Brincar é criar: lições da menina professora

Foto: Libreshot

24 Fevereiro 2021

"O cenário da inovação permanente, obviamente, exige cultura e instituições diferenciadas, ampliando a importância do componente público, tanto no apoio, por exemplo, ao empreendedorismo e às startups (como no financiamento e na criação de parques tecnológicos); quanto, e especialmente, numa forte política de educação, concentrada no ensino básico, mas não apenas", escreve Armando de Melo Lisboa, professor na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

 

Eis o artigo.

 

O problema, no Brasil, é que o real é maior que o possível” (José Bonifácio de Andrada e Silva, 1823).

 

Educar não é encher um balde, mas acende uma chama” (W. Yeats).

 

“Somos maiores que os mundos sociais que habitamos. Os cenários habituais de ação e pensamento, especialmente como organizados pelas instituições e convenções da cultura, são incapazes de nos conter. Embora eles nos modelem, nunca nos modelam completamente. Sempre persiste em nós um resíduo ou um excesso de capacidade indomada e inexaurida” (Roberto Mangabeira Unger).

 

Sem aulas na pandemia, a pequena Érica (12 anos), brincando de escolinha, ergue uma escola apenas com materiais recolhidos do lixão em Coelho Neto, Maranhão [1]. Mais que lecionar para seus amiguinhos, esta menina rompe com os estereótipos e ministra uma tremenda lição para todos nós!!!

 

Érica ensina que todos podemos transpor as mais duras circunstâncias. A mais preciosa liberdade é a liberdade face aos constrangimentos, é a daquele que, mesmo na prisão, não se deixa abater e transcende-a. Ela também demonstra que brincar é um dos grandes fermentos donde brota a imaginação criadora, perfazendo uma emblemática demonstração do quanto “criar é irmão gêmeo do brincar” (Mia Couto) [2].

 

 

O ser humano talvez se defina pela capacidade inovadora, de ir além da asfixiante concretude das contingências, característica que emana da dimensão lúdica e do bom humor, e também advém especialmente pela arte/literatura: como lados do mesmo rio, eles nos fazem enxergar além do óbvio e nos projetam para fora do mundo; nos distanciam do nosso lugar e depois nos devolvem a um “lugar além de nós mesmos” [3].

 

Esta potência humana é a mola propulsora da emergente economia do conhecimento, a prática produtiva mais próxima da imaginação. Este novo modo econômico redesenha os futuros possíveis, expandindo nossas possibilidades, já estando presente em franjas de todos os setores produtivos, e não apenas restrita à indústria de alta tecnologia.

 

A produção intensiva em conhecimento, por se tratar duma economia não aprisionada pelo capital físico, nem insularizada num setor/classe específico, e se exponencializar quando há uma ampla rede colaborativa entre muitos (código aberto), possui um enorme potencial includente. Caminhamos para um mundo policêntrico que se dinamiza e difunde não a partir de um centro, com menor impacto na sua periferia, como aquele das pedras jogadas num lago, mas semelhante ao formado pelas incontáveis ondulações geradas numa chuva, as quais reverberarão amplificadamente quanto mais gotas caírem e maior for a intensidade de cada uma delas, gerando o transbordamento do mesmo.

 

 

Ou seja, quanto mais indivíduos qualificados tivermos, as sinapses exigidas na produção do conhecimento ocorrerão com maior ressonância e frequência, ampliando o efeito sinérgico e multiplicador das mesmas, tornando mais apto o país para surfar na nova economia da inovação. E, quanto maior for a população destes indivíduos, mais inclusiva será esta nova expansão econômica. Esta é a promessa da economia do conhecimento.

 

Ocorre que “o futuro já chegou, só não está igualmente distribuído” (W. Gibson). Isto é, a destruição criativa perfaz mudanças em velocidade tão alucinante (Lei de Moore) [4], que se superpõem eras diferentes conforme os estratos geracionais e de classe da população, experiência humana nunca vivida por uma mesma geração. Face ao efeito de “aprisionamento tecnológico”, alavanca para erigir posições monopolísticas, algumas empresas em poucos anos tornam-se verdadeiros impérios (big techs), o que acaba esmorecendo a própria inovação e arrefecer o crescimento da produtividade e do bem estar. Disto resulta que a economia do conhecimento, ainda que disseminada em toda economia, permanece insulada e restrita à vanguardas, aprofundando, até o presente, a distância entre os extremos da sociedade, inclusive nos países mais ricos.

 

Estes ruídos e as muitas interrogações da revolução digital (como a da redução do assalariamento) exacerbam antigos problemas e trazem novos desafios, fazendo-a ressoar de modo enigmático e controverso. Apesar disto, é inegável que, dentro do novo paradigma de desenvolvimento, o que alavanca a riqueza nacional não é mais a coercitiva extração de um excedente social, mas a inovação permanente advinda da qualidade e criatividade de seu povo [5]. Com a crescente evolução dos algoritmos (inteligência artificial), robotização e consequente ultrapassagem do fordismo, os baixos salários dos países emergentes e subdesenvolvidos não mais atrairão investimentos, o que comprometerá ainda mais seu porvir.

 

 

O cenário da inovação permanente, obviamente, exige cultura e instituições diferenciadas, ampliando a importância do componente público, tanto no apoio, por exemplo, ao empreendedorismo e às startups (como no financiamento e na criação de parques tecnológicos); quanto, e especialmente, numa forte política de educação, concentrada no ensino básico, mas não apenas. Ora, a percepção de que o futuro de um país reside no grau de educação de sua população sempre foi a grande lição iluminista. Países que fizeram o dever-de-casa prosperaram e hoje se beneficiam da nova revolução econômica.

 

Neste contexto, é inadmissível permanecermos como uma “máquina de gastar gente” (Darcy Ribeiro), pois as contemporâneas e monumentais privações são uma anomalia incompatível com a nova economia, para além da sua toxidade moral. Aqui a máxima acima de José Bonifácio descortina nossos dilemas: padecemos é de pobreza espiritual, de uma imaginação castradora e aquém das nossas possibilidades.

 

Em grande parte, esta cegueira deriva da falta de empatia das elites de Pindorama para com o andar de baixo, a qual acaba depreciando o imenso potencial brasileiro, país cuja população é louvada por sua riquíssima inventividade, como expressa cristalinamente o exemplo de Érica. Elites são inescapáveis e necessárias em qualquer sociedade. Mas, para cumprir seu papel, cabem estar sintonizadas no “Brasil real”. Todavia, nossas elites, em geral, com sua tacanha imaginação, pervertem a própria ideia de "elite", fazendo jus à precisa definição de Jessé Souza: "elites do atraso". Estas perpetuam as taras que originaram este país, nascido como um negócio aventureiro, brutal e dilapidador. Advindas da obscurantista colonização portuguesa [6], elas ainda permanecem usando a terra "como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída", como dissecou em 1627 Fr. Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador.

 

No meio de tanta maldade e pequenez, Érica, com sua versatilidade, eloquência, doçura, inteligência e precoce maturidade, revela o lado melhor do Brasil, o mesmo lado que Machado de Assis, em 1861, distinguiu como o do “país real” – "esse é bom, revela os melhores instintos" – diferenciando-o do oficial, "caricato e burlesco".

 

 

Não cabe absolutizar e romantizar o pólo popular, o que estreitaria e empobreceria as possiblidades históricas. Mas, não resta dúvida que não é mais possível adiar a resolução do catastrófico desencontro entre estes Brasis. Como é sabido, nossa deprimente originalidade é sermos um país sem nação, a qual pressupõe um povo na sua constituição. Sua ausência foi lapidarmente registrada por Alberto Torres em 1902: “este Estado não é uma nacionalidade, esse país não é uma sociedade, essa gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos.”

 

Historicamente, o povo nunca fez parte da construção nacional. Revela José Murilo de Carvalho [7] que as grandes imagens do Brasil concebidas por suas elites evoluíram da “ausência de povo”, para a “visão negativa” deste, e por fim para a “visão paternalista do povo”. Em todas estas visões as nações eram grotescamente fictícias.

 

A contemporânea encruzilhada da história, agudizada pela urgência da superação da presente calamidade sanitária, econômica e política, impõe, caso queiramos ter um lugar minimamente decente e competitivo globalmente, a superação da absurda contradição duma nação sem povo. Assim como Érica, com sua Escolinha da Esperança construída com cacos abandonados em lixões, é momento de, com as nossas ruínas continentais, reinventar o Brasil. A refundação deste país exige audácia e criatividade, e ela passa pelo ventre das periferias, por Anitas, Antônios e Antonietas; Carolinas, Cândidos e Conceições. Éricas, Edsons e Elzas; Marias, Machados e Manés. Jurunas, Paraguaçus e Raonis; Zezés, Zicas e Zumbis ... O contraste delas com os líderes do Brasil oficial é absoluto!

 

Estes nomes são legiões, mas, no Brasil de selva, Silvas e Marias, não custa lembrar entre tantos e tantas:

 

"Anitas": a Garibaldi, e a cantora;

"Antonios": um aleijado, outro conselheiro;

"Antonietas": a Barros (primeira deputada catarinense);

"Carolinas": de Jesus;

"Cândidos": o da chibata, e o Marechal;

"Conceições": a Evaristo;

"Edsons": um tal Arantes do Nascimento;

"Machados": o fundador da Academia Brasileira de Letras;

"Zezés": a Motta, e o Preto (Presidente da CUFA)

"Zicas": a Assis (fundadora da Beleza Natural);

"Elzas, Manés e Zumbis; Jurunas, Paraguaçus e Raonis": precisa explicar?

 

Referências

[1] Neyara Pinheiro - Uma aula de esperança! Disponível aqui.

[2] Neyara Pinheiro 100 script. Disponível aqui.

[3] Para uma compreensão antropológico-filosófica da natureza lúdica da condição humana a obra clássica é a de Johan Huizinga: “Homo ludens” (1938). Um atual balanço de como “a brincadeira se torna sementeira para muitas inovações” (p. 23) encontra-se no livro “O poder inovador da diversão” (2017), de Steven Johnson.

[4] Eliane Brum: “Brasil, construtor de ruínas”, p. 176.

[5] Em 1965 Gordon Moore concluiu que o poder de processamento dos dispositivos eletrônicos dobra a cada dezoito meses, com os mesmos custos, ou melhor, com queda vertiginosa dos custos relativos. Desde então observa-se o desenvolvimento exponencial da tecnologia computacional.

[6] Cf. Mangabeira Unger: “A economia do conhecimento” (2018).

[7] Em contraste, o domínio espanhol na América, ainda que também colonizador, se organizou através de vice-reinados, erguendo desde meados do século XVI universidades em todas as capitais regionais.

[8] ”Brasil, nações imaginadas”, in: “Pontos e bordados”, p. 233.

 

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