O trabalho doméstico: sócio oculto do capitalismo. Entrevista com Mercedes D’Alessandro

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02 Março 2018

Mercedes D'Alessandro é uma das economistas feministas que suscitaram o maior interesse nos últimos anos. Em 2015, lançou o portal “Economia feminista". A página da web, que conta com a colaboração não só de um grupo de economistas, mas também de especialistas em outras disciplinas, conseguiu inserir a economia com perspectiva de gênero na agenda pública latino-americana e a conquistar as redes sociais. D'Alessandro, que vive em Nova York, publicou em 2016 Economia feminista. Cómo Construir una Sociedad igualitária (sin perder el glamour) da qual já foram publicados seis edições.

A entrevista é de Silvina Pérez, publicada no caderno “Mulheres-Igreja-Mundo”. O caderno é uma publicação mensal do jornal L’Osservatore Romano, março 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Mercedes D'Alessandro, economista jovem e inovadora, escreve e pensa sobre o trabalho feminino de um ponto de vista novo que tem despertado muito interesse e discussão na cultura feminista.

Eis a entrevista.

O feminismo não é uma novidade, sempre existiu. A ideia de que a mulher deva ter os mesmos direitos do homem é um fato cultural confirmado. Então, o que tem de especial em ser uma feminista no momento histórico em que vivemos?

Uma grande diferença é o papel que nós mulheres hoje desempenhamos no sistema econômico. Na década de 1960, apenas duas em cada dez mulheres trabalhavam fora de casa, hoje são sete em cada dez.

Isso transformou completamente as relações econômicas e sociais. Em geral, as mulheres têm mais autonomia, porque têm uma profissão e dispõem de seus próprios ganhos. Nos EUA, são 50 por cento da força de trabalho, na Argentina mais de 40 por cento. Mas tudo isso foi alcançado e se obtém com o preço de uma dupla jornada de trabalho: as mulheres, na maioria dos casos, continuam a cuidar das tarefas domésticas e cuidar da família. Essas tarefas exigem muito tempo (uma média de seis horas por dia) e para quem não pode se permitir pagar uma colaboradora doméstica ou ter uma creche para as crianças, se tornam um obstáculo. Muitas mulheres precisam reduzir o número de horas de trabalho para conseguir da conta de tudo, ou trabalhar muito mais, sem jamais descansar, comprometendo assim a sua saúde e o seu crescimento pessoal. Hoje a mulher é feminista com essa dupla identidade, com mais oportunidades, mas ainda culturalmente confinada a um papel doméstico e, portanto, mais exposta a uma maior exploração. Além disso, em média, ganhamos menos do que os homens nossos pares e não conseguimos alcançar funções de direção. Simplificando, o capitalismo tem um sócio oculto: a mulher que realiza trabalhos domésticos não remunerados. E se as coisas mudassem, o mercado sofreria as consequências.

Nos anos 1970 (como resultado das lutas sociais de 1968), o feminismo radical afirmava que o pessoal é político e que as relações entre homens e mulheres são relações de poder.

Acredita que a situação ainda é a mesma?

Quando falamos de trabalho doméstico não remunerado como de um problema social, é ainda assim. Por que alguém poderia dizer que as mulheres optam por ficar em casa e criar os filhos em vez de fazer carreira. Mas essas são escolhas que são feitas no contexto de uma sociedade em que, por exemplo, uma mãe tem três meses de licença maternidade e o pai tem dois dias (pelo menos na Argentina). O pai pode ter toda a vontade quiser para cuidar de seu filho, mas não tem nenhuma possibilidade. Além disso, uma mãe que deixa o seu lugar na família para trabalhar é contestada, enquanto nos felicitamos com um pai que se "sacrifica" pela sua família e fica fora de cada todo o dia. Então, até que ponto as decisões pessoais são privadas? "O pessoal é político" é um lema ainda vigente, que também se refere à violência sexista e a determinadas formas de enfrentamento dos problemas para buscar soluções globais.

Há uma mudança de guarda entre as veteranas lutadoras dos anos 1970-80, com o olhar muito combativo, mas talvez um tanto sectário, e as jovens atuais? Existe um fio condutor entre o antigo feminismo e o de hoje? E o feminismo de hoje sobre o que se fundamenta e em que se diferencia daquele do passado?

Eu acredito que cada ciclo feminista tenha tido características e debates internos muito construtivos. Eu não vivi aqueles do passado, que conheço apenas através de testemunho dos livros e de relatos. Eu acho que, de toda forma, não foram menos apaixonantes do que os atuais. Hoje em dia existem muitos grupos e ideias, o feminismo é muito diferente. O patriarcado, ao contrário, não mudou muito. Quando se lê sobre as razões pelas quais as mulheres não podiam votar, ainda parecem atuais... Em todo caso, acho que o desafio - não só do feminismo, mas também da nossa geração - é de encontrar uma alternativa viável para o mundo em que vivemos. Vivemos em uma sociedade desigual e essa desigualdade aumenta em relação ao gênero e à cor da pele. As mulheres pobres, migrantes, negras são os que mais sofrem com os efeitos da desigualdade. Nosso sistema econômico nos contrapõe à natureza. Há tantas coisas para desmantelar. Nesse sentido, o feminismo tem muito a oferecer.

É uma notícia recente que a importante redatora de notícias da BBC Carrie Gracie deixou seu cargo pela persistente disparidade salarial existente entre homens e mulheres na televisão estatal britânica. No mundo há uma discriminação sistemática contra as mulheres? Como é que a diferença salarial e a insegurança no emprego são o pão cotidiano de milhões de mulheres em todo o mundo?

Tendo um maior ônus no trabalho doméstico não remunerado e nos cuidados familiares, as mulheres têm menos tempo para trabalhar formalmente. E, portanto, realizam trabalhos precários, que são os menos remunerados. Elas consequentemente têm menos oportunidade de crescer em sua carreira, profissão ou emprego. O que as torna mais pobres. A pobreza é sexista. A insegurança no emprego é o pão cotidiano de milhões de mulheres. Claro, nem mesmo os homens escapam de um mercado de trabalho cada vez mais difícil, que só pode piorar no ritmo das mudanças tecnológicas e da robotização. A diferença salarial é um sintoma de uma doença mais profunda do sistema que deve ser atacado nas suas raízes.

De acordo com o Fórum Econômico Mundial em 2017 a diferença na relação homem-mulher não só não está diminuindo, mas até aumentando. Além disso, os dados indicam que o caminho foi invertido em sentido negativo. A sua leitura nos mostra um mundo em que, por exemplo, um país como a Alemanha, o motor da União Europeia, tem a terceira maior disparidade salarial da Europa. Em sua opinião, o que pode ser feito para reverter a situação?

Os dados do Fórum Econômico Mundial, e também da Organização Internacional do Trabalho, mostram que as disparidades não estão se atenuando. Há anos que em todos os fóruns mundiais fala-se de emancipação das mulheres, mas, quando se tenta ver o que foi feito em tal sentido, o quadro é muito triste. Mesmo nas questões mais básicas. A ONU faz grandes discursos, mas em toda a sua história nunca teve uma secretária mulher. Os países nórdicos são geralmente o farol nesse campo e suas políticas públicas em matéria de apoio à família têm dado excelentes resultados. Por exemplo, nas licenças maternidade e paternidade estendidas, compartilhadas e obrigatórias para ambos os pais. Mas ainda há muito a fazer.

Do ponto de vista da ciência econômica, como explica o fato que o mercado aponte em colocar a mulher em segundo plano no sistema de emprego?

Eu não sei se o mercado entendido como uma entidade abstrata, aponte para alguma coisa. O que, sim, acontece é que - como Heather Bushey afirma - o capitalismo tem um sócio oculto: a mulher que realiza trabalhos domésticos não remunerados. Milhões de horas de trabalho não remuneradas que são feitas em silêncio e que são vitais para manter todos os outros trabalhos. Sem essa mulher que lava, passa, arruma, faz as compras, confere os deveres dos filhos, os leva para a escola ou para a academia, varre o chão e cozinha, dificilmente poderiam ser continuadas todas as outras atividades. Essa ideia ficou colada na mulher, como se fosse parte de sua natureza, como se fosse uma sua responsabilidade.

O que, em um mundo onde as mulheres trabalham oito horas por dia, não só é injusto, mas também é prejudicial. O que quero dizer é que para o mercado é cômodo ter trabalhadoras multitarefa e gratuitas nas casas.

Conte-nos um pouco o que é "Economia Feminista". No que consiste? Quando decidiu embarcar nessa aventura e quais foram suas motivações?

"Economia Feminista" é um site criado como um espaço de reflexão para as mulheres economistas sobre temas que não faziam parte da agenda, nem da grande mídia nem dos nossos colegas economistas. Nasceu acompanhada pelo grito "Ni Una Menos', o que lhe garantiu um espaço mais que importante no debate mais amplo vinculado a todas as desigualdades que nós mulheres vivemos e que vão da violência masculina à econômica, passando pelos estereótipos que nos são impostos e que nos limitam. O site, e especialmente o debate nas redes sociais, mostrou-me, pessoalmente, que na economia feminista havia muitas perguntas sem resposta e serviu-me de inspiração para escrever o livro Economia feminista. Como o site, eu queria que fosse um lugar que oferecesse ideias, debates e, sobretudo, fosse informativo. Quem o lê poderia aprender algo novo, mas não como uma anedota, mas como algo que poderia lhe fornecer ferramentas para transformar este mundo desigual e patriarcal. Dois anos após a abertura do site e da publicação do livro, eu posso dizer com grande orgulho e satisfação que temos contribuído muito para o debate, e, ao mesmo tempo, nos enriquecemos incrivelmente através do relacionamento contínuo com as nossas correspondentes. É o lugar em que me interessa colocar em ato a minha própria formação acadêmica. Espero sinceramente que possa superar as formas e as barreiras das universidades e forjar ferramentas, para contribuir diretamente para as expressões populares do feminismo.

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