Os filhos dos padres: a nova investigação da equipe Spotlight

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20 Agosto 2017

A equipe “Spotlight” do jornal Boston Globe – a do filme – publicou a sua investigação mais recente: sobre o celibato na Igreja Católica e sobre os sacerdotes que se tornaram pais.

A reportagem é publicada por Il Post, 17-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O Boston Globe, histórico jornal de Boston, fundado em 1872, publicou na quarta-feira, 16, a mais recente investigação da Spotlight, a sua equipe de jornalismo investigativo, uma das mais famosas do mundo. A investigação, dividida em duas partes (aqui e aqui) refere-se aos filhos de sacerdotes católicos, filhos “ilegítimos”, já que, há nove séculos, a Igreja Católica impõe o celibato aos seus sacerdotes: a reportagem relata a história de alguns deles, de como vieram a saber, ao longo da sua vida, que eram filhos de padres, as dificuldades e os problemas que tiveram de enfrentar e as respostas que a Igreja deu ao tema nos últimos anos.

A investigação também foi muito comentada por causa da notoriedade obtida pela equipe investigativa do Boston Globe depois do lançamento do filme “Spotlight”, em fevereiro de 2016, que, entre outras coisas, ganhou o Oscar de melhor filme.

Michael Rezendes, autor dos dois artigos do Boston Globe e membro da equipe Spotlight (no filme Spotlight, ele é o jornalista interpretado por Mark Ruffalo), contou ao programa CBS This Morning que começou a investigação depois de ter tomado conhecimento da história de um dos muitos filhos de sacerdotes nos Estados Unidos, Jim Graham, e de ter percebido que não era um episódio isolado – uma exceção, como a Igreja defende há muitos anos –, mas sim uma situação que, provavelmente, envolve milhares de pessoas em todo o mundo: “Eu entendi que era algo sistemático e merecia toda a minha atenção”, disse Rezendes.

Os artigos da equipe Spotlight partem daí, da história de Graham e das suas pesquisas – que começaram há mais de 20 anos – para descobrir algo mais sobre o seu pai biológico.

Graham, conta o Boston Globe, passou a sua juventude e parte da sua vida adulta se perguntando por que aquele que ele acreditava que era o seu pai – John Graham, proprietário de um posto de gasolina em Buffalo, no Estado de Nova York – o detestava tanto assim.

Em 1993, quando os seus pais já estavam mortos, Graham voltou a Buffalo, onde se encontrou com os seus tios, para saber a verdade sobre o seu passado. Sua tia Kathryn mostrou-lhe uma carta de uma ordem religiosa católica: colocou o dedo sobre a fotografia que retratava um homem calvo, com o olhar triste, usando o colarinho eclesiástico, o colarinho branco dos padres: “Só os teus pais sabem ao certo, mas esse homem poderia ser teu pai”. Aquele homem era o reverendo Thomas Sullivan, que tinha se formado no Boston College e que, depois, tinha estudado como sacerdote em Tewksbury, Massachusetts.

Tempos depois, Graham veio a saber que aquele que ele tinha pensado por muito tempo que era o seu pai, John Graham, descobriu que a sua esposa o havia traído com Sullivan e por isso queria o divórcio: “Eu parecia muito com o meu pai [Sullivan]. Devo ter sido [para John Graham] uma constante recordação do homem que tinha levado a esposa embora”.

Hoje, Graham ainda está aguardando a confirmação oficial de que o seu pai era Sullivan.

Outra história muito intensa contada pelo Boston Globe é a de Chiara Villar, uma mulher de 36 anos que vive na periferia de Toronto, no Canadá. Villar sabe que é filha de um padre desde quando era muito pequena, mas a sua mãe sempre lhe disse para se referir a ele como a um tio: “Eu me perguntava por que ele não podia ser meu pai. Por isso, comecei a me sentir culpada”.

A mãe de Villar, Maria Mercedes Douglas, conheceu Anthony Inneo no início dos anos 1970, em Buffalo. Douglas não sabia que Inneo era sacerdote; quando o conheceu, ele não usava o colarinho branco. Depois de retornar a Madri por um tempo, Douglas voltou para Buffalo, onde tinha amigos, e começou um relacionamento com Inneo. Quando Inneo lhe disse que era sacerdote, Douglas não pôde acreditar: “Parecia uma piada de mau gosto”, contou ela ao Boston Globe.

Os dois continuaram, mesmo assim, o seu relacionamento, e Inneo lhe prometeu que logo deixaria o sacerdócio. Depois, um dia, ela descobriu que estava grávida: “Foi um choque. Eu não sabia o que fazer”. Ela disse isso a Inneo, mas ele respondeu que ainda não estava pronto para abandonar a sua vida religiosa. Ela começou a acreditar que ele nunca faria isso.

Desde pequena, Chiara Villar – a filha de Douglas e Inneo – sabia a verdade sobre o seu pai, mas não podia dizer a ninguém: “Eu acho que [os meus pais] não entendiam o trauma psicológico que me provocaria o fato de me pedirem para mentir”, contou Villar. Nos anos seguintes, Inneo visitou regularmente a sua filha, com quem tinha um ótimo relacionamento, mas Villar foi forçada a continuar mentindo: “Em privado, ele era o meu pai, mas, em um instante, quando saíamos do carro da minha mãe, era algo como: ‘Ok, Chiara, que Deus te abençoe’. Era todo um Dr. Jekyll e Sr. Hyde”.

Quando era mais velha, Villar começou a se sentir culpada e a se considerar não merecedora do amor do seu pai: começou a fazer cortes no seu corpo regularmente. Villar nunca teve a possibilidade de ter um relacionamento normal e público com o seu pai: depois que Inneo ficou doente de Alzheimer, a sua família o colocou em uma casa de repouso sem lhe dizer nada. Ela encontrou o endereço e foi encontrá-lo, mas a doença já estava em fase avançada, e ele não a reconheceu: “Ele me escondeu durante toda a vida, depois ficou doente de Alzheimer e me esqueceu”, contou Villar ao Boston Globe.

O Boston Globe escreveu que, provavelmente, existam milhares de filhos de sacerdotes em todo o mundo: Irlanda, México, Polônia, Paraguai, Estados Unidos e muitos outros países, onde quer que a Igreja Católica esteja (portanto, obviamente, também na Itália).

Não se pode saber o número exato, mas, nos últimos anos, muitos deles entraram em contato graças a um site criado por Vincent Doyle, filho de um padre católico irlandês que descobriu a verdade sobre a sua família quando tinha 28 anos (foto acima). Graças ao site, chamado Coping International, Doyle conheceu dezenas de filhos de padres, incluindo muitas pessoas que, por causa da sua história – às vezes por serem forçadas a mentir, outras por falta de um apoio financeiro por parte do pai biológico –, tiveram problemas psicológicos e econômicos.

Doyle também tentou se dirigir diretamente ao papa. Em junho de 2014, ele foi a São Pedro para participar da missa do domingo. Quando o Papa Francisco passou diante dele, beijou-lhe o anel e lhe deu uma carta traduzida ao espanhol que falava da situação dos filhos dos sacerdotes. Doyle pareceu ver o papa lendo o primeiro parágrafo da carta: “Ele tinha um olhar sincero e profundo no seu rosto. Depois, apertou a carta perto do coração e disse: ‘Sim, sim, vou lê-la’”. Mas Doyle nunca recebeu uma resposta. Enquanto isso, a Igreja Católica continuou tratando os filhos dos sacerdotes como situações negativas, mas “excepcionais”, minimizando a dimensão do fenômeno.

O Direito Canônico, o sistema de leis, regras e princípios que a Igreja usa para governar o mundo católico, não explica como a Igreja deveria se comportar caso um sacerdote tenha filhos. A contribuição econômica à mãe da criança depende da generosidade do sacerdote, não existe nenhuma obrigação.

“Alguns sacerdotes, nos casos analisados pelo Globe, assumiram as suas responsabilidades a sério. São pais dedicados, embora em privado. Alguns prometeram às mães dos seus filhos que deixariam o sacerdócio, mas poucos o fizeram. Outros as confortaram dizendo que seria apenas uma questão de tempo antes que a Igreja abandonasse a obrigação do celibato, decisão que, no entanto, papa após papa, incluindo o Papa Francisco, nunca foi tomada.”

Em muitos casos, os sacerdotes não assumiram a responsabilidade financeira ou legal pelos seus filhos. Dos 10 casos analisados profundamente pelo Boston Globe, apenas duas mães decidiram recorrer a um tribunal para obter algum tipo de apoio para os seus filhos, enquanto todas as outras deixaram que o padre-pai decidisse quanto dar e estar presente.

Em outros casos, escreveu o Boston Globe, não houve sequer a necessidade de o sacerdote pedir sigilo: as mães profundamente católicas consideram-no não apenas como o pai dos seus filhos, mas também como um representante de Deus. Isso fez com que as mulheres vítimas de abusos sexuais fossem relutantes em denunciar às autoridades aquilo que acontecera, porque muitas vezes assumiam a culpa da violência.

Nos últimos anos, foram poucas as lideranças da Igreja Católica que falaram sobre a situação dos sacerdotes com filhos. Um deles foi o arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, que, entre outras coisas, ajudou Doyle a lançar o seu site, Coping International. Martin disse: “Uma criança tem o direito de conhecer o seu pai, e todo pai tem obrigações fundamentais para com o seu filho ou filha”.

Recentemente, a Conferência Episcopal da Irlanda aprovou diretrizes que pedem que todo sacerdote com filhos “enfrenta as suas responsabilidades pessoais, legais, morais e financeiras”, mas não pedem a renúncia ao sacerdócio. Doyle esperava que tal decisão fosse tomada também pelo Vaticano, mas as coisas ocorreram de forma diferente.

O cardeal Sean O’Malley, importante conselheiro do Papa Francisco e chefe da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, escreveu um breve comunicado sobre a questão em resposta à investigação do Boston Globe. Em uma passagem, lê-se que cada sacerdote que teve um filho tem “uma obrigação moral de se afastar do sacerdócio e providenciar o cuidado e as necessidades da mãe e do filho”. O’Malley acrescentou que a comissão que ele preside não lida com essas situações, porque iriam além do seu mandato.

Há três anos, a Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança falou dos casos em que os sacerdotes católicos haviam obrigado as mulheres grávidas dos seus filhos a permanecerem em silêncio para evitar o escândalo, em troca de apoio financeiro. A comissão pedira que o Vaticano dissesse qual era o número das crianças filhas de sacerdotes, descobrisse quem eram e tomasse todas as medidas necessárias para assegurar que os direitos dessas crianças fossem garantidos. O Vaticano deverá fazer isso até o dia 1º de setembro deste ano.

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