“Uma nova compreensão da tecnologia poderia ter um efeito transformador”. Entrevista com Yuk Hui

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20 Outubro 2020

Em seu livro Fragmentar el futuro: ensayo sobre la tecnodiversidad, Yuk Hui, engenheiro e filósofo chinês formado em Hong Kong, Inglaterra, Alemanha e França, explica como diferentes epistemologias criam diferentes tecnologias. Iluminismo, globalização, neorreacionarismo, inteligência artificial, geopolítica e a disputa de poder entre o Oriente e o Ocidente.

A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 17-10-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você se opõe à ideia tradicional de que a tecnologia é um universal antropológico, uma exteriorização da memória e uma libertação dos órgãos. Por que está restrita e possibilitada por cosmologias particulares que transcendem a funcionalidade e a utilidade?

Há muito tempo temos a impressão de que a tecnologia é universal. Critiquei este conceito. Não considero adequada a ideia de que a tecnologia é universal e que há uma só história, que é a do progresso. Apresenta muitas dificuldades. A ideia da universalidade da tecnologia parece existir em diferentes disciplinas, por exemplo, na filosofia da tecnologia, na antropologia da tecnologia, na história da tecnologia. Especialmente aparece na história da tecnologia.

Muitos pesquisadores comparam a tecnologia chinesa com a da Europa, buscando qual é a mais avançada. Não são todos, mas muitos. Parte-se do pressuposto de que são a mesma tecnologia e das mesmas premissas epistemológicas e ontológicas. Mas é essencialmente injusto compará-las, além de difícil, é quase impossível. São conceitos com os quais o sinólogo e historiador Joseph Needham também trabalhou.

Minha ideia foi desafiar a questão de que os conceitos sejam universais. Um produto, como um jornal, pode ter um mesmo tipo de material. Mas isto não significa que seja o mesmo material, ainda que tenha os mesmos componentes. Tentei reabrir a reflexão sobre a questão da tecnologia como algo universal. Não se trata de uma postura particular, como se fala de universalismo ou relativismo. Para mim, a universal é somente uma dimensão da existência. E aí, nesse universo de dimensões, a tecnologia seria a externalização da memória e a libertação de todas as coisas em algum lugar das peças que você acaba de ler como buscando demonstrar que poderia haver um universo de dimensões, por exemplo, na forma em que entendemos a tecnologia como a externalização da memória e a libertação de todas as coisas.

Que vantagens possui redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas, com suas respectivas histórias, em vez de entender a tecnologia como aquele universal?

Transcender não só o antropologicamente universal, mas também entender um universo ou uma só história da tecnologia ou a história e a tecnologia como algo universal e perceber que o que estamos vendo é que estamos competindo em uma só tecnologia. Na realidade, o que acontece é que estamos vendo a concorrência de certas inteligências para ver qual é a mais eficiente, ou qual é a mais rápida. Estamos em um tipo de concorrência global de tecnologia. Vendo as formas desta concorrência, caberia se perguntar para onde nos leva.

Citando a conferência de Heidegger, de 1949, “A pergunta pela técnica”, mencionou as tecnologias milenares como as da Índia e China, mas também as dos maias, incas e mapuches, estes últimos dos povos pré-colombianos da Argentina. Do estudo da antropologia da tecnologia surge algo aplicável das cosmotécnicas pré-colombianas que possa ser restabelecido?

Isto se conecta com a pergunta que fiz sobre o destino da tecnologia. A pergunta pela concorrência geopolítica geral da tecnologia e em particular da tecnologia digital. É uma concorrência sobre a singularidade tecnológica. Minha proposta é que em vez de aceitar a universalidade da tecnologia e lhe conferir este progresso histórico, é necessário reabrir a pergunta da tecnologia, pensar sobre o que chamo de “múltiplas cosmotécnicas”. A ideia de fim da história é um pouco teológica. De onde vem a multiplicidade? Existe diversidade de tecnologias? É um tema que não vem do nada, nem de nossa própria imaginação.

Caso se observe, na história há uma tecnologia amazônica, há uma tecnologia maia. Há tecnologias hindus, chinesas. Mas o que são? São o mesmo que as técnicas, filhas da tekné gregas? Existe tecnologia grega. Os historiadores são mais rigorosos, mas podemos dizer que há uma tecnologia antiga e depois uma moderna.

De fato, há uma multiplicidade de tecnologias. O que quer dizer esta multiplicidade? Qual é a relevância desta tecnologia em nossa situação de hoje? Para a maioria das pessoas não há relevância, são tecnologia obsoletas. Como tarefa filosófica, a questão é encontrar a relevância e explorá-la, ver que resposta dar a esta multiplicidade e nos perguntar se nos permite pensar hoje em um marco para as nossas tecnologias.

A América Latina é uma cultura híbrida que mistura europeus, pré-colombianos e africanos em um mesmo território. Um território que deu origem a uma cosmopolítica populista sui generis. Tal singularidade pode desenvolver uma cosmotécnica singular?

Cosmotécnica não é sinônimo de nacionalismo. Não é fascismo, não é uma identidade política. No momento de articular conceitos, quando falamos de tecnologia nos referimos a duas coisas. A primeira é a questão epistemológica sobre o conhecimento. Em segundo lugar, também questões vinculadas à vida. Não implica a construção de uma identidade política única e que subsuma a todos. É exatamente o contrário.

As múltiplas cosmotécnicas permitem pensar em que sentido é possível compreender as transformações da tecnologia na atualidade. Uma nova compreensão da tecnologia poderia ter um efeito transformador. E que poderia enriquecer seu poder a partir da compreensão que transcenda a cultura europeia. A América Latina tem muitas cosmotécnicas: a amazônica, a cosmotécnica maia. É a base do que poderíamos chamar de diplomacia epistemológica. Não se trata de construir um tipo único tecnológico, não é uma forma de comércio. Trata-se de voltar a abrir a questão da tecnologia, de reproblematizá-la.

Por que a ciência e a tecnologia modernas não se desenvolveram na Índia e na China, apesar do avançado grau de desenvolvimento científico e tecnológico alcançado antes do século XVI?

É a famosa pergunta de Joseph Needham. Foi um sinólogo, historiador sinólogo e bioquímico que fez esta pergunta. Por que a ciência e a tecnologia modernas não surgiram na China e na Índia, mas apenas na Europa? E a pergunta de Needham enfeitiçou muitas gerações de chineses e também de indianos e japoneses, fora da Europa também. Needham apresenta diversas hipóteses. Analisou as condições sociais, políticas e econômicas pelas quais a ciência não foi estimulada na China, devido ao sistema de exame público.

O que Needham disse, e acredito que é o mais importante, é que não é possível comparar, por exemplo, duas tecnologias, a da Europa e a da China, supondo que são a mesma coisa. Não é necessário. A nova pergunta implica precisamente isso. A razão pela qual a China não desenvolveu a tecnologia científica moderna é porque tem sistemas de conhecimento completamente diferentes. Estes sistemas de conhecimento têm muitas diferenças, diferentes formas de ser, de não ser, maneiras diferentes de conceber o mundo, de entender a matéria.

De acordo com o próprio Needham, podemos associar a Descartes a pergunta pela modalidade da ciência e a tecnologia modernas na Europa e, mais recentemente, a Newton e assim sucessivamente. Formas de mecanismo que não podiam ser encontradas na China, nem na Índia. Needham demonstra que não é correto que a China fosse mais frágil ou não podia desenvolver avanços científicos. A pergunta de Needham implica que antes do século XVI, na China e na Europa, há dois sistemas tecnológicos e científicos em relação a seu marco epistemológico. Estes dois sistemas são muito diferentes entre si. Demonstra a tecnodiversidade, a diversidade de tecnologia.

Mas você escreveu “A cosmotécnica como cosmopolítica”.

É difícil para mim sintetizar a ideia desse ensaio. O que se sugere no artigo é que hoje, se queremos pensar em cosmopolíticas, primeiro temos que pensar na tecnologia. Ou seja, em vez de nos limitar a um tipo de mundo ideal e harmonioso, é importante buscar o papel da tecnologia nas tradições cosmopolíticas, de Immanuel Kant até hoje.

Para estabelecer uma nova forma de cosmopolítica possível, proponho que, em primeiro lugar, coloquemos a tecnologia no centro. Em segundo lugar, o que percebemos agora é uma competição pela singularidade tecnológica, e esta concorrência não alude ao caráter cosmopolita do natural delineado por Kant. Por isso, a base para esta nova cosmopolítica precisa estar em múltiplas cosmotécnicas.

Dedicou bastante espaço às ideias do investidor informático Peter Thiel (N. do R.: o fundador de PayPal) sobre a obsolescência do Iluminismo. Que papel estes bilionários digitais desempenham no pensamento neorreacionário?

Peter Thiel é uma pessoa bastante especial. Estudou neurociências e trabalhou com o antropólogo francês René Girard. Em uma conferência que deu, que foi muito importante, começou com uma análise do 11 de setembro. Para Peter Thiel, o ataque terrorista do 11 de setembro marca o fim de certos movimentos que começaram com o Iluminismo europeu. E este movimento é interrompido pelo inimigo, a partir do evento ao final. A pergunta que Peter Thiel faz é como tudo pode continuar igual ao que aconteceu desde o Iluminismo, em vista do 11-S. Pergunta-se como salvar o Ocidente de seu declínio.

Em “A educação de um libertário”, Thiel escreveu que a concorrência é para os perdedores. Ao contrário, é o monopólio que produz a maximização do lucro. Esta perspectiva é a que guia os gigantes tecnológicos como Google e Facebook?

A concorrência é uma ideia onipresente em determinado pensamento. É o que guia os Estados Unidos. A menção não reflete realmente o ponto de que sua própria política é a concorrência. Por isso, os limites do problema não devem se restringir ao discurso, porque estava se referindo a empresas emergentes.

Donald Trump e os empreendedores tech são bodes expiatórios da globalização?

Mesmo que Trump seja cético da globalização, não acredito que seja seu bode expiatório. A pergunta é, então, o que significa realmente globalização hoje. Não será o contrário? A globalização é o bode expiatório de Donald Trump e de uma espécie de política neorreacionária? É uma pergunta muito complicada.

Por um lado, a globalização é um movimento intelectual que vemos há muito tempo e que tem suas raízes no Iluminismo. Também é o que enuncia pela ideologia neorreacionária Peter Thiel. Frente à visão de neorreacionários como Peter Thiel e inclusive Trump, os reacionários gostam da ideia de como manter este movimento intelectual. É partir daí que questionam a globalização. A pandemia funciona como uma desculpa perfeita aos antiglobalização.

Os bodes expiatórios são os recipientes perfeitos para esconder a verdade a favor dos movimentos populistas?

Seria necessário pensar na ideia de bode expiatório. Surge no mundo grego e poderia ser pensada agora. Um bode expiatório é alguém que é expulso da cidade. Alguém que é retirado de seu ambiente. O bode expiatório é um símbolo da impureza, é alguém que não é puro. Por isso, a condenação e a expulsão da cidade-Estado. Excluindo o que é impuro, mantém-se o que é puro no interior de uma sociedade. O problema não é o bode expiatório. É culpar, gerando a divisão entre um dentro e um fora, uma realidade exterior e uma interna.

Seria vantajoso um novo protocolo de comunicações diferente da estrutura centralizada do modelo cliente-servidor atual, que permita uma descentralização baseada na computação pessoal na nuvem, o chamado sistema operativo “pós-singular”?

Não temos experiência do que é uma rede pós-singular ou um sistema operativo pós-singular. Não sabemos seus resultados. Então, você se pergunta como funciona o Vale do Silício e como o discurso político trabalha. Inclusive, seria o caso de pensar o que significa a pós-singularidade. Uma singularidade que significa que um computador é capaz de refletir sobre si mesmo, que o computador ou a inteligência artificial podem ter uma espécie de consciência. As máquinas são capazes de produzir uma grande quantidade de inteligência, o que supera a inteligência humana, isto é o que se chama pós-singularidade.

Esta ideia de singularidade tecnológica provém do que chamam de explosão de inteligência. As máquinas poderão se tornar responsáveis por quase todas as tarefas realizadas por seres humanos, incluindo o planejamento social, o planejamento econômico, o planejamento político. É uma ideia de grande gravidade. Quando chegarmos a essa realidade, deveríamos nos perguntar se é necessário um sistema pós-operativo pós-singular.

Vive o Ocidente o momento trágico em que a consciência reconhece a contradição no coração de sua natureza, o que havia pensado que era completo e inteiro se revela como frustrado e incompleto, naquilo que Hegel chamava de “a consciência infeliz”?

Não diria que é um momento trágico. Não ainda, porque para que seja trágico é preciso haver reconciliação dialética, em algum momento. Neste momento, é diferente, não há reconciliação. Com a consciência infeliz, percebe-se a contradição sem poder reconciliá-la. Quando escrevi o artigo em 2017, o que observei no discurso dos populismos de direita ou neorreacionários foi a consciência infeliz que Hegel descreveu, mas ainda não é trágica.

O Iluminismo e a democracia são como o “pharmakon” grego: remédio e veneno ao mesmo tempo?

A palavra grega pharmakon é usada por Platão e mencionada por Jacques Derrida a partir da leitura do filósofo. Baseia-se no Fedro. Narra-se uma história do rei do Egito que diz que o deus da escrita lhes dará um presente, a escrita, para que as pessoas possam recordar. Mas o rei do Egito diz que não, que quando as pessoas aprenderem a ler, também vão se esquecer, porque irão confiar mais na escrita, na exteriorização, do que em suas mentes. Assim, escrever ou a tecnologia em geral permite tolerar a sua nêmese, que é escrever e também esquecer. O pharmakon é como a tecnologia, no mesmo sentido em que nos permite lembrar e nos faz esquecer, é remédio e veneno, de acordo com essa leitura de Platão.

É a inteligência artificial uma forma de bilhete de loteria cósmico?

Como você o definiria?

Algo que é imprevisível.

É outra pergunta complexa. Em relação à tecnologia, estamos diante de eventos binários. E nos deparamos sempre com as consequências. Sempre nos deparamos com as consequências. No entanto, há acidentes e contingências. Quando delineamos um produto, tentamos nos antecipar, de acordo com sua função e seus objetivos. A invenção da tecnologia improvisa no tempo estabelecido e tenta antecipar as contingências. Propõe uma realidade que inclui essas contingências, mas não as evita, é uma espécie de loteria em certo sentido. Pode funcionar muito bem ou se tornar uma catástrofe.

Supõe-se que por trás da inteligência artificial há um certo desejo e uma espécie de fantasia. E esta fantasia tem muitas camadas e motivações. De algum lugar, tem-se a fantasia comercial de que é possível substituir, por exemplo, partes do corpo humano, há objetivos econômicos por trás da ideia de que tudo pode ser automatizado. Há muitos prognósticos de até onde a inteligência artificial chegará e o que tudo isto implica, com suas consequências para toda a inteligência dos seres humanos.

A pergunta é se por trás do que se faz, existe consciência. Não sei. Acredito que não. Acredito que tudo pode ser pensado a partir de dois lugares, ambos muito significativos. O primeiro é o lugar da concorrência econômica. O outro é o gasto militar.

A tecnologia bitcoin, que transcende as moedas nacionais, é empática aos ideais de desterritorialização dos libertários?

Eu não diria isso. É difícil vincular as criptomoedas com a desterritorialização. É preciso pensar a questão a partir do vínculo entre as cosmotécnicas e o nacionalismo. A criação de criptomoedas poderia ser um projeto nacionalista. A criação de moedas virtuais e suas restrições é uma profunda desterritorialização em outro sentido: obtém sua garantia do fluxo de dinheiro, que flui mais rapidamente. Mesmo assim, cabe a pergunta: cria uma desterritorialização em termos espaciais? Não estou certo, mas não é o que se observa agora.

A fantasia transumanista de uma superinteligência artificial despolitiza e proletariza o ser humano?

Há certos aspectos relacionados à política de consumo. Devemos falar da ideia do que se chama “singularidade pós-tecnológica”. Supõe que, como a inteligência das máquinas excede a humana, estas poderiam substituir a função do Estado sem que se envolva a política, que poderia ser considerada como uma fonte de falhas e de erros, uma epistemologia humana. É um erro simples. Parte de uma hipótese falsa, que não haveria uma imposição em tudo isto de origem humana. E não é assim. O transumanismo supõe que as pessoas são apenas fontes de erro.

A filosofia é essencial para as revoluções, já que muda de uma só vez os princípios: o iluminismo buscou fragmentar o mundo por suas diferenças, em vez de universalizar por meio do igual. Uma nova filosofia deveria induzir o igual da diferença, em vez deduzir a diferença do igual?

As políticas do Iluminismo tendem a universalizar certas variáveis para generalizar certos efeitos. Mas ignoram as diferenças. As novas cosmopolíticas reconhecem as diferenças. Reconhecer diferenças é também uma forma de pensar sobre a questão da igualdade. A igualdade não significa que todos sejam iguais. Significa que cada um, sem importar o quanto se é diferente, precisa ter acesso igual aos recursos e oportunidades. Quando falamos de diferença, é uma forma de reconstruir uma nova história do mundo. Há uma forma de igualdade que permite a consideração de diferentes civilizações e culturas.

Concorda com frase de Vladimir Putin: “quem dominar a inteligência artificial, dominará o mundo”?

Putin disse isto em 1º de setembro de 2017. Capta perfeitamente a disputa geopolítica de hoje e para onde caminha a concorrência da geopolítica hoje em dia. Para ele, trata-se da concorrência nacional pela singularidade tecnológica. O último objetivo da inteligência artificial é a singularidade. E isto é um problema.

Continua atual o que escreveu Alexandre Koyré, ao mencionar que a perda do cosmos representa o fim da metafísica, no sentido de que não percebemos mais que exista algo por trás ou além da perfeição da ciência e da tecnologia?

Penso que o que Alexandre Koyré disse sobre o fim da metafísica deve ser atribuído ao fim de uma concepção histórica. As metafísicas identificavam a si mesmas como a ciência primeira. Quando escrevi a esse respeito, referia-me muito mais ao fim da cosmologia e não da metafísica. Esse fim da cosmologia é também uma transição ao que agora chamamos de astrofísica.

Sendo assim, o fim da cosmologia e o surgimento da astrofísica constituem um momento decisivo. O que significou colocar em jogo certas ideias metafísicas. Um processo que continua até hoje. Uma ideia retomada por Martin Heidegger, por exemplo, na década de 60 do século passado, quando falou do ocultamento da metafísica na era da tecnologia.

Em seu comentário sobre a “guinada ontológica”, refere-se às quatro grandes ontologias: o naturalismo, o animismo, o totemismo e o analogismo. Há alguma espécie de totemismo na fantasia de uma superinteligência transumana?

O que extraio das quatro ontologias enunciadas pelo antropólogo Philippe Descola se refere a um tipo de visão diferente. Referia-se a ontologias e epistemologias diferentes da ideia europeia moderna do naturalismo. Sua ideia era pensar a oposição entre a verdadeira natureza e a cultura. Existe animismo, existe totemismo, existe analogismo. São diferentes posições para se vincular ao meio ambiente e o mundo exterior. Não vejo que isto constitua um totemismo. É diferente do que estava procurando dizer sobre o seminário de Philippe Descola.

Você escreveu que o pensamento cosmotecnológico chinês consiste em uma longa história de discurso intelectual sobre a unidade e a relação entro o ‘qi’ e o ‘tao’, sendo a unificação do ‘qi’ e o ‘tao’ a unificação do moral e o cósmico. Como o dispositivo epistemológico ‘qi-tao’ se diferencia da cosmotecnologia ocidental?

É um tema ao qual dediquei um livro inteiro. É difícil resumi-lo. Mas é possível dizer que na Europa há uma filosofia da tecnologia. O que o povo chinês pensou a esse respeito não é precisamente uma teoria do tecnológico, mas outro marco conceitual. É difícil de pensar e muito mais de expressar o que é a filosofia da tecnologia na China. Portanto, no século XX, o que observamos é que o desenvolvimento da filosofia da tecnologia na China se baseia em grande medida na filosofia europeia ocidental.

Minha hipótese é que não é possível medir a evolução técnica chinesa sob os cânones ocidentais. E é muito mais difícil analisá-la em comparação com a América Latina. Trata-se de dois contextos diferentes. De fato, parece-me que é impossível unificá-los, não há equivalências. A pergunta que me fiz é se é possível reconstruir uma filosofia da tecnologia na China. Por isso fui ao vocabulário chinês em busca de conceitos que iluminem a questão. Foi assim que me deparei com qi e tao. Trata-se de encontrar uma guia no caminho. É o que permitiu elaborar um discurso sistemático por longos anos a partir da relação entre as duas categorias. A ideia era responder se é possível encontrar uma filosofia da tecnologia na China. E se sim, como se elabora.

A tecnologia superou o capitalismo?

É o que afirmam muitos teóricos. Mas para isso primeiro temos que definir o que é o capitalismo e depois o que é a tecnologia. Aqueles que formulam tais hipóteses não estabelecem uma explicação profunda acerca do que é a tecnologia e o que é o capitalismo. Em mais de um caso, assumimos que o capitalismo é como um velho que se tornará obsoleto. Por exemplo, se você é velho, quando obtém um computador novo, não sabe como usá-lo. Percebo que há uma espécie de possível personificação do capitalismo que considero um pouco engraçada. De qualquer modo, é uma questão mais profunda.

O Oriente superou o Ocidente por meio da inovação digital e a automação? O Ocidente mestre foi superado por seu aluno do Oriente?

Não acredito que esteja superando o Ocidente. O que se pode perceber é apenas o processo que chamamos de modernização, que se relaciona diretamente com a globalização. O que chamamos de globalização unilateral já não se sustenta. Eu não diria que o Oriente superou o Ocidente em termos de tecnologia. Por isso, o que observamos hoje é uma espécie de reverso. Tentei me concentrar especialmente em descrever este processo de modernização, que se vê como uma globalização unilateral. Chegou a um ponto em que não se pode continuar tal como estava.

Como imagina um mundo com tecnodiversidade?

Um mundo com tecnodiversidade é aquele em que ao invés de converter cada período histórico em uma singularidade média, é possível pensar diversamente. O que implica que podemos pensar em diferentes formas de vida, e compreender a diferença nas relações entre o ser humano e a tecnologia. Também as nuanças na relação entre os humanos e os não humanos e a tecnologia. E estas relações podem ser analisadas no que diz respeito às novas tecnologias.

Você escreveu: “O algoritmo é a exteriorização do pensamento racional, que se complica em seu processo de desenvolvimento a partir de uma lógica linear para uma lógica recursiva”. Como funciona o algoritmo para estabelecer tal recursividade?

A lógica recursiva não é linear. Para isso, devo dar um exemplo das ciências da computação. Se algo chega melhorando a si mesmo, a função causa a si mesma. O mecanismo é linear no sentido de que há causa e efeito. Uma causa gera um efeito, que gera outro efeito e assim sucessivamente. A recursão é um pensamento não linear. Isso significa que se autodetermina para melhor.

Você também escreveu, citando Heidegger: “Qualquer salvação que não venha do perigo, ainda se encontra dentro do desastre”, e conclui que “não estamos sendo levados para lugar algum pela gigantesca força da tecnologia, e se não buscarmos entendê-la e transformá-la agora, precisaremos estar preparados para a constante chegada de catástrofes”. Quais tipos de catástrofes? O coronavírus é uma derivado de alguma delas?

Correto. Muito obrigado por esta pergunta, porque era o sentido do meu comentário sobre Heidegger. Em si, a tecnologia se manifesta como um perigo. A tecnologia moderna está em perigo. Mas, como iremos enfrentar este perigo? Vamos escapar dele? Se o compreendermos, pode adotar sua forma real. De outra maneira, é impossível evitar as catástrofes. Vivemos em um contexto em que as catástrofes se sucedem. Se continuarmos esta forma de modernização, continuarmos esta forma de industrialização, só veremos mais e mais catástrofes.

Heidegger, segundo minha interpretação, convida a nos comprometer com o perigo. Pensar a tecnologia para não continuar esta forma de industrialização e modernização que durou séculos e que nos leva a tal incerteza. E que leva inclusive a manifestações como o coronavírus atual. Criar novos programas de industrialização para pensar em novas indústrias. Devemos pensar algo novo, em novas formas de tecnologias, um novo conceito. Caso contrário, podemos ter catástrofes, especialmente no que acontece em relação ao coronavírus e o aquecimento global. Pode haver mais e mais vírus e também poderá ocorrer a extinção em massa dos seres humanos. Com catástrofes que podemos antecipar. Existe a necessidade de se expor ao perigo, caso contrário, iremos nos expor às catástrofes.

Em fins dos anos 1980, o comunismo entrou em colapso economicamente. Poderá no século XXI, já com o capitalismo, um Partido Comunista, neste caso o da China, vencer a guerra com os Estados Unidos?

A reflexão parte de Francis Fukuyama, com O fim da história. Ali se enunciou o fim do comunismo. E um capitalismo universal constituiria esse fim. É uma discussão do fim dos anos 1990, que vem desde os tempos de Nikita Khrushchov e o fim do comunismo. No entanto, para além dos argumentos, a história continuou dos anos 1990 até hoje. Há novas dinâmicas, marcadas pelos avanços tecnológicos. Hoje, não sei se podemos dizer que o concorrente do capitalismo seja exatamente o comunismo. Os protagonistas do processo são outros. E certamente implica sair do debate central. Falar dos Estados Unidos como capitalista e da China como comunista é rotulá-los. É uma discussão que inclusive pode ser anterior aos anos 1990. A realidade política é outra coisa.

Qual é sua opinião sobre o futuro da democracia na China?

Novamente cabe se perguntar pela definição de democracia. Estamos nos referindo, por exemplo, à democracia liberal? Falamos de votar ou não? Pensar que a solução é que a China se transforme, como sugere o filósofo Jiewi Ci, é pensar a questão de um ponto de vista liberal. Não estou muito seguro de que o país se transforme em uma democracia liberal.

Você disse: “O marxismo é um produto do idealismo alemão, no cristianismo tardio”.

Foi uma conversa que tive com François Lyotard, quando este filósofo escrevia nos anos 1990 sobre sua experiência na Berlim oriental, antes da queda do Muro. Depois, ele retornou à Alemanha. A frase estava vinculada a suas vivências. Caso se observe a formação intelectual de Karl Marx, nota-se que suas ideias nasceram, em geral, do idealismo na cristandade tardia.

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