Jean-Luc Mélenchon: “Fratelli Tutti, uma visão compartilhada entre crentes e não crentes”

No túmulo de São Francisco, o Papa assina a Encíclica “Fratelli tutti”. | Foto: Vatican News

17 Outubro 2020

O deputado de Bouches-du-Rhône e líder do movimento França Insubmissa Jean-Luc Mélenchon, leitor atento das encíclicas promulgadas pelos papas, leu a Fratelli Tutti, e o tema da fraternidade serviu-lhe de inspiração para este texto.

 

O artigo é publicado por La Vie, 09-10-2020. A tradução é de André Langer.

 

Eis o artigo.

 

A encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco pode abrir um tempo salutar de reflexões compartilhadas. Sua importância reside no momento em que elas se dão. Não se trata aqui de manobras eleitorais nem de negações da laicidade, como pude observar no Convento dos Bernardinos, por iniciativa do Presidente da República. Trata-se de valorizar tudo o que pode nos unir sem nos negar. É necessário em um momento em que toda a civilização humana está sendo desafiada por sua sobrevivência pelo colapso de seu ecossistema.

 

O título Fratelli Tutti lembra a vocação universalista do catolicismo. Ela entra em sintonia com aquele humanismo que nasceu na Europa com o Renascimento. A aspereza da rejeição da Igreja na época não apaga o efeito de parentesco que o tempo longo confirmou. Portanto, a influência intelectual que o catolicismo exerce sobre quase um bilhão e meio de consciências no mundo é, talvez, um fator decisivo. Impacta a forma como o ser humano se posicionará diante do desafio da extinção da biodiversidade da qual é um componente inseparável. Cada um por si ou todos juntos? Por isso, recebo a Fratelli Tutti como um sinal. Quero destacar, de maneira despretensiosa, três pontos.

 

O primeiro ponto diz respeito à crítica do modelo econômico neoliberal e sua responsabilidade no caos. Suas palavras assemelham-se às minhas o suficiente para que eu seja tocado por elas. Portanto, não me detenho mais nisso. Que a leitura do Papa convença tanto quanto possível!

 

O segundo ponto diz respeito ao seu apelo para esclarecer a noção de “povo” como ator da história. Eu compartilho sua exigência. Precisamos desmistificar a noção de povo. Não podemos atribuir a ela uma essência boa ou má por natureza. O povo é uma construção social e cultural. Em nossa teoria da era do povo, ele é o novo ator deste momento da história. Engloba todos aqueles que têm necessidade de acesso a redes coletivas para produzir sua existência material. Desde a distribuição espacial dessas redes e sua natureza pública ou privada estruturando o campo das conflitualidades. Ela constrói a oposição entre a oligarquia e o povo na diversidade dos estatutos sociais que contém. O papa também não dissocia a definição de povo da crítica ao neoliberalismo. “A categoria de povo, escreve o Papa, que inclui intrinsecamente uma avaliação positiva dos vínculos comunitários e culturais, habitualmente é rejeitada pelas visões liberais individualistas, que consideram a sociedade como uma mera soma de interesses que coexistem”.

 

Tanto é assim que o reconhecimento do povo como ator central na história contemporânea torna-se ela mesma um problema. Todos nós sabemos como a opção preferencial pelo povo deu origem a uma forma de rejeição desdenhosa sob o vocábulo “populista”. É importante que nos apoiemos na condenação moral do Papa quando ele declara: “Em certos contextos, é frequente acusar como populistas todos aqueles defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para as referidas visões, a categoria de povo é uma mitificação de algo que não existe na realidade”.

 

Esta foi, de fato, a visão desenvolvida pela ultraliberal primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: “Uma coisa como a sociedade não existe”. Para ela, apenas indivíduos existiriam. Nessa visão, se cada um otimizar sua vida, o todo será harmonioso. Há, portanto, uma clara distância separando as concepções liberais da visão católica. E também não podemos separar a opção preferencial pelo povo da crítica ao neoliberalismo. Em outras palavras, o povo se constitui como entidade política na rejeição da visão neoliberal e alimenta sua identidade com os pontos de apoio que encontra para fazê-lo em sua cultura específica.

 

Daí passamos ao terceiro ponto, que pode desembocar em uma visão universalista fraterna compartilhada entre crentes e não crentes. Trata-se da definição de um povo “aberto”. Parece-me que chegou na hora certa no debate francês. Nós também rejeitamos a noção de povo fechado na repetição de uma identidade fixa. “Os grupos populistas fechados, escreve o Papa, deformam a palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De fato, a categoria ‘povo’ é aberta. Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses assumindo em si o que é diverso. E fá-lo, não se negando a si mesmo, mas com a disposição de se deixar mover, interpelar, crescer, enriquecer por outros; e, assim, pode evoluir”. Encontro aqui o que disse Édouard Glissant quando nomeia e descreve esta abertura. “A creolização, diz ele, é uma mistura de artes, ou de linguagens, que produz o inesperado (...). É a criação de uma cultura aberta e inextricável, que abala a uniformização por parte dos grandes meios de comunicação e centros artísticos. É feita em todos os campos, músicas, artes plásticas, literatura, cinema, culinária, em um ritmo vertiginoso...”.

 

Ao retomar esta constatação em suas palavras, o Papa facilita a emergência de uma concepção universalista baseada em uma vivência íntima amplamente compartilhada. Ela é essencial para construir a cultura da ajuda humana geral em face das angústias globais que enfrentamos. Concluo tomando emprestadas as palavras de Jorge Mario Bergoglio. “É muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho coletivo. Tudo isto está expresso no substantivo ‘povo’ e no adjetivo ‘popular’. Se não se incluíssem na linguagem – juntamente com uma sólida crítica da demagogia –, ter-se-ia renunciado a um aspecto fundamental da realidade social”.

 

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