Quando a casa está queimando. Artigo de Giorgio Agamben

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10 Novembro 2020

Vivemos em casas, em cidades que queimaram de cima a baixo, como se ainda estivessem de pé. As pessoas fingem que moram nelas e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, quase como se ainda fossem os familiares bairros de antigamente. E agora a chama mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso ainda está mais perto, está ao nosso redor e nos cerca a todo instante.

 

A opinião é do filósofo italiano Giorgio Agamben, em artigo publicado em Quodlibet, 05-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Segundo ele, "o rosto é o que há de mais humano, o homem tem um rosto e não simplesmente um focinho ou uma cara, porque mora no aberto, porque no seu rosto se expõe e se comunica. Por isso, o rosto é o lugar da política. O nosso tempo impolítico não quer ver o próprio rosto, mantém-no à distância, mascara-o e cobre-o. Não deve haver mais rostos, mas apenas números e cifras. O tirano também não tem rosto".

 

"Nos próximos anos, haverá apenas monges e delinquentes", afirma o filósofo italiano.

 

Eis o texto.

 

“Tudo o que eu faço não tem sentido se a casa está queimando.” No entanto, precisamente enquanto a casa está queimando, é preciso continuar como sempre, fazer tudo com cuidado e precisão, talvez até mais meticulosamente – mesmo que ninguém perceba. Pode ser que a vida desapareça da terra, que nenhuma memória permaneça daquilo que foi feito, para o bem ou para o mal. Mas você continua como antes, é tarde para mudar, não há mais tempo.

 

 

“O que acontece ao seu redor / não é mais da sua conta.” Como a geografia de um país que você deve deixar para sempre. No entanto, de que modo isso ainda lhe diz respeito? Precisamente agora que não é mais da sua conta, que tudo parece acabado, todas as coisas e todos os lugares aparecem na sua veste mais verdadeira, tocam-lhe mais de perto de algum modo – assim como são: esplendor e miséria.

 

A filosofia, língua morta. “A língua dos poetas é sempre uma língua morta... curioso dizer isso: língua morta que se usa para dar mais vida ao pensamento.” Talvez não uma língua morta, mas um dialeto. O fato de a filosofia e a poesia falarem em uma língua que é um pouco menos do que a língua dá a medida do seu grau, da sua vitalidade especial. Pesar, julgar o mundo medindo-o com um dialeto, com uma língua morta e, no entanto, fontal, onde não há nem vírgula para mudar. Continue falando esse dialeto, agora que a casa está queimando.

 

 

Qual casa está queimando? O país onde você vive, ou a Europa, ou o mundo inteiro? Talvez as casas, as cidades já queimaram, não sabemos há quanto tempo, em uma única imensa fogueira, que fingimos não ver. De algumas, restam apenas pedaços de parede, uma parede com afrescos, uma aba do telhado, nomes, muitíssimos nomes, já tocados pelo fogo. No entanto, nós os cobrimos de novo tão cuidadosamente com gesso branco e palavras falsas que parecem intactos. Vivemos em casas, em cidades que queimaram de cima a baixo, como se ainda estivessem de pé. As pessoas fingem que moram nelas e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, quase como se ainda fossem os familiares bairros de antigamente.

 

E agora a chama mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso ainda está mais perto, está ao nosso redor e nos cerca a todo instante.

 

 

O fato de uma civilização – uma barbárie – se afundar para não mais se levantar já ocorreu antes, e os historiadores estão acostumados a marcar e a datar cesuras e naufrágios. Mas como podemos testemunhar um mundo que se arruína com os olhos vendados e o rosto coberto, uma república que desaba sem lucidez nem orgulho, em abjeção e medo? A cegueira é ainda mais desesperadora, porque os náufragos fingem governar seu próprio naufrágio, juram que tudo pode ser mantido tecnicamente sob controle, que não há necessidade de um novo deus nem de um novo céu – apenas de proibições, de especialistas e de médicos. Pânico e sem-vergonhice.

 

O que seria um Deus a quem não se dirigissem nem orações nem sacrifícios? E o que seria uma lei que não conhecesse nem mandato nem execução? E o que seria uma palavra que não significa nem manda, mas se mantém verdadeiramente no princípio – ou, melhor, antes dele?

 

 

Uma cultura que se sente no fim, sem mais vida, tenta governar a sua ruína como pode, por meio de um estado de exceção permanente. A mobilização total na qual Jünger via o caráter essencial do nosso tempo deve ser vista nessa perspectiva. Os homens devem ser mobilizados, devem se sentir a cada instante em uma condição de emergência, regulada nos mínimos detalhes por quem tem o poder de a decidir. Mas, enquanto a mobilização no passado tinha o propósito de aproximar os homens, agora ela visa a isolá-los e a distanciá-los uns dos outros.

 

Há quanto tempo a casa está queimando? Há quanto tempo queimou? Certamente, um século atrás, entre 1914 e 1918, algo ocorreu na Europa que jogou nas chamas e na loucura tudo aquilo que parecia restar de íntegro e vivo; depois, novamente, 30 anos depois, o fogo se espalhou por toda a parte e, desde então, não deixou de arder, sem trégua, submisso, quase invisível debaixo das cinzas. Mas talvez o incêndio começou ainda muito antes, quando o cego impulso da humanidade rumo à salvação e o progresso se uniu ao poder do fogo e das máquinas. Tudo isso é conhecido e não é preciso repetir. Em vez disso, é preciso se perguntar como pudemos continuar vivendo e pensando enquanto tudo estava queimando, o que restava de algum modo íntegro no centro da fogueira ou nas suas margens. Como conseguimos respirar entre as chamas, o que perdemos, a que destroço – ou a que impostura – nos apegamos.

 

 

E agora que não há mais chamas, mas apenas números, cifras e mentiras, estamos certamente mais fracos e sozinhos, mas sem possíveis compromissos, lúcidos como nunca antes.

 

Se apenas na casa em chamas é que se torna visível o problema arquitetônico fundamental, então agora você pode ver o que está em jogo na história do Ocidente, o que ela tentou apreender a todo o custo e por que só poderia fracassar.

 

É como se o poder tentasse aferrar a todo o custo a vida nua que produziu; no entanto, por mais que se esforce para se apropriar dela e controlá-la com todos os dispositivos possíveis, não mais apenas policialescos, mas também médicos e tecnológicos, ela só poderá fugir deles, porque é por definição inaferrável. Governar a vida nua é a loucura do nosso tempo. Homens reduzidos à sua pura existência biológica não são mais humanos, governo dos homens e governo das coisas coincidem.

 

A outra casa, aquela em que nunca poderei habitar, mas que é a minha verdadeira casa, a outra vida, aquela que não vivi enquanto acreditava que a estava vivendo, a outra língua, que soletrei sílaba por sílaba sem nunca conseguir falá-la – tão minhas que nunca poderei tê-las...

 

 

Quando pensamento e linguagem se dividem, crê-se que é possível falar esquecendo que se está falando. Poesia e filosofia, enquanto dizem algo, não esquecem que estão dizendo, recordam a linguagem. Se nos recordamos da linguagem, se não nos esquecermos de que podemos falar, então somos mais livres, não somos forçados às coisas e às regras. A linguagem não é um instrumento, é o nosso rosto, o aberto em que estamos.

 

O rosto é o que há de mais humano, o homem tem um rosto e não simplesmente um focinho ou uma cara, porque mora no aberto, porque no seu rosto se expõe e se comunica. Por isso, o rosto é o lugar da política. O nosso tempo impolítico não quer ver o próprio rosto, mantém-no à distância, mascara-o e cobre-o. Não deve haver mais rostos, mas apenas números e cifras. O tirano também não tem rosto.

 

Sentir-se vivendo: ser afetado pela própria sensibilidade, ser delicadamente entregue ao próprio gesto sem poder assumi-lo nem evitá-lo. Sentir-me vivendo torna a minha vida possível, mesmo que eu estivesse preso em uma gaiola. E nada é tão real quanto essa possibilidade.

 

Nos próximos anos, haverá apenas monges e delinquentes. No entanto, não é possível simplesmente dar um passo para o lado, acreditar que é possível sair dos escombros do mundo que desabou ao nosso redor. Porque o colapso nos diz respeito e nos apostrofa, nós também somos apenas um desses escombros. E teremos que aprender com cautela a usá-los do modo mais justo, sem sermos notados.

 

 

Envelhecer: “Crescer apenas nas raízes, não mais nos ramos”. Afundar nas raízes, sem mais flores nem folhas. Ou, melhor, como uma borboleta bêbada, voar sobre aquilo que foi vivido. Ainda há ramos e flores no passado. E ainda é possível fazer mel com eles.

 

O rosto está em Deus, mas os ossos são ateus. Lá fora, tudo nos leva para Deus; por dentro, o obstinado e zombeteiro ateísmo do esqueleto.

 

O fato de a alma e o corpo estarem indissoluvelmente ligados – isso é espiritual. O espírito não é um terceiro entre a alma e o corpo: é apenas a sua inerme e maravilhosa coincidência. A vida biológica é uma abstração, e é essa abstração que se pretende governar e curar.

 

Para nós, sozinhos, não pode haver salvação: existe salvação porque existem outros. E isso não por razões morais, porque eu deveria agir pelo bem deles. Somente porque não estou sozinho é que há salvação: só posso me salvar como um entre muitos, como outro entre os outros. Sozinho – esta é a especial verdade da solidão – eu não preciso de salvação; pelo contrário, sou propriamente insalvável. A salvação é a dimensão que se abre porque não estou sozinho, porque há pluralidade e multidão. Deus, encarnando-se, deixou de ser único, tornou-se um homem entre muitos. Por isso, o cristianismo teve que se ligar à história e seguir o seu destino até o fim – e quando a história, como parece ocorrer hoje, se apaga e decai, também o cristianismo se aproxima do seu ocaso. A sua irremediável contradição é que ele buscava, na história e através da história, uma salvação para além da história, e, quando esta acaba, falta-lhe o chão debaixo dos pés. A Igreja, na realidade, era solidária não com a salvação, mas com a história da salvação e, como buscava a salvação através da história, só podia terminar na saúde. E, quando o momento chegou, ela não hesitou em sacrificar a salvação à saúde.

 

 

É preciso arrancar a salvação do seu contexto histórico, encontrar uma pluralidade não histórica, uma pluralidade como saída da história.

 

Sair de um lugar ou de uma situação sem entrar em outros territórios, deixar uma identidade e um nome sem assumir outros.

 

Rumo ao presente, só é possível regredir, enquanto no passado se procede em linha reta. Aquilo que chamamos de passado nada mais é do que a nossa longa regressão rumo ao presente. Separar-nos do nosso passado é o primeiro recurso do poder.

 

Aquilo que nos liberta do peso é a respiração. Na respiração, não temos mais peso, somos levados como que em um voo para além da força da gravidade.

 

Teremos que aprender do zero a julgar, mas com um julgamento que não pune nem premia, nem absolve nem condena. Um ato sem propósito, que remove a existência de qualquer finalidade, necessariamente injusta e falsa. Somente uma interrupção, um instante situado entre o tempo e o eterno, em que resplandece apenas a imagem de uma vida sem fim nem projetos, sem nome nem memória – por isso salva, não na eternidade, mas em uma “espécie de eternidade”. Um juízo sem critérios pré-estabelecidos; no entanto, precisamente por isso, político, porque restitui a vida à sua naturalidade.

 

 

Sentir e sentir-se, sensação e autoafeição são contemporâneos. Em toda sensação, existe um sentir-se sentir; em toda sensação de si, um sentir outro, uma amizade e um rosto.

 

A realidade é o véu através do qual percebemos o possível, aquilo que podemos ou não podemos fazer.

 

Saber reconhecer quais dos nossos desejos infantis foram realizados não é fácil. Sobretudo se a parte da realização que beira o não realizável é suficiente para nos fazer aceitar continuar vivendo. Temos medo da morte porque a parte dos desejos não realizados cresceu sem medida possível.

 

“Os búfalos e os cavalos têm quatro patas: eis o que eu chamo de Céu. Colocar o cabresto nos cavalos, perfurar as narinas dos búfalos: eis o que eu chamo de humano. Por isso, digo: cuide para que o humano não destrua o Céu dentro de você, cuide para que o intencional não destrua o celestial”.

 

 

Permanece, na casa que está queimando, a língua. Não a língua, mas as imemoriais, pré-históricas, fracas forças que a conservam e a recordam, a filosofia e a poesia. E o que elas conservam, o que recordam da língua? Não esta ou aquela proposição significante, não este ou aquele artigo de fé ou de má-fé. Pelo contrário, o próprio fato de que há linguagem, de que sem nome somos abertos no nome e, nesse aberto, em um gesto, em um rosto, somos incognoscíveis e expostos.

 

A poesia, a palavra é a única coisa que nos restou de quando ainda não sabíamos falar, um canto obscuro dentro da língua, um dialeto ou um idioma que não conseguimos entender plenamente, mas que não podemos abrir mão de ouvir – mesmo que a casa esteja queimando, mesmo que, na sua língua que queima, os homens continuem falando pelos cotovelos.

 

Mas existe uma língua da filosofia assim como existe uma língua da poesia? Assim como a poesia, a filosofia mora integralmente na linguagem, e só o modo dessa moradia a distingue da poesia. Duas tensões no campo da língua, que se cruzam em um ponto para depois se separarem incansavelmente. E quem quer que diga uma palavra justa, uma palavra simples e fontal, mora nessa tensão.

 

 

Quem se dá conta de que a casa está queimando pode ser levado a olhar para os seus semelhantes, que parecem não se dar conta com desdém e desprezo. Porém, não serão precisamente esses homens que não veem e não pensam os lêmures com os quais você deverá prestar contas no último dia? Dar-se conta de que a casa está queimando não o eleva acima dos outros: pelo contrário, é com eles que você terá que trocar um último olhar quando as chamas se aproximarem. O que você poderá dizer para justificar a sua suposta consciência a esses homens tão inconscientes que parecem quase inocentes?

 

Na casa que está queimando, continue a fazer o que você fazia antes – mas você não pode deixar de ver aquilo que agora as chamas mostram a você nu. Algo mudou, não naquilo que você faz, mas no modo como você abre mão disso no mundo. Uma poesia escrita na casa que está queimando é mais justa e mais verdadeira, porque ninguém poderá ouvi-la, porque nada assegura que poderá escapar das chamas. Mas se, por acaso, ela encontrar um leitor, então ele não poderá, de modo algum, se isentar da apóstrofe que o chama a partir daquela inerme, inexplicável, submissa gritaria.

 

Só pode dizer a verdade quem não tem nenhuma chance de ser ouvido, só quem fala a partir de uma casa em que, ao seu redor, as chamas estão implacavelmente se consumindo.

 

 

O homem desaparece hoje, como um rosto de areia apagado na praia. Mas aquilo que assume o seu lugar não tem mais mundo, é apenas uma vida nua muda e sem história, à mercê dos cálculos do poder e da ciência. Mas talvez seja apenas a partir dessa destruição que algo mais poderá um dia aparecer lenta ou bruscamente – não um deus, certamente, mas sequer outro homem – um novo animal, talvez, uma alma vivente de outra forma...

 

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