada com a Igreja Católica na Alemanha, que é unificada e dotada de uma grande legitimidade institucional. Não é que as propostas adotadas sejam tão especiais, já que refletem as sensibilidades de muitos católicos hoje, na Alemanha e em outros lugares. Mas o sínodo alemão estabelece um caminho especial para o modo como tais propostas são debatidas e aprovadas.

 

 

Seu trabalho estava em andamento antes de Francisco lançar o processo sinodal de 2021-2023 e está se desenvolvendo de uma forma democrática, distinta do entendimento romano de sinodalidade. O sínodo alemão está expressando, e com mais legitimidade popular e clareza teológica, aquilo que muitos católicos pensam há algum tempo e que agora começaram a dizer em público, incluindo lideranças como o cardeal Jean-Claude Hollerich, presidente das conferências episcopais europeias (Comece), que foi nomeado por Francisco em julho de 2021 como “relator geral” do sínodo de 2023.

 

A distância entre Roma e a Alemanha é tão clara agora sob Francisco quanto era em relação a João Paulo II e Bento XVI, e o Synodale Weg é um desafio direto à ênfase do atual papa no “processo sinodal”. Primeiro, seu método é mais parlamentar do que a abordagem de discernimento que Francisco prefere. Em segundo lugar, em sua ênfase na revisão da doutrina sobre questões como o ministério ordenado, ele se afasta da ênfase de Francisco no aspecto espiritual do momento sinodal, em uma reunião pastoral do povo de Deus.

 

 

Além disso, o sínodo alemão expressa uma cultura católica que se baseia na teologia acadêmica e nos sistemas institucionais de representatividade dos leigos; ele está enraizado no Vaticano II, mas sem escrúpulos quanto à compatibilidade entre a modernidade e a fé cristã. Ele representa uma teologia progressista na Alemanha (ao contrário do catolicismo liberal nos Estados Unidos, por exemplo) que não se baseia nas posições de Francisco sobre justiça social e econômica. É uma cultura teológica com a qual Jorge Mario Bergoglio interagiu brevemente em 1986, quando decidiu abandonar seu projeto de tese de doutorado.

 

Mas, em algum momento, o caminho alemão e o caminho romano terão que interagir. A esperança é que essas diferentes abordagens à reforma se unam de alguma forma, em vez de colidirem.

 

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