Gaël Giraud: o jesuíta que enfrenta os bancos

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Por: André | 04 Junho 2014

O economista Gaël Giraud (foto), autor de Illusion Financière [Ilusão Financeira], denuncia a coalizão entre bancos e as altas finanças públicas, e propõe um ponto de vista comprometido sobre a crise.

 
Fonte: http://bit.ly/1rJJtR7  

Os católicos agrupam decididamente em sensibilidades muito diferentes. Há aqueles que se manifestam contra o casamento homossexual, mas há também outros. E, entre estes últimos há um que coloca problemas a esse governo social-liberal. Chama-se Gaël Giraud. Uma cabeça bem feita: diplomado na Escola Normal Superior de Ulm e na Ensae, uma tese na Escola Politécnica, um economista reconhecido. Seria perfeito, se não tivesse entrado numa congregação religiosa e é, hoje, jesuíta. Em 2009, foi selecionado para o Prêmio de Melhor Jovem Economista, concedido pelo Le Monde e pelo Círculo de Economistas da França.

Gaël Giraud (1970) é diretor de pesquisa do CNRS, membro do Centro de Economia da Sorbonne e da Escola de Economia de Paris e professor associado na ESCP-Europe, pertence ao conselho científico do Laboratório sobre Regulação Financeira e do Observatório Europeu Finance Watch. Leciona, além disso, no Centre Sèvres, dos jesuítas, e é membro do conselho cientifico da Fundação Nicolas Hulot para a natureza e homem.

A entrevista é de Bertrand Rothé e publicada no sítio da revista francesa Marianne, 05-03-2014. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Você não é o que poderíamos chamar de neoliberal. Você quer uma reforma do euro e um compromisso da Europa a favor de um protecionismo ecológico e social... Você confirma?

Exato. Eu acrescentaria a necessária regulamentação dos mercados financeiros, que começou apenas em 2008. Tudo isso, na minha opinião, deveria ser colocado a serviço do verdadeiro projeto de sociedade que constitui a transição energética.

É, no entanto, por uma outra razão que o Ministério da Economia e das Finanças não gosta de você. Gostaria de nos contar as suas brigas com esta instituição?

No começo, tínhamos o excelente compromisso do candidato Hollande de separar os bancos de crédito dos bancos comerciais a fim de proteger os franceses das turbulências dos mercados financeiros. Os bancos, no entanto, foram responsáveis em grande medida pela redação do projeto de lei durante o verão de 2012. Resultado: o preâmbulo da lei afirma que separa, ao passo que o corpo do texto não separa nada.

Na prática, a Lei Moscovici-Berger [Karine Berger, relatora do Projeto de Lei, que o defendeu com unhas e dentes] “obriga” os bancos a converter em filial no máximo 1,5% das suas atividades de mercado. Ora, primeiro, converter em filial não basta para proteger a matriz: o norte-americano American International Group (AIG, a maior seguradora do mundo) entrou em falência em setembro de 2008 por causa de uma pequena filial parisiense. Segundo, o grosso das atividades de risco (trading de alta frequência, trading por conta própria, transações com os hedge funds) continua localizada na matriz. Terceiro, a lei bancária francesa mistura o fundo de garantia dos depósitos dos franceses com o fundo de salvamento do sistema bancário. Bancos e fundos especulativos podem, portanto, recorrer ao fundo de garantia dos depositantes para se salvar em caso de crise. Os poupadores franceses já não estão, portanto, mais assegurados.

Em Dublin, o governo, pressionado pela troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional] atreveu-se a esvaziar o fundo de financiamento das aposentadorias dos irlandeses para pagar as dívidas de seus bancos naufragados. Nós legalizamos por antecipação um assalto à mão armada análogo.

Em dezembro de 2012, eu tomei a iniciativa de escrever um relatório para esclarecer os parlamentares sobre o Projeto de Lei. Bercy elaborou imediatamente uma contranota, e depois me impôs participantes numa mesa redonda que eu organizei na Sorbonne sobre o tema, antes de reclamar, em vão, a supressão de uma nota da fundação Terra Nova que eu escrevi com uma colega, Laurence Scialom (1). Por outro lado, um banqueiro que eu conheço também me procurou para me pressionar a fim de me calar.

Podemos imaginar que suas escolhas de vida sejam difíceis de compreender para um banqueiro. Eles optaram pelos milhões, você fez voto de pobreza!

Eles temiam, sobretudo, que o debate se tornasse público. Se os franceses tivessem se interessado pelo Projeto de Lei Moscovici-Berger, certamente teriam reclamado em massa uma autêntica separação. É, em todo o caso, a experiência que eu faço todas as vezes que dou uma conferência. Fez-se de tudo, inclusive na organização do calendário parlamentar, para que a lei bancária fosse resguardada do debate público. Assim, ela pôde ser votada em julho passado na indiferença quase total do grande público.

É preciso compreender, na sua opinião, que o poder socialista é mais ou menos refém dos bancos?

Em parte, sim. É verdade que com Sarkozy os banqueiros iam à noite ao Elíseo para explicar a política da França. Atualmente, o governo simula a colocação em prática das suas próprias promessas.

A história desta lei bancária acaba de ser contada por três jornalistas (2), e não está fechada: recentemente, o comissário europeu Michel Barnier propôs uma diretriz de separação bancária que, embora me pareça insuficiente, é claramente mais séria que a lei francesa. Ora, no mesmo dia, o governo do Banco da França, Christian Noyer, declarou publicamente que esta proposição é “irresponsável”. Aqui temos um alto funcionário que preside a instância de regulação do setor bancário francês e que se permite faltar ao dever de reserva ao qual o obrigam suas responsabilidades, a fim de defender de maneira indignante o interesse exclusivo dos bancos.

Este deslize, entre muitos outros, trai a colusão entre a alta finança pública e a alta finança privada que paralisa, atualmente, a nossa sociedade. Como espantar-se, depois, se o artigo 60 do projeto de lei das finanças 2014 concede uma anistia generalizada do setor bancário proibindo as coletividades locais, eventualmente arruinadas, entrar com processos contra os bancos que lhes venderam ativos financeiros podres?

Podemos dizer que o poder dos bancos é maior que o poder do mundo político hoje?

O orçamento do BNP Paribas é maior que o PIB francês (no total, dois trilhões de euros). A corrida ao gigantismo outorga a esses bancos um considerável poder de chantagem, porque a França tem ainda menos meios para absorver a quebra de um monstro como este que o projeto europeu de fusão bancária, se for aprovado, não permitirá salvar os nossos megabancos em caso de perigo. Os bancos tentam, portanto, neutralizar as iniciativas reguladoras fazendo valer que tudo o que prejudica os seus interesses imediatos os fragiliza e que, caso morrerem, todos nós morreremos com eles. As regras prudenciais de Basileira III, por exemplo, tornaram-se pouco a pouco inofensivas pelas emendas que os bancos conseguem arrancar do comitê de Basileia.

Outro exemplo: em janeiro de 2012, quando se tratava de reestruturar a dívida pública grega, havia quatro negociadores na mesa de Atenas: Merkel, Sarkozy e dois banqueiros, Pébereau pelo BNP Paribas e Ackermann pelo Deusche Bank. A razão imediata da presença destes banqueiros, discutindo de igual para igual com chefes de Estado e de governo uma saída para a Grécia, está clara: os principais detentores da dívida pública grega não eram outros senão os bancos franceses e alemães. E no essencial foi para salvar os nossos bancos que destruímos a sociedade grega. Confiar tal poder de negociação aos banqueiros diz muito sobre o estado da democracia na Europa: imagine o JP Morgan ajustando os detalhes do Tratado de Versalhes?

No marco do seu trabalho e das suas lutas, que poder lhe dá sua condição de jesuíta?

Em primeiro lugar, eu como com meus companheiros a mesma sopa na janta, independentemente, por outro lado, do que penso do setor bancário. Isso permite pensar livremente. Depois, a vida da partilha comunitária é uma experiência fundamental de bens comuns, no sentido do economista Elinor Ostrom: hoje, nossas sociedades redescobrem os bens comuns via Vélib’, Vélo’v [sistemas públicos de aluguel de bicicletas], a condução compartilhada, a economia da funcionalidade, etc. e esse aprendizado me parece decisivo para a transição energética. Induz a uma transformação radical da nossa relação com a propriedade privada. E a vida religiosa ocidental pratica tudo isso há pelo menos 15 séculos!

Você tem contatos frequentes com políticos de esquerda?

Encontro-me com políticos tanto da esquerda como da direita. O que me surpreende é a ausência de projeto na ala strauss-kahniana do Partido Socialista. Esse partido, atualmente, não se atreve a autorizar o menor debate em seu interior, por medo de fragilizar o governo. Em relação às principais decisões tomadas por este último em matéria econômica: assinatura do TSCG [Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governo]; manutenção da austeridade orçamentária, quando a experiência europeia mostra que isso aumenta a relação dívida/PIB; política de oferta que não reduzirá o desemprego em massa e ameaçam nos mergulhar na deflação com o conjunto do sul da Europa.

É por isso que uma iniciativa como a criação do Partido Nouvelle Donne (3), que já possui uma representante na Assembleia Nacional, me parece extremamente promissora. É vital que o debate na economia política possa renascer na Europa e que reaprendamos a “pensar fora círculo de giz”. Na Espanha, a incapacidade dos “indignados” de formular uma alternativa articulada com o empenho de demolir o Estado-Providência em proveito dos bancos colocado em prática por M. Rajoy acabou por esgotar o movimento. Estou convencido de que a transição energética é a via de saída pelo alto da armadilha deflacionista na qual a austeridade orçamentária e os excedentes de dívidas privadas (e não públicas) encerram o continente. Nós temos necessidade de criatividade social e política a fim de empreender conjuntamente esta transição.

Como a sua hierarquia jesuíta reage às suas tomadas de posição?

Meus superiores consideram que participar do debate público faz parte do meu trabalho de diretor de pesquisa no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica). O vai e vem entre a pesquisa e a arena pública é fecundo, tanto para o mundo acadêmico como para a democracia.

Eu tenho dúvidas. Há, contudo, muitos conservadores dentro da Igreja...

A nossa Igreja possui uma burocracia que, como todas as burocracias (Império Chinês, Bercy, o grupo do CAC 40...), pode ser tentada a fazer passar sua perpetuação em seu ser antes da sua própria missão evangélica. Esse “conservadorismo” não deve surpreender, pelo menos desde Max Weber. O Papa Francisco empreendeu uma reforma do Vaticano na direção de uma maior transparência e colegialidade, e quando observo o baile de relatórios entre serviços ministeriais ou as guerras travadas pelos ‘baronnies’ dentro das grandes multinacionais, eu me pergunto onde estão os verdadeiros conservadores.

Quais são os outros assuntos com os quais você se ocupa?

Há, pelo menos, dois. Eu fiz parte, no ano passado, do comitê de especialistas para o debate nacional sobre a transição ecológica. Esse comitê fez um excelente trabalho: foram avaliados e propostos ao governo quatro grandes cenários de transição para a França. Soluções de financiamento inovadoras foram sugeridas, que não aumentam a dívida pública francesa. É preciso, certamente, continuar o trabalho para apreciar a confiabilidade destes cenários e das soluções de financiamento. Cabe ao governo aproveitar esses roteiros, orquestrar um verdadeiro debate democrático sobre as escolhas da sociedade que elas implicam e impulsionar a transição. Certamente, seria necessário um pouco de voluntarismo saint-simoniano. Sobretudo, temos que nos livrar desse conto de fadas segundo o qual os mercados financeiros desregulados são eficazes e enfrentarão no nosso lugar o desafio clima-energia. A lei de programação sobre a transição, prevista para o próximo verão, e o Congresso de Paris 2015 poderão ser etapas decisivas nesse sentido.

E o segundo?

É o Tratado de Livre Comércio em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos. Afora alguns jornais, esta negociação interessa apenas aos jornalistas. Ora, esse tratado pode tornar-se uma verdadeira bomba: uma das suas cláusulas poderia autorizar as multinacionais a demandar a um Estado caso esse aprovar uma lei que prejudique os interesses da empresa. Por exemplo, uma empresa que tivesse investido na França e que se sentisse prejudicada pela revalorização do SMIC (Salário Mínimo Interprofissional) poderia obrigar o Estado francês a lhe pagar milhões em indenização. Isso seria uma espécie de revogação do Tratado de Westfália (1648) que rege o Estado-nação ocidental. É urgente que esse tema ganhe o debate público francês: as negociações estão longe de terem terminado; tudo ainda é possível.

Como explica o fato de que o FN ainda não se apropriou do assunto?

O FN não faz mais que saquear as teses de alguns pensadores heterodoxos: Jacques Sapir, Frédéric Lordon, François Ruffin... Como esses últimos ainda não se manifestaram sobre esse novo assunto, o FN ainda não pode, portanto, filtrar esta ideia, mas não se preocupem: ele o fará, talvez, depois da leitura desta entrevista!

Notas:
(1) «Pour une réforme bancaire plus ambitieuse : vous avez dit Liikanen ? Chiche !», Fundação Terra Nova. www.tnova.fr

(2) Mon amie, c'est la finance !, de Adrien de Tricornot, Mathias Thépot, Franck Dedieu, Bayard, 2014.

[3] Nouvelle Donne, cujo nome evoca o New Deal de Roosevelt, é um novo partido político francês criado em novembro de 2013, no qual se reúnem ex-militantes do Partido Socialista, dos Verdes e da Frente de Esquerda, além de gaullistas sociais e figuras intelectuais reconhecidas, com um programa econômico de corte keynesiano. Entre seus membros estão teóricos e ativistas como Susan George ou o sociólogo Edgar Morin. Conta com uma representante na Assembleia Nacional, Isabelle Attard (que provém dos Verdes), por uma circunscrição de Calvados, e dos deputados no Parlamento Europeu, Malika Benarab-Attou e Françoise Castez.

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