17 Junho 2021
"A concentração de riqueza gera a concentração de poder colocando em vulnerabilidade o sistema partidário que passa a ser controlado pelas grandes corporações capitalistas. E é esse poder político que se expressa nas leis de retirada de direitos trabalhistas, de direitos previdenciários, de legitimação da violência armada por parte do Estado, passando a boiada dos ricos por cima do restante da população", escreve Alexandre Aragão de Albuquerque, arte-educador (UFPE), especialista em Democracia Participativa (UFMG) e mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE).
Eis o artigo.
Um dos réquiens mais famosos de todos os tempos foi composto pelo gênio de Wolfgang Amadeus Mozart, em 1791, sendo conhecido como “O Réquiem em Ré Menor”, deixado incompleto devido à sua morte em 5 de dezembro daquele mesmo ano. Réquiem é um gênero musical dedicado a cerimônias fúnebres, aos mortos.
Desde 2016 o Brasil foi apeado em sua Democracia. Uma palavra forte desde os tempos da Grécia Antiga, que se tornou poderosa principalmente depois da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República do Brasil (2003-2016), pelo fato de abranger não apenas o aspecto autorizativo de governos e parlamentos por parte da soberania popular por meio do voto, mas também pela novidade da compreensão e da prática da dimensão democrática participativa, prevista na Constituição Federal, na definição de políticas públicas, como aconteceu, por exemplo, com os orçamentos participativos, os conselhos e conferências temáticas nos níveis municipal, estadual e federal; pela definição de programas voltados para ações afirmativas de distribuição de renda e garantia de direitos, no sentido de corrigir injustiças históricas cometidas pelo Estado brasileiro desde a sua fundação; pela ampla aceitação da diversidade cultural, visando à igualdade e liberdade de atuação dos sujeitos em suas subjetividades. Naqueles 13 anos dos governos petistas, o Brasil se tornou um exemplo mundial de inclusão social.
Contudo, essa ampliação da ação democrática – governo do povo e para o povo – ocasionou a emergência de um ódio exacerbado daqueles que se autoconsideram acima do povo, achando que o povo não pode ter seus direitos constitucionais garantidos e nem ampliados. Para estas pessoas da classe dominante e de setores da classe média, o Brasil era bom quando privilegiava a poucos. Era um país abençoado por Deus. Mas quando os direitos começaram a ser distribuídos ao povo e este passou a ocupar espaços antes destinados apenas às “pessoas de classe” – como as universidades, os restaurantes, as revendedoras de veículos ou os aeroportos – uma orquestrada gritaria se alastrou em sinal de protesto e ódio contra as medidas voltadas a corrigir injustiças estruturais contra os empobrecidos desta nação. Para estes ricos, a Democracia transformou o país num Inferno.
Nunca é demais recordar que a função da ditadura militar de 1964, com amplo apoio dos órgãos de Estado norte-americanos, foi impedir o avanço das pautas populares colocadas em movimento no início dos anos 1960, fazendo com que em 1968, como lembra o valioso estudo intitulado “A ILUSÃO ARMADA” (Cia. das Letras), do jornalista ítalo-brasileiro Elio Gaspari, os generais de então adotassem a tortura como política de Estado, contra todos os oponentes ao regime ditatorial, com a adoção em 13 de dezembro de 1968 do Ato Institucional Número 5 (AI-5). Foram os anos de chumbo: da censura à imprensa; do fechamento do Congresso; das prisões, torturas e assassinatos; do arrocho salarial. O bolo do milagre econômico concentrou-se nas mãos dos mesmos e nunca foi repartido até o fim do regime ditatorial.
Agora, com mais um golpe deflagrado em 2016, em moldes pós-modernos, por meio de uma variedade de estratagemas híbridos, simbólicos, midiáticos, jurídicos e de manifestações populares, com o objetivo de demonizar a política distributiva adotada até então para derrubar o PT do poder, a contradição entre a aparência e essência do discurso da classe dominante foi mais uma vez desnudada.
Na aparência, buscam fundar-se em valores hierárquicos, moralistas e tradicionais. Como outrora, o fator religioso continua a servir de fundamento para estas consciências ditas religiosas para as quais a Democracia é uma abominação, porque continuam proclamando como único fundamento legítimo da organização das comunidades humanas a Lei divina revelada. O controle sobre a ideia de Deus é central para justificar suas ações.
Curiosamente, no estudo de Elio Gaspari há duas situações muito emblemáticas dessa utilização de Deus para justificar a implantação do Estado total no Brasil a partir de 1964. Por um lado, registra o autor que o governador do estado de Minas Gerais, o banqueiro José de Magalhães Pinto, na véspera do golpe, divulgou um manifesto contra o governo do presidente João Goulart, mobilizou sua polícia militar, estocou combustíveis e mantimentos, indo confessar-se com o arcebispo de Belo Horizonte, d. João Resende Costa, dele recebendo uma bênção episcopal especial para “a causa de Minas contra o comunismo”.
Por outro lado, segundo Gaspari, uma das frases-guia de um dos principais mentores do golpe, general Golbery do Couto e Silva, foi retirada do personagem Ivan Karamazov, do autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881): “Deus morreu, tudo é permitido”. Ou seja, a essência está em conceber um Deus dos poderosos para justificar suas ações, deleites, privilégios e violências.
Nisso o jovem Marx (1818-1883) foi genial, não tendo dificuldade alguma para desvendar o reino da plutocracia privada no fundamento normativo das repúblicas emergentes de então. Para o sociólogo alemão, as leis e as instituições da democracia formal (não real) são as aparências por trás das quais se estabelece os instrumentos pelos quais se exerce em essência o poder dos detentores do Capital. A luta contra as aparências tornou-se assim via para se atingir uma democracia real, experimentada na vida material do dia a dia e não de forma abstrata e formalista.
Também em 2016, o filósofo e linguista Noam Chomsky apresentou uma análise sobre os “Dez princípios de concentração da riqueza e do poder”, fatores que estão postos para impedir a mobilidade social, perpetuando a desigualdade. Os dez princípios fundamentais para o autor são:
1. Reduzir a Democracia;
2. Moldar a Ideologia;
3. Redesenhar a Economia;
4. Deslocar para os pobres e para a classe média o fardo de sustentar a sociedade;
5. Atacar a solidariedade;
6. Controlar os reguladores;
7. Controlar as eleições;
8. Manter a ralé na linha;
9. Fabricar consensos, criar consumidores;
10. Marginalizar a população.
A constatação de base de Chomsky é esta: vive-se no mundo de extrema riqueza com super-ricos ladeados por uma imensidão de pobres. Esse 1% da população mundial detém mais riqueza do que todo o resto do mundo junto. São estes os que mandam no globo terrestre. A concentração de riqueza gera a concentração de poder colocando em vulnerabilidade o sistema partidário que passa a ser controlado pelas grandes corporações capitalistas. E é esse poder político que se expressa nas leis de retirada de direitos trabalhistas, de direitos previdenciários, de legitimação da violência armada por parte do Estado, passando a boiada dos ricos por cima do restante da população.
São leis que isentam de impostos os dividendos e lucros dos super-ricos, para sobrecarregarem de impostos os salários dos trabalhadores privados e os proventos dos servidores públicos. Leis desenvolvidas para aumentar a concentração de riqueza e de poder dos capitalistas, gerando uma estrutura de poder, um círculo vicioso. Concepção tão antiga quanto Adam Smith (1723-1790) que em sua “A Riqueza das Nações” já apregoava que os principais arquitetos da política são as pessoas que detêm o poder da sociedade, garantindo que seus interesses sejam bem contemplados, mesmo se forem cruéis os impactos sobre a população.
Se na época de Smith os detentores do poder eram os capitalistas fundiários e industriais, hoje são as corporações financeiras e multinacionais que são os “mestres da humanidade”, conforme a gramática smithiana. A máxima desses poderosos contemporâneos é: “Tudo para nós, nada para os outros”. Por isso forjam governos que garantam globalmente os seus interesses, mesmo prejudicando o restante da população mundial.
A campanha da hidroxicloroquina, num Brasil de 500 mil mortos pela Covid-19, é um exemplo muito nítido da descompostura política visando auferir lucros indecentes por meio da mortandade da população brasileira. Quem sabe ao entoarmos um réquiem tenhamos a possibilidade de sentir em nosso espírito o luto que seja capaz de nos levar à indignação, colocando-nos na luta pela derrubada deste governo escroque. Como lembrava Agostinho de Hipona, “somente um grande amor ou uma grande dor pode nos levar a uma grande transformação”.
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Réquiem para o Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU