Ética e direitos sexuais

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22 Junho 2021

 

Evidenciar que os direitos sexuais – compostos por um conjunto de direitos relacionados à sexualidade – emanam dos direitos humanos e constituem, junto com eles, a melhor categoria atual para expressar a dignidade e a causa do ser humano – é a proposta da obra Ética e direitos sexuais: cidadania, inclusão, saúde sexual, autonomia, diversidade, dignidade, liberdade, humanização, direitos humanos, responsabilidade, direito democrático da sexualidade (Ideias e Letras, 2021, 184 p.), de autoria do Dr. Ronaldo Zacharias.

A resenha do livro é de Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Segundo ele, "o livro está estruturado em quatro partes. Cada uma das partes visa fundamentar a eticidade e a liceidade de uma proposta de vivência democrática, responsável e emancipatória da sexualidade". 

 

Eis o artigo.

 

Evidenciar que os direitos sexuais – compostos por um conjunto de direitos relacionados à sexualidade – emanam dos direitos humanos e constituem, junto com eles, a melhor categoria atual para expressar a dignidade e a causa do ser humano – é a proposta da obra Ética e direitos sexuais: cidadania, inclusão, saúde sexual, autonomia, diversidade, dignidade, liberdade, humanização, direitos humanos, responsabilidade, direito democrático da sexualidade (Ideias e Letras, 2021, 184 p.), de autoria do Dr. Ronaldo Zacharias.

Para uma maior clareza sobre a relação existente entre direitos humanos e direitos sexuais, o referido autor, reafirma “que os direitos são sempre direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que homens e mulheres travaram por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem” (p. 160). Em vista disso “os direitos sexuais são a expressão mais clara de que o que está em jogo não são apenas os direitos dos indivíduos, mas direitos da humanidade em seu conjunto e nos seus diferentes níveis” (p. 162). Por isso, segundo o autor, o direito democrático da sexualidade exigirá a educação em sexualidade como o “modo mais eficaz de combater a desigualdade, a discriminação, a indiferença, a exclusão, a violência e a injustiça” (p. 164).

O livro está estruturado em quatro partes. Cada uma das partes visa fundamentar a eticidade e a liceidade de uma proposta de vivência democrática, responsável e emancipatória da sexualidade.

No primeiro capítulo, “Dignidade humana: um a priori ético” (p. 15-30), Zacharias reflete sobre o significado de a dignidade humana ser um a priori ético, a priori esse que deve se expressar em formulações jurídicas que assegurem o respeito à dignidade e, ao mesmo tempo, a defesa dos direitos fundamentais do humano (cf. p. 15-24). O centro desse capítulo; portanto, é deixar claro o que significa ser a dignidade um a priori ético. Diante disso Zacharias destaca que “assumir a dignidade é um a priori ético significa reconhecer que a dignidade ética do ser humano não pode ser explicitada em toda a sua riqueza de significado e ação por nenhuma formulação jurídica. É, portanto, esse a priori que deve fazer com que sejam encontradas formulações jurídicas de direitos que permitam a realização da pessoa humana, livre e responsável” (p. 19).

O autor defende ainda que “para compreendermos mais profundamente a relação existente entre dignidade humana e direitos humanos é preciso considerar a diferença entre um bem e um valor” (p. 24). O “bem é uma realidade pré-moral, isto é, uma realidade que existe independentemente da conduta e da vontade da pessoa, adquirindo moralidade quando há relação e intencionalidade para com ele” (p. 25). Por sua vez, o valor é uma “qualificação do objeto em relação e da intencionalidade dada a ele” (p. 25), resultando as seguintes conclusões práticas: a) a dignidade não pode ser reduzida a uma característica artificial atribuída de forma consensual ao ser humano; b) o conceito de dignidade pode ser meramente abstrato se for reduzido a um imperativo válido para todos, segundo o qual ninguém ode ser tratado como meio, mas deve ser sempre considerado como fim em si mesmo; c) a dignidade humana, embora possa ser assumida como princípio que orienta uma série de acordos sobre a promoção do humano, pode ser considerada um critério de interpretação a favor do sentido mais amplo dos direitos humanos; d) os direitos humanos levam em conta o que a pessoa deveria ser, isto é, o ideal de pessoa humana e, consequentemente, de vivência humana; e) o fato de os direitos humanos evoluírem durante a história não significa que eles sejam relativos. Eles podem adquirir novos conteúdos à medida que mudam as circunstâncias socioculturais e a compreensão científica sobre o ser humano, assim como determinados fenômenos; f) o lugar a partir de onde se elabora a reflexão sobre os direitos humanos condiciona, e muito, o modo de ver e interpretar a realidade (cf. p. 26-30).

No segundo capítulo, Sexualidade humana: a pessoa sexual (p. 31-51), Zacharias destaca que para podermos compreender bem o significado de os direitos sexuais serem promovidos e assegurados a todas as pessoas, é importante que nos detenhamos no significado de duas dimensões que são constitutivas da personalidade: a sexualidade a orientação afetivo-sexual (cf. p. 31). Assim sendo, neste capítulo, o autor, num primeiro momento, explicita o significado da sexualidade e da orientação afetivo-sexual (cf. p. 33-39); em seguida aborda-se o significado ético da sexualidade e da orientação afetivo-sexual (cf. p. 39-46) e, por fim, o respeito à pessoa sexual e ao seu direito de autorrealização (p. 47-51). Abordando a sexualidade e a orientação afetivo-sexual como dimensões constitutivas do ser humano, Zacharias evidencia o significado ético que deriva do respeito à pessoa sexual e ao seu direito de autorrealização, usufruindo de todos os direitos sexuais como parte do processo de desenvolvimento.

No terceiro capítulo, Direitos sexuais: direitos humanos relacionados à sexualidade (p. 53-84), tendo-se em conta que boa parte do século XX ficou muito conhecida como a era em que diversos movimentos lutaram por direitos humanos relacionados à sexualidade, o autor, busca esclarecer o significado da expressão “direitos sexuais”, salientado que tais direitos são o resultado de um caminho que alcançou visibilidade através dos movimentos de liberação sexual, com os movimentos de mulheres contrários à desigualdade social, à violência e ao abuso sexual e as organizações de gays e lésbicas (cf. p. 55-65). Assumindo a lista de direitos sexuais propostas pela International Planned Parenthood Federation (IPPF) e pela World Association for Sexual Health (WAS), (p. 65-79) – Zacharias acredita serem elas as mais apropriadas para os profissionais que trabalham com sexualidade –, são propostos alguns desafios e compromissos que ajudam a compreender melhor a importância de abordar o tema na perspectiva de um direito democrático da sexualidade (p. 79-84). As páginas deste terceiro capítulo deixam claro como se deu a evolução do processo de compreensão dos direitos sexuais e como eles contribuíram para a afirmação da dignidade, liberdade e igualdade entre todas as pessoas.

No quarto capítulo, Por uma vivência democrática da sexualidade (p. 85-159), o autor propõe uma leitura ética dos direitos sexuais, mostrando a importância de que tais direitos se abram a uma perspectiva ética que os interpele sobre o grau desumanização que proporcionam e favorecem. Os direitos sexuais são considerados, aqui, não tanto numa perspectiva de proteção de identidades e liberdades particulares, mas a partir de uma perspectiva mais ampla, que garanta que todos tenham acesso a condições que permitam a expressão da sexualidade livre de qualquer forma de coerção, discriminação, injustiça ou violência. A análise de tais direitos é feita à luz de quatro princípios éticos fundamentais: autonomia, liberdade, responsabilidade e igualdade.

Zacharias esclarece que “os direitos sexuais não se referem apenas aos direitos dos indivíduos, mas, sobretudo, aos direitos da humanidade em seu conjunto e nos diferentes níveis. Se tais direitos, nascidos no contexto de luta e reinvindicações dos movimentos feministas, foram, num primeiro momento, resultado das realidades sociais de discriminação sexista e de violência e das questões relativas à saúde reprodutiva, hoje são reivindicados como direitos de todos, isto é, direito democrático da sexualidade, e por, isso mesmo, devem contar com uma abordagem jurídica que responda aos desafios teóricos e práticos que as orientações, expressões, práticas e identidades associadas à sexualidade produzem no contexto das sociedades democráticas contemporâneas” (p. 85).

Tendo presente tais elementos, o autor aprofunda uma questão-chave: a relação entre direitos sexuais e cidadania (p. 86-94). É fundamental compreender essa questão. Segundo Zacharias o entendimento dela facilitará compreender porque um direito democrático da sexualidade tem de partir do pressuposto de que todas as pessoas são sujeitos de direitos, e não apenas objetos de regulamentação, tais como, muitas vezes, são consideradas as mulheres, as crianças, os adolescentes, os homossexuais, os transexuais etc. “Afirmar alguns princípios básicos para discernir o que humaniza ou desumaniza a pessoa pressupõe que o ponto de partida da reflexão seja a vulnerabilidade, e não a vitimização dos sujeitos” (p. 97).

Na Apresentação (p. 7-10) desta obra, Maria Inês de Castro Millen – a médica ginecologista e obstetra, Doutora em Teologia Moral – destaca que afirmar a existência de um direito democrático da sexualidade é uma questão nova entre nós – daí a relevância e a importância desta Obra – e, por isso, “ela deve estar inclusa entre as mais necessárias não apenas para aqueles que estudam e trabalham no campo da sexualidade quanto para todos os que desejam adquirir conhecimento e ter clareza sobre o assunto” (p. 8). Destaca ainda que “um dos seus méritos é desmistificar e colocar no seu devido lugar vários temas considerados indesejáveis, difíceis de ser digeridos em certos contextos, por causa dos preconceitos e das ideologias criadas e sustentadas por muitos: questões de gênero, orientação sexual, educação em sexualidade, direitos sexuais, cidadania sexual, emancipação sexual” (p. 8).

Da minha parte, concordo com Maria Inês: esta Obra é um marco referencial, de “qualidade indiscutível”, que chega em boa hora, não apenas pelo tratamento honesto e profundo dado ao tema, como também pelas “incontestáveis fundamentações apresentadas”.

 

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