O Diálogo de Interconvicções. Artigo de Rita Macedo Grassi

Foto: UnSplash

16 Agosto 2019

"Os processos migratórios, os novos movimentos religiosos, a individualização da espiritualidade, os chamados religiosos “à la carte”, aumentaram exponencialmente, trazendo um novo desafio para o Estado laico diante do pluralismo religioso e de convicções. Como acolher e respeitar os direitos dos cidadãos de todas as convicções, religiosas ou não, sem fugir do princípio de laicidade do Estado?". 

A pergunta é de Rita Macedo Grassi, mestra em Ciências da Religião pela PUC Minas e membro do Grupo de Pesquisa Religião, Pluralismo e Diálogo – REPLUDI.

Eis o artigo. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), artigo XVIII, afirma que "todos têm o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar sua religião ou crença, isoladamente ou em comum, tanto em público quanto em privado, através do ensino, prática, culto e cumprimento de ritos”. De acordo com a historiadora francesa Valentine Zuber (2018), após uma longa discussão sobre os fundamentos de tais direitos liderada pela UNESCO, concluiu-se que a DUDH "não tem autoridade sobrenatural", mas é "constituída pelo primeiro princípio da dignidade igual e inalienável da pessoa humana". Ela acrescenta que, em sua opinião, "as religiões e os direitos humanos compartilham o mesmo 'ideal comum', independentemente dos caminhos específicos que preferem seguir para chegar lá".

O sentido de "real igualdade de todos os cidadãos" e de "liberdade religiosa" teve início com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 na França. E, de certa forma, também promulga os princípios do secularismo e secularização - o primeiro dos quais é "um instrumento político" do segundo (ZUBER, 2017) - fazendo uma "dissociação entre afiliação religiosa e cidadania, e associando-a tanto à igualdade, à liberdade e à fraternidade". (ZUBER, 2018). A liberdade religiosa foi confirmada por lei no início do século XX e, a partir do início do século XXI, o secularismo e a secularização aprofundaram-se de maneira "irreversível", na França e na Europa (ZUBER, 2017).

Segundo Willaime (2007), “pesquisas atestam a integração do pluralismo no modo de se relacionar com uma verdade religiosa”. E, apesar do processo imparável de secularização e de laicidade do Estado, as pesquisas demonstram que o proclamado “esvaziamento da religião” não se configura na prática, mas na adesão à religião institucional. “A secularização reforça, assim, a especificidade do religioso, envolve a reconstrução da identidade religiosa como uma identidade minoritária, a instalação de religiões como subculturas e estruturas comunitárias em uma sociedade global secularizada e pluralista.” (WILLAIME, 2007). É um “movimento mais a incerteza” característica do período que o autor chama de "ultramodernidade".

Tal movimento provoca conflitos e várias incertezas; mas, também, deve ser considerado como "o tempo de encontros e confrontos entre as diferentes expressões religiosas da humanidade, encontros que alimentam tanto os diálogos fraternos e de alto teor espiritual, quanto medos, estereótipos e antagonismos". (WILLAIME, 2007). A crise também gera uma oportunidade de crescimento e autorreflexão, sobretudo quando os encontros e a convivência com o outro se tornam inevitáveis (PANIKKAR, 2008) e, diria também, indispensáveis. Segundo Zuber (2017), "é na real implementação do princípio da fraternidade, na consideração do outro e na busca do compromisso inerente ao funcionamento democrático que as crenças conflituosas e as certezas abaladas poderão finalmente dialogar.”

No entanto, os processos migratórios, os novos movimentos religiosos, a individualização da espiritualidade, os chamados religiosos “à la carte”, aumentaram exponencialmente, trazendo um novo desafio para o Estado laico diante do pluralismo religioso e de convicções. Como acolher e respeitar os direitos dos cidadãos de todas as convicções, religiosas ou não, sem fugir do princípio de laicidade do Estado?

Segundo Zuber (2017), "a obrigação democrática e o reconhecimento das crescentes desigualdades em nossa sociedade nos obrigam a buscar juntos um modo de vida comum. Para tanto, devemos considerar, através da escuta e do respeito, as múltiplas identidades e pertenças às quais os indivíduos que a compõem se dizem pertencer”. Ou seja, reconhecer e acolher o pluralismo religioso e de convicções, também como um fato incontestável na sociedade francesa e europeia atual. Nas palavras de François Becker:

[...] a Europa, sobrecarregada de experiências trágicas e superando os conflitos que sofreu, está sendo construída. É multinacional; é também multireligiosa, multiconvicções e multicultural. Esta construção foi iniciada em uma aspiração democrática. [...] Essa aspiração à democracia em todas as populações, junto com o processo de secularização, permite o surgimento de uma laicidade cada vez mais aceita por todos os países europeus. (BECKER, 2012, 23).

Uma pesquisa realizada recentemente, na França, pelo Laboratório da Fraternidade, tendo por objetivo "analisar como os franceses percebem a diversidade e suas interações com pessoas diferentes deles", constatou que 87% "acreditam que a França é um país de diversidade". (BAROMETER, p. 5). A diversidade neste caso é melhor traduzida como "diversidade étnico-cultural" e é vista como um fator positivo para a maioria dos franceses (81%). No entanto, é uma minoria (entre 46% e 49%) que de fato convive com pessoas diferentes, de acordo com a pesquisa, especialmente devido à "falta de oportunidades". (BAROMETER, p. 6-7).

O diálogo de interconvicções é fruto de um movimento europeu contemporâneo, que começou com um grupo francês chamado G3i, composto por "pessoas de diferentes religiões, convicções e culturas", com o objetivo de "refletir sobre os problemas da coesão social e da laicidade, numa Europa multicultural e multiconvicções". (QUELQUEJEU, 2012, p.1). Além de pessoas que se declaram participantes de diversas tradições religiosas, também inclui ateus, sem-religião, agnósticos, humanistas, etc. Segundo Bernard Quelquejeu, um dos fundadores do movimento:

Muito rapidamente, durante nossos encontros, entendemos que a expressão "diálogo inter-religioso" não nos convinha, pois excluía aqueles de nós que não se reconhecem como pertencentes ou referentes a uma religião estabelecida: começamos a falar sobre nossas respectivas convicções, de grupos de convicções e a nos compreender como praticantes de um "diálogo de interconvicções". (QUELQUEJEU, 2012, p.2).

De acordo com François Becker, a expressão "interconvicções" também vai mais além do "inter-religioso, porque esses confrontos dizem respeito a pessoas que podem ter convicções muito distantes de qualquer forma de religião, porque podem estar em campos políticos, sociais ou culturais muito diversos". Ao mesmo tempo, afirma não ser apenas uma “constatação estática” da existência de uma multiplicidade cultural ou de cultos. Descrito como 'inter' e não 'pluri', consiste em estimular encontros, debates e práticas que permitam às diferentes convicções expressarem-se, através de trocas e de confrontos, tendo como única condição o respeito recíproco dos interlocutores. (François Becker, p. 7). Isso quer dizer que a prática, o exercício dialógico, a própria ação, é uma característica importante desse movimento, que não se satisfaz com o diálogo pelo diálogo, mas consiste em ter um objetivo, um impacto social.

A palavra convicção, no sentido proposto, encontra-se no limite entre uma "‘certeza inabalável[...] e uma concordância ponderada’, ao fim de uma análise ou de um exame atento, firme o suficiente para justificar o engajamento a uma causa, mas sem excluir totalmente qualquer sombra de dúvida ou pelo menos a possibilidade de se questionar". (QUELQUEJEU, 2012, p. 22). É uma palavra que sugere sempre a possibilidade de mudança, de movimento, o que lhe confere um aspecto muito importante nos contextos de dogmatismos ou de fundamentalismos religiosos, e de radicalização e autoritarismo políticos, que estamos vivenciando atualmente no mundo inteiro. Para James Barnett, "as convicções são mais suscetíveis ao desenvolvimento e à evolução do que as certezas, e a interconvicção é mais inclusiva do que o inter-religioso”. (BARNETT, In: BECKER, p.20)

O que nos remete à importância para este movimento do "processo de emancipação", na transformação de preconceitos (mesmo que não no sentido pejorativo da palavra, mas como ideias que são adquiridas "no meio familiar, cultural ou social") em convicções. Segundo Becker, esse processo é "movido por um desejo, uma sede pela verdade", que "só pode ser realizado nas interações com os outros, na escola, nas leituras, nas associações, nos vários encontros". (Diasporiques, p. 6-7) Ele, também, tem um caráter de constante e infinita transformação, se levarmos em conta o fato de que essas interações podem acontecer o tempo todo na vida cotidiana, quando estamos realmente conscientes disso. (QUELQUEJEU, 2012).

Os lugares onde ocorre a emancipação são também os locais de encontro e de confronto com o outro e suas próprias convicções. É por essa razão que uma "prática de interconvicções", onde "a crítica que vem com a diferença e com a alteridade", é absolutamente necessária para que as convicções permaneçam vivas e em plena transformação. Esta prática é, no entanto, também "uma necessidade da vida coletiva, mais precisamente da ação política". (QUELQUEJEU, p. 5).

E, é nesse sentido, que o G3i organizou, em 2012, uma Jornada de Estudos no Conselho Europeu que, de acordo com James Barnett, está cada vez mais interessado pela Religião e suas derivações, incluindo o diálogo inter-religioso e a dimensão religiosa do diálogo intercultural. Essa jornada tinha, de acordo com Barnett, como principal objetivo discutir o "processo democrático", no que diz respeito "à presença dos cidadãos e à sua contribuição para o debate político, bem como seus direitos de serem ouvidos por aqueles que tomam decisões a nível governamental e europeu". E a principal crítica dos criadores do movimento de interconvicções é que, apesar de estar escrito no Tratado de Lisboa, que "... respeita igualmente o estatuto do qual beneficiam-se, igualmente, as organizações filosóficas e não confessionais nos termos da lei" (§2). ), com as quais "a União (Europeia) mantém um diálogo aberto, transparente e regular", na prática essas organizações "afirmam que não têm as mesmas oportunidades de serem ouvidas", que igrejas e movimentos religiosos em geral. (BARNETT e QUELQUEJEU In: BECKER, p. 18-19).

Barnett acrescenta que, a importância de incluir os movimentos de interconvicções nos debates democráticos da União Europeia, deve-se ao fato de que esses movimentos "valorizam as convicções do outro em um contexto cujos princípios dependem de uma laicidade, que garanta um espaço neutro para as convicções pessoais e para a prática que se segue, sempre levando em conta um contexto religioso desinstitucionalizado". (BARNETT, James, 20). Que é, em nossa opinião, mais representativa dos movimentos "ultramodernos" dos quais fala Willaime.

Outros movimentos de interconvicções se desenvolveram na Europa, dos quais destacamos o Coexister, movimento francês fundado em 2009, para e por jovens de diversas convicções, e que está se expandindo para outros países europeus. Eles se baseiam em uma filosofia de "coexistência ativa", que se torna um "método de campo" para "promover uma vida melhor em conjunto", sempre reconhecendo a diversidade como uma oportunidade para "criar laços sociais". O que foi expresso pelo slogan "diversidade de convicções, unidade na ação". Como prática, oferecem experiências de diálogo, de solidariedade e de conscientização, onde os jovens "aprendem a colocar suas convicções individuais - espirituais, filosóficas ou religiosas - a serviço dos outros ou da sociedade". (GRZYBOWSKI, p.3).

 

Referências:

BAROMÈTRE 2019 de la fraternité : seconde édition. Laboratoire de la Fraternité. France, 2019.
BECKER, François (Org.). Devenir citoyens et citoyennes d’une Europe plurielle. Conseil de l’Europe, Strasbourg, 24 janvier 2012.

DECLARATION universelle des droits de l’homme

GRZYBOWSKI, Samuel. Enquête : quels sont les préjugés des jeunes sur les religions ? Paris : Coexister, 2018.

INTERCONVICTIONNALITE, vérité et liberté de pensée. Diasporiques, n. 33, avril, 2016, p. 6-19.

PANIKKAR, Raimon. L’inévitable dialogue: Dieu, Yahweh, Allah, Bouddha... France: Le Relié, 2008.

QUELQUEJEU, Bernard. Les convictions partagées dans l’espace politique: quelques discernements sémantiques et sociologiques. In: BECKER, François (Org.). Devenir citoyens et citoyennes d’une Europe plurielle. Conseil de l’Europe, Strasbourg, 24 janvier 2012.

ZUBER, Valentine. La défense de la liberté religieuse dans le contexte international : multiplicité des acteurs, polarisations des combats ? Alain

ZUBER, Valentine. La laïcité en débat. Au-delà des idées reçues, Paris, Le Cavalier bleu, 2017.

ZUBER, Valentine (éd.), La liberté religieuse. Paris, Vandieren éditions, 2017.

ZUBER, Valentine. « Les soixante-dix ans de la Déclaration universelle des droits de l’homme. Un anniversaire en demi-teinte », Le Débat, 2018/IV, n°201, p. 106-121.

ZUBER, Valentine. L’origine religieuse des droits de l’homme. Le christianisme face aux libertés modernes, Genève, Labor et Fides, 2017.

 

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