Bolívia. “Não soubemos entender os sinais. Havia um plano previamente estabelecido”, analisa García Linera

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19 Novembro 2019

Tudo começou tentando que Evo Morales não pudesse se apresentar à reeleição. Seguiu com uma campanha anunciando uma fraude eleitoral das eleições convocadas para 20 de outubro. A profecia autocumprida exigia não reconhecer o resultado eleitoral enquanto começavam a sair os dados que apontavam que Morales poderia ter ganho a reeleição em primeiro turno. E, a partir de então, protestos que derivaram na queima de casas de dirigentes políticos, o amotinamento policial, o golpe militar, a derrota de Morales e a investidura de uma senadora, Jeanine Áñez, como presidente do país a mando do Exército.

Álvaro García Linera (Cochabamba, 1962) é o vice-presidente do governo de Evo Morales derrotado pelo pronunciamento militar e asilado temporariamente no México, à espera do desenrolar dos acontecimentos de seu país. Não somente foi o número dois do governo de Morales durante mais de uma década, García Linera é uma das principais referências ideológicas e teóricas dos processos de mudança na América Latina e de dirigentes de novas formações políticas europeias de esquerda.

García Linera atendeu ao eldiario.es, por Skype, para falar do golpe em seu país.

A entrevista é de Andrés Gil, publicada por El Diario, 15-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Confira a entrevista.

O que ocorreu na Bolívia?

Um golpe de Estado cívico policial. Se iniciou como um golpe civil contra o Governo, às instituições e, na metade do caminho, tornou-se policial e militar.

Como é possível que depois de quase 14 anos no poder, os militares se revoltem contra Evo Morales?

Precisou correr muito dinheiro para comprar policiais e militares. Houve pressão para disciplinar esses comandos para a estrutura golpista.

Como começou tudo?

Há duas semanas. Começou uma mobilização de setores civis, violentos, que não reconheceram as eleições desde o dia seguinte. Queimaram cinco órgãos eleitorais, de nove. Naqueles momentos, era ainda um episódio civil, que a polícia tentou amortizar sem deter ninguém, despejando o povo.

Depois veio uma mobilização, convocadas pela classe média urbana tradicional, nas cidades de Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba e La Paz, no eixo das cidades mais importantes do país.

Nesse momento, há duas semanas, os grupos de choque paramilitares se encarregaram de difundir o terror: queimando sedes sindicais em vários lugares do país, ameaçando, atacando e queimando domicílios dos dirigentes políticos.

Formaram grupos em motos, que golpearam e atacaram com armas de fogo as mobilizações populares indígenas que vinham a La Paz. Mais de 10 mil mulheres foram atacadas por 500-800 homens violentos sobre motos, com lança granadas artesanais.

Se criou um estado de terror que busca o controle e colcoar medo em dirigentes sindicais e políticos. Nós chamamos a polícia para retomar o controle, mas não os militares. A polícia atuou timidamente. Não prendia os agressores e mostrava uma atitude duvidosa contra esses surtos.

E se amotina.

Na semana passada, na sexta-feira, 08-11, a polícia se amotinou. Disse não reconhecer o comando civil, voltou aos seus quarteis e gritava: “Motim policial”.

A polícia deixou o país e as cidades, as instituições, sem nenhum tipo de proteção. Isso aconteceu na sexta-feira e, no sábado, 12-14 horas depois, o comando militar pede ao presidente que deixe o governo.

Houve uma escalada desde as mobilizações da classe média contrária ao governo, à formação de grupos paramilitares violentos que queimam instituições e casas privadas, até o motim policial e a petição das forças armadas. Foi uma escalada de força para não reconhecer a Constituição e ao governo. E nós renunciamos para que não haja mais incêndios de casas, não haja mais enfrentamentos.

Eles não reconhecem a sucessão constitucional, e é um general quem coloca a faixa presidencial a uma senadora que não tinha nenhum papel na sucessão constitucional, que é: o presidente, depois vice-presidente e depois presidente do Senado. Ela é presidente de uma comissão do Senado. Não reconhece o órgão constitucional, e um militar lhe coloca a faixa.

Desde a segunda-feira passada até hoje, o povo saiu às ruas, e há mais de dez mortos oficiais por tiros. Assim que essa mulher tomou o poder, os militares e policiais saíram às ruas para reprimir.

Quando começaram os conflitos graves, os militares pediram uma reunião ao governo e disseram que não tinham meios para os motins e que fazia falta um decreto presidencial. Porém agora saem às ruas sem decreto presidencial e em operações conjuntas com a polícia, com o resultado de dez mortos à bala e mais de 20 feridos de bala.

Agora o que vai acontecer?

Há um governo de facto sem Assembleia, sem sucessão constitucional, que está pressionando para que a Assembleia o reconheça. Porém a Assembleia não pode nem se reunir porque os deputados foram maltratados, há ordens de prisão, e estão pressionando para que a Assembleia aceite a senadora como presidente constitucional.

Em paralelo, ocorrem fortes mobilizações em La Paz, El Alto e Cochabamba, onde diversos setores estão mobilizados e se decretou uma paralização total.

O que buscam eles? Que a Assembleia os legalize, e estão oferecendo que não haverá perseguição aos deputados, e que o partido do governo (o MAS) poderá se apresentar às próximas eleições dentro de alguns meses, mas sem Evo como candidato.

Porém Evo Morales quer voltar, não?

Evo saiu e renunciou para impedir que haja mortos. Nós não chamamos os militares, Evo renuncia para que não seguissem queimando mais casas, porém os paramilitares continuam, a polícia usa gases e os militares disparam contra civis.

Vendo a evolução dos acontecimentos. Acreditam que havia um plano?

Vendo agora, sim. E não nos demos conta, não soubemos entender os sinais. Havia um plano previamente estabelecido, há gravações publicadas que denunciam isso. Porém, internamente, já nos contam os atores que se Evo não ganhasse com um número maior que 50%, eles não reconheceriam a eleição justificando que havia fraude.

Dois meses antes já começou a campanha de que haveria fraude. E aí é quando convidamos a todos para observar as eleições, quando começou uma campanha insidiosa de que haveria fraude. Estavam preparando um cenário para não reconhecer os resultados.

Como acredita que se comportaram os agentes externos?

A OEA teve um comportamento vergonhoso, porque no mesmo dia das eleições, ou no dia seguinte, a OEA publicou um relatório preliminar no qual dizia que as eleições foram tranquilas e transparentes, e que Evo ganharia com mais de 10 pontos sobre o segundo. Porém, ainda assim, diziam que a distância era muito pequena e recomendavam um segundo turno. Isso é, a OEA recomendava pular a Constituição. Se houvéssemos ganho por mais de dez, não seria necessário segundo turno.

Ainda assim, depois pedimos uma comissão para uma auditoria, que tinham que tê-la entregue na quarta-feira. Porém, no domingo, na madrugada, em meio de todo o caos do motim policial, a OEA publica um adiantamento do seu relatório e diz que se detectaram irregularidades, e prondo que hajam novas eleições.

As irregularidades que percebem nas eleições são: de 300 mesas, selecionaram 70 e disseram que há irregularidades, usam o argumento de 0,2% das mesas para justificar que houve enormes irregularidades e propõem uma nova eleição. E depois acusam Evo que houve fraude e de que ele é o golpista, quando seu informe não falava de fraude, mas sim de irregularidades.

Este relatório de domingo, faltando quatro dias para a data de entrega, incendeia mais o país: é o momento noqual a polícia está amotinada, há paramilitares e o relatório diz que haviam produzido sérias irregularidades que põem em dúvida a vitória de Evo.

Você tem uma biblioteca de 30 mil livros em sua casa na Bolívia que corre risco de ser incendiada.

Antes de renunciarmos, no domingo, queimaram a casa do presidente. Entram esses paramilitares queimando a casa do presidente, da sua irmã, sequestram familiares de ministros e os obrigam a renunciar, também incendiando suas casas. São relatos de terror dos anos 1930, quando se perseguia judeus.

E nesse mesmo dia se aproximam da minha casa várias pessoas. Foram para a minha casa, com suas latas, atirando ovos nas janelas... E eu não tenho proteção militar. Eu estava os esperando.

Porém no domingo volta um grupo a minha casa, e como havia incêndios nas outras casas, ameaçam de queimar a minha. Nesse dia é quando inicia uma campanha internacional, com intelectuais, para salvar a biblioteca. E essa resposta os dissuadiu um pouco.

Não voltei para a minha casa, meus dois cachorros estão sendo alimentados pelos vizinhos. Espero que esse bando de paramilitares não queime a minha casa.

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