08 Outubro 2020
"As fronteiras entre dois ou mais países tornam-se pontos cada vez mais ambíguos e nevrálgicos. Lugares de permanente encontro e desencontro. Verdadeiros tropeços no vaivém interminável dessa imensa multidão de gente sem raiz, sem rumo e sem pátria, condenada a perambular de um lado para outro pela face da terra", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM.
Eis o artigo.
Em 9 de setembro de 2020, um incêndio de grandes proporções devastou o campo de refugiados na Ilha de Lesbos, Grécia. O campo abrigava cerca de 15 mil imigrantes, mas seu número podia oscilar até a casa dos 20 mil. Convém ter presente que esse campo de refugiados representa um filho bastardo do acordo entre Europa e Turquia, celebrado e assinado em 2016, concretamente por Merkel e Erdogan, com o intuito de interromper a chamada “rota balcânica”, mantendo longe do velho continente a “onda” de imigrantes que provinham de vários países do Oriente Médio, como também do leste e norte da África, rumo ao sonho europeu.
Semelhante entendimento acabou deixando os refugiados de Lesbos como que encurralados a meio caminho, às portas da Europa, tendo agora seus sonhos reduzidos a cinzas. O mesmo acordo, de resto, iria se repetir mais tarde entre a Comunidade Europeia e a Líbia, desta vez para barrar a outra via, “a rota mediterrânea”, utilizada de modo especial por imigrantes africanos de distintos países (mas também de outras localidades). O resultado foi que, até os dias de hoje, no litoral da Líbia se multiplicam igualmente os campos de refugiados. A situação extremamente precária em que vivem seus ocupantes tem produzindo uma série de imagens negativamente espetaculares, tanto na mídia quanto nas redes sociais.
Referindo-se à sinistra tragédia ocorrida no campo de Lesbos, vale sublinhar o que escreve um correspondente da televisão grega na Itália, o doutor em Ciências Políticas Dimitri Deliolanes: “A verdadeira notícia não é que o incêndio estourou, mas que não tenha acontecido mais cedo. Nestes cinco anos, o antigo quartel abandonado de Moria transformou-se num enorme aglomerado de pessoas com mais de 15.000 hóspedes, com picos de 20.000. Os acidentes estavam na ordem do dia: brigas por água, confrontos de gangues, ataques a mulheres sozinhas, violência contra crianças, suicídios. Mas também tendas queimadas por fogões derrubados, revoltas daqueles que esperam há anos, assaltos desesperados a barcos, ataques e incêndios de fascistas gregos e de fora. A catástrofe estava na agenda há algum tempo. No fim, chegou” (Cfr. Artigo publicado por Il Manifesto, em 10/09/20, reproduzido no portal do IHU em 11/09/20, tradução de Luisa Rabolini).
Marine Henriot, por sua vez, em reportagem publicada pelo Vatican News, na data de 10/09/20, dá notícia do desmembramento do campo de refugiados de Calais, cidade localizada ao norte da França, lugar de passagem para a Inglaterra, que agora está fora da União Europeia. Mas sobre as ruínas e escombros do que sobrou, outros imigrantes se instalam em situação de absoluta precariedade, seguindo com a teimosia própria de quem arrisca tudo para sobreviver. O sonho de encontrar um solo pátrio se faz, se desfaz e se refaz continuamente. De acordo com Henriot, “as condições dos refugiados são piores que na selva”. Situações análogas, ou ainda de maior gravidade, se repetem e se reproduzem em determinadas cruzamentos no mapa mundial das migrações. Mapa cada vez mais intenso e dinâmico, mais diversificado e complexo, e que hoje cobre todos quadrantes do planeta.
As fronteiras entre dois ou mais países tornam-se pontos cada vez mais ambíguos e nevrálgicos. Lugares de permanente encontro e desencontro. Verdadeiros tropeços no vaivém interminável dessa imensa multidão de gente sem raiz, sem rumo e sem pátria, condenada a perambular de um lado para outro pela face da terra. Destinos ignotos, distorcidos e tortuosos, marcados por encruzilhadas incertas e imprevisíveis. Bastaria ter em consideração as zonas fronteiriças do subcontinente latino-americano, bem como de certas regiões específicas da África e da Ásia. Com as leis migratórias cada vez mais pesadas e restritivas, crescem as tensões e conflitos nas fronteiras geográfico-territoriais. Lugares onde os direitos e a dignidade da pessoa humana são facilmente ignorados, quando não pisoteados. Desnecessário acrescentar que a pandemia tornou o caminho dos migrantes e refugiados ainda mais duro e árido.
Leia mais
- Brasileiras relatam experiência no campo incendiado em Lesbos
- As cinzas de Moria. A Europa e o os refugiados em apuros na ilha grega de Lesbos
- “Era de se esperar que o acampamento de Lesbos acabasse em chamas”. Entrevista com Maurice Joyeux, jesuíta
- O cardeal Hollerich reage ao incêndio no campo de migrantes em Lesbos
- Lesbos: A Europa busca respostas. Após o incêndio que destruiu o campo de refugiados
- Grécia, grande incêndio no megacampo de refugiados de Lesbos: milhares fogem das chamas
- Santo Egídio, Serviço Jesuíta para Refugiados e Scalabrinianas pedem acolhimento dos refugiados de Lesbos
- A “bomba relógio” explodiu no Acampamento Moriá, na Ilha de Lesbos
- O campo de refugiados de Lesbos precisa ser fechado, pede cardeal
- Lesbos, uma tragédia anunciada. Mas o primeiro-ministro grego acusa as vítimas
- Organismos ecumênicos pedem maior envolvimento dos países europeus no acolhimento de migrantes
- Corredores humanitários: chegam no Vaticano mais 10 refugiados de Lesbos
- A Europa naufraga em Lesbos
- Apelo de três cardeais pelos refugiados de Lesbos
- Cumpre-se o pior temor do Papa: o coronavírus chega a Lesbos e ameaça milhares de refugiados
- Refugiados enfrentam um novo desastre com a covid-19 ameaçando seus acampamentos
- Catástrofes agravam situação de migrantes e refugiados
- O “novo normal” no fenômeno migratório
- Número de refugiados no mundo duplica em dez anos
- Migrante e refugiado: o lado mais fraco da pandemia
- Pandemia e pós-pandemia entre os imigrantes
- Migrações e refugiados na era da COVID-19
- Campos de refugiados estão preparados para o coronavírus?
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Barrados pelas fronteiras, pela pandemia, pelas leis e pelo fogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU