Rogar a Deus para que nos livre de Deus

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23 Outubro 2021

 

"Pensa-se em Deus ... não pensando nele, mas vivendo-o. Por isso, rogo a Deus para me livre de Deus", escreve Paolo Gamberini, jesuíta, capelão da Universidade La Sapienza, Roma, em artigo publicado por Settimana News, 06-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O que é a oração? Uma conversa com Deus ou permanecer em silêncio diante da Presença?

 

Aqueles que há anos estão tendo experiência de uma forma de oração de quietude, anicônica e silenciosa, terão notado como a oração passa lentamente da forma dialógica à da presença.

 

Poderíamos dizer em termos apropriados: de uma forma "pessoal" a uma forma "transpessoal".

 

É importante ter em mente que a questão da oração - se Deus responde às orações e se ele nos ouve quando oramos - está ligada a como entender a natureza divina.

 

Oração: não só diálogo com Deus

 

Ter identificado "a" divindade (o ser divino) com "o" Deus (o ente divino) privou-nos de uma compreensão mais abrangente não só da realidade, mas também restringiu a oração à forma de uma conversa/diálogo com Deus.

 

A natureza divina (divinitas) é comum não apenas ao Deus (deus/trinitas), mas a toda a realidade. Toda a realidade participa do ser divino: das vibrações quânticas às formas mais evoluídas da matéria, até a vida senciente, consciente e autoconsciente. Poderíamos dizer - de acordo com a categoria medieval da "escada" ou cadeia do ser - que todos os seres, dos mais inferiores aos mais superiores (plantas, animais, homens e anjos) participam do ser de Deus. Ipsum esse subsistens.

 

O que é a natureza divina de Deus? É Espírito, é Vida, é atividade criadora que se autotranscende. O espírito é amor, vitalidade e força criadora.

 

Esse espírito é o que torna “o” Deus “ente divino supremo” e todas as criaturas partícipes da natureza divina que é essencialmente “espírito”.

 

A Oração de quietude é aquela forma de oração que transcende a conversa com as pessoas divinas (representações da natureza divina) e ora no espírito, nas profundezas da alma, a Presença na presença. Não é uma forma pessoal e coloquial (Eu-Tu), mas é uma forma trans-pessoal (Presença). É um simples "estar juntos". Por isso - poderíamos dizer - a oração silenciosa da Oração de Quietude é uma forma de Exercícios “espirituais”.

 

A taxis (ordem) da oração - ao Pai pelo Filho no Espírito Santo - colocam a pessoa que ora na direção do Pai com a mediação do Filho encarnado (Jesus de Nazaré) no Espírito Santo. Esta forma de oração coloquial sempre prevê um diálogo com Jesus e às vezes com o Pai.

 

Santo Inácio de Loyola - nos Exercícios Espirituais - também insere Nossa Senhora para tornar a conversa mais articulada. Como se pode ver, não há conversa com o Espírito Santo. Por quê? Minha resposta é precisamente porque é a profundidade/fundo da oração. E esse "fundo" é o que permite que haja uma conversa com Deus Pai e Jesus Cristo. Na Oração de Quietude - paradoxalmente - a pessoa permanece no Espírito sem entrar em conversa com ele. Ultrapassa-se a dimensão pessoal/dialógica da oração e se entra naquela transpessoal.

 

Quando Eckhart diz: "Rogo a Deus que me livre de Deus" (Meister Eckhart, Comentário sobre o Evangelho de João, nº 611), pensamos que ele está dizendo um disparate! Em vez disso, é a pura verdade. A oração do/no profundo é aquela sem mediação de conceitos, imagens e emoções. Embora esses possam e continuem a ir e vir, como nuvens mentais e torrentes interiores, a atenção não é direcionada a eles para examiná-los e observá-los. A presença "na graça" é suficiente. Não existe um conceito/imagem/emoção de Deus e sobre Deus que possa conter Deus, e dizer: Deus está aqui.

 

Na Oração da Quietude, Deus não “está” mais ali, porque há mais do que Deus. A presença no espírito. Como dizia Agostinho: “Se você fala que entende a Deus, o que você entende não é Deus” (Sermão 117.3.5).

 

Só podemos conhecer a Deus quando abrimos mão dos nossos pensamentos sobre Deus e até mesmo do próprio pensamento. Santo Anselmo diz que Deus é aquilo do qual não se pode pensar como maior. Pensa-se sobre Deus ... não pensando nele. Por isso, rogo a Deus que me livre de Deus.

 

A Torre de Pisa: um exemplo para entender

 

Podemos dar um exemplo. Certamente conhecemos a cidade de Pisa. Já vimos alguma panorâmica da cidade com o perfil dos telhados, das torres dos sinos e ali, no centro, a característica da cidade: a torre que se ergue maravilhosa. É a vista mais bonita da cidade de Pisa. É Pisa vista "do chão". Mas poderíamos nos colocar em outro ponto da cidade: ver o perfil dos telhados e das torres dos sinos "da torre de Pisa".

 

Torre de Pisa, Itália. (Foto: Unsplash)

 

A mesma cidade, mas de duas perspectivas diferentes: do chão e da torre. É certamente surpreendente que, da perspectiva da torre, tudo se possa ver da cidade de Pisa, exceto o que “identifica” a cidade de Pisa: sua maravilhosa e majestosa “torre”. Deste ponto de vista, a Torre de Pisa não aparece mais, não se revela.

 

Cidade de Pisa, vista da torre pendente. (Foto: Pom' | Flickr CC)

 

Bem, essa comparação pode nos ajudar a entender o que tentei escrever sobre a Oração da Quietude. A perspectiva "do chão" representa a oração como "conversa" com Deus: é a visão de Deus por parte da criatura. A visão do infinito (genitivo objetivo) de parte do finito. Acreditar em Deus e orar a Ele no do horizonte da "minha" perspectiva, isto é, do chão.

 

Nesse horizonte, Deus é quem dá sentido à realidade, assim como a Torre de Pisa "identifica" a realidade da cidade de Pisa. Eu vejo Deus, compreendo Deus e Deus faz parte do "meu" mundo, da minha vida. Sim, eu acredito em Deus, porque Ele está ali, eu o posso experienciar. Eu falo com ele. Eu falo com Deus (Pai) e com Jesus Cristo, aliás, também com Nossa Senhora. Sim, Deus "está ali"!

 

A perspectiva "da Torre de Pisa", por outro lado, representa a realidade assim como Deus a vê. A visão do infinito (genitivo subjetivo) de parte do infinito. Aqui a criatura "subiu na torre", imagem esta do itinerário de despojamento de todas as imagens, conceitos e emoções sobre Deus, e lenta e pacientemente se deixou identificar com Deus. Gradualmente uniu-se a Deus e tornou-se "uno" com Deus. Não se trata apenas de esforço humano (pelagiano!), mas graça misturada com o humano.

 

Sim, com as suas imagens talvez simples e infantis, assim se expressa Santa Teresinha de Lisieux: “Eu também gostaria de encontrar um elevador para elevar-me até Jesus, pois sou pequena demais para subir a íngreme escada da perfeição. Procurei então, na Sagrada Escritura a indicação do elevador, objeto do meu desejo, e li estas palavras da eterna sabedoria: Quem for pequenino, venha cá; ao que falta entendimento vou falar. Vim, então, adivinhando ter encontrado o que procurava e querendo saber, ó Deus, o que faríeis ao pequenino que respondesse ao vosso chamado. Continuei minhas pesquisas e eis o que achei: Como alguém que é consolado pela própria mãe, assim eu vos consolarei. Sereis amamentados, levados ao colo, e acariciados sobre os joelhos! Ah! nunca palavras mais suaves, mais melodiosas, vieram alegrar minha alma. Vossos braços são o elevador que deve elevar-me até o Céu, ó Jesus! Para isso, eu não preciso crescer, pelo contrário, preciso permanecer pequena, que o venha a ser sempre mais” (História de uma alma, n. 271).

 

Acrescentaria, no entanto, que essa subida com o elevador leva ao topo da torre, e "do céu", isto é, do infinito, na visão de Deus (genitivo subjetivo) vejo toda a realidade. Sim, mas com um pequeno (mas grande) detalhe: uma vez que você está "na torre", Deus desaparece. Não é que Deus tenha se escondido, se escondeu, como banalmente dizem teólogos e doutores espirituais!

 

Viver “em Deus”

 

Deus não desapareceu, mas fui eu que me tornei o que Deus é. Eu sou. Deus "já não" está ali, porque agora "eu sou" Deus. Subir até Deus é, de fato, descer ao nada da criatura, e precisamente ali no "nada" não descobrir nada além de Deus. Deus como não-aliud, "nada de outro". Eu sou Deus, diz “a alma” que, subindo a escada com a graça do elevador, torna-se cada vez mais transparência de Deus, isto é, “espírito”. O sinal de que essa transformação de "alma" em "espírito" está ocorrendo é que Deus "não está mais ali". Já não o se sente mais, pelo contrário, parece-se ter perdido a fé Nele. O nada da criatura se manifesta como a "noite" da alma. E naquela noite ... nasce-se como filho/filha de Deus em Deus, e assim se conhece Deus porque se vem à luz: se nasce divinamente. Conhecer, em francês, é “connaître”, ou seja, nascer-com.

 

Percebemos que não acreditamos mais “em Deus”, que não sabemos mais orar a Ele, justamente porque não o conheço mais no horizonte da “minha” perspectiva, isto é, o chão. Nesse "outro" horizonte, Deus não é mais o que dá sentido à realidade, assim como eu não vejo mais o que "identifica" a realidade da cidade de Pisa do alto da Torre de Pisa. Da Torre de Pisa, Pisa não é mais Pisa. Não vejo mais Deus, não o entendo mais. Deus não faz mais parte do "meu" mundo. Por quê? Talvez não haja mais porquês ou respostas. Ao me tornar “Deus” (divinização), não acredito mais “em” Deus, mas “vivo” Deus. Sou Deus.

 

“O meu 'eu' é Deus; não conheço outro além do meu Deus" [...] "Meu ser é Deus, não só por participação, mas através de sua verdadeira transformação e aniquilação” (p. 51). “Fico assim posta e submersa na fonte do seu imenso amor, como se estivesse no mar toda submersa e em nenhuma parte pudesse tocar, ver ou ouvir, senão apenas água” (Catarina de Genova, “Vita Mirabile", em Vita Mirabile. Dialogo. Trattato sul Purgatorio, Città Nuova, Roma 2004, p. 77).

 

Antes da transformação, ora-se a Deus, depois da transformação ora-se em e através de Deus. Antes da conversão radical, ora-se a Deus como se estivesse em outro lugar, um objeto como todos os outros objetos, um Alguém maior do que os outros. Após a conversão (con-vertere), inicia-se a olhar não em outros lugares, mas de outra forma.

 

A palavra "conversão" em grego é "meta - noia": ir além do pensamento, além do "nous" e até além da noia de pensar sempre as mesmas coisas, mesmo aquelas de Deus. A conversão (metanóia) é uma "transformação", Em grego “metamorfose”: não mais com os meus olhos eu vejo, mas com os olhos de Deus.

 

“O olho através do qual eu vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus são um olho, aquele que vê, aquele que conhece, um amor” (Meister Eckhart).

 

Esta é a "mente de Cristo" (1Cor 2,16), que não é a minha mente como indivíduo, mas é a "nous", o espírito do Cristo cósmico (Ef 4,22). Deus assumiu a carne, a matéria, o corpo e o espírito para que tudo isso se torne cada vez mais uma só coisa com a sua Vida. “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti” (Jo 17,21).

 

Pensa-se em Deus ... não pensando nele, mas vivendo-o. Por isso, rogo a Deus para me livre de Deus.

 

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