A nível internacional, 2025 foi marcado por um conjunto de instabilidades, que vão do acirramento de conflitos bélicos — como o massacre promovido por Israel ao povo palestino na Faixa de Gaza — às tarifas abusivas impostas pelos Estados Unidos, sob comando de Donald Trump, a outros países.
A entrevista é de Ana Carolina Vasconcelos, publicada por Brasil de Fato, 17-10-2025.
No Brasil, o contexto de disputa também se acirrou, com a condenação e prisão — inéditas na história do país — de um ex-presidente e de militares de alta patente por tentativa de golpe de Estado.
O governo Lula (PT), que começou o ano com baixos índices de aprovação da população e sob constante pressão da direita no Legislativo e do capital financeiro, conseguiu aprovar uma de suas agendas prioritárias — a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil — e recuperou o fôlego, voltando a aparecer nas pesquisas como o favorito para as eleições de 2026.
João Pedro Stedile, dirigente nacional histórico do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), explica que a questão de fundo dessa conjuntura dinâmica é uma profunda crise estrutural do sistema capitalista e a decadência do imperialismo norte-americano.
“Faliu o modelo anterior dominado pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, e ainda não emergiu uma força multipolar. Estamos em uma transição que pode demorar anos. O governo Trump está tentando se garantir controlando a América Latina, o que esperamos que os povos latino-americanos não permitam”, explica, em entrevista ao Visões Populares.
“Acho que a China vai desempenhar um papel muito importante, porém, eles são uma civilização de mais de 5 mil anos e são muito cautelosos. Não querem usar a força militar, que, no fundo, é o que decide a rapidez da transição. Então, a China está usando a tecnologia como maneira de se contrapor ao império”, continua.
Em relação ao Brasil, Stedile é enfático ao afirmar que, ainda que a eleição do terceiro governo Lula em 2022 tenha sido fundamental no enfrentamento à extrema direita, o país segue sem realizar as reformas estruturais necessárias para, por exemplo, superar a pobreza.
“A sociedade brasileira é a mais desigual do mundo. Há uma diferença abissal entre 1% de bilionários e 88% da população que vive do trabalho e tem que ralar todo dia para comer. Essa estrutura não se alterou com o governo Lula, porque não foram feitas reformas estruturais. Embora o governo tenha recuperado políticas de assistência social como o Bolsa Família, elas não alteram as condições estruturais de vida da população”, argumenta o dirigente do MST.
Ainda assim, ele afirma que a principal tarefa do próximo ano é reeleger o petista, mas sem abrir mão de estimular, ao longo da campanha, o debate ideológico com a sociedade e o fortalecimento de um movimento de massas.
“Só a luta de massas arranca conquistas e mudanças estruturais. O voto é importante, mas insuficiente. A campanha de reeleição deve ter duas vertentes: debater um projeto de país, discutindo reindustrialização, soberania alimentar e defesa da natureza; e dialogar com a população sobre necessidades emergenciais. Um novo governo Lula tem que se comprometer, por exemplo, com a redução da jornada de trabalho para 34 ou 36 horas”, defende.
Como se deu a dinâmica geopolítica internacional ao longo de 2025?
A geopolítica internacional é muito complexa, mas eu acho que os elementos principais que marcam este tempo é que estamos vivendo um período da história da civilização humana de uma grave crise capitalista. Uma crise do sistema capitalista que é coordenado agora pelo capital financeiro, pelos grandes bancos e pelas grandes corporações internacionais.
O setor que acumula o capital não precisa mais ficar produzindo bens para a população. Ele acumula na taxa de juros, na especulação, apropriando-se de dinheiro público, entre outros. Porém, nem isso tem arrefecido a crise, que é uma crise estrutural. Então, para alguns capitalistas saírem mais rápido da crise — como historicamente já foi demonstrado, inclusive pela Rosa Luxemburgo —, eles apelam para as guerras, porque as guerras destroem patrimônio, capital instalado, fábricas, e até igrejas e capital humano.
Com isso, abriria espaço para um novo ciclo de acumulação. O “demônio do Trump” foi muito didático quando explicou quais eram os interesses deles na Faixa de Gaza: “vamos destruir tudo e, depois, as nossas empresas vão transformar aquilo em um resort de turismo para os burgueses da Europa”.
A outra tática deles é se apropriar dos bens naturais: minérios, petróleo, florestas, água e biodiversidade. São esses dois movimentos que o capital está fazendo no mundo inteiro para tentar se recuperar, mas isso não tem sido suficiente.
Como esse cenário se expressa na América Latina?
Na América Latina, agora, estamos sendo vítimas dessa nova tática do imperialismo em decadência. O governo dos Estados Unidos, decadente, perdeu espaço na Europa para a Rússia e perdeu espaço na Ásia e na África para a China. Então, sobrou para os capitalistas americanos a América Latina.
Por isso eles estão tentando recompor, ou atualizar, a doutrina defendida há 200 anos por Monroe, ex presidente dos EUA, que dizia que a “América Latina deveria ser para os americanos”. Eles estão fazendo uma ofensiva muito grande. Os sinais mais explícitos são a tentativa de se apoderar de qualquer maneira do petróleo da Venezuela.
E essa “qualquer maneira” envolve toda essa guerra midiática, tentando transformar o governo Maduro em um governo narcotraficante, o que é ridículo. Esta semana começaram a roubar petróleo, sequestrando navios com suas forças armadas.
Para nós, de esquerda e dos movimentos populares, uma tarefa imprescindível é enfrentar o imperialismo e a decadência do capitalismo. Temos que defender a Palestina, ser solidários com os palestinos e denunciar o governo fascista e nazista de Israel. Ao mesmo tempo, devemos defender a Venezuela e Cuba, que são os dois países mais atingidos pelo bloqueio e pela raiva insana do império norte-americano, que quer tomar conta a qualquer custo.
Também é preciso ter atenção ao fato de que essa mesma ofensiva dos Estados Unidos, que aparece com o uso da força militar no Caribe, também é exercida pela força do dinheiro, da manipulação de robôs e algoritmos, e do financiamento de grupos de extrema direita em cada eleição. A presidenta do Peru já era de direita, mas eles trocaram e colocaram um de extrema direita. Roubaram as eleições no Equador. Gastaram todo o dinheiro do mundo para uma eleição fascista e pinochetista no Chile.
Vão tentar roubar a eleição na Colômbia. Se eles conseguirem todas essas façanhas, aqui, no Brasil, temos que colocar a barba de molho, porque o próximo alvo seremos nós. Eles não vão aceitar a reeleição do presidente Lula.
Como a China se insere nesse contexto de decadência do imperialismo norte-americano e de transição para uma ordem multipolar?
Primeiro, é preciso entender esse contexto histórico mais amplo. Estamos vivendo um tempo de decadência do império americano e do império europeu, representado pelos países imperialistas da Europa Ocidental, que têm na OTAN o braço armado para agredir outros povos. A presença do exército francês na África, as armas de Israel que vêm dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, as armas na guerra do Sudão; tudo vem de lá.
Mas eles estão em decadência porque tentavam recuperar um poder político que não conseguiram, mesmo na promoção da guerra da Ucrânia. Derrubaram o governo legítimo, colocaram esse palhaço do Zelensky e provocaram a Rússia, ao tentar colocar bases com ogivas nucleares na fronteira russa. A Rússia reagiu e houve a guerra na Ucrânia, o que é uma demonstração da falência dos impérios.
Faliu o modelo anterior dominado pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, e ainda não emergiu uma força multipolar conformada pelos países do Sul Global. Os tempos que vivemos são difíceis, porque estamos em uma transição que pode demorar anos. Essa transição está sendo demarcada pela decadência da Europa e emergência da Rússia como grande força econômica e militar.
Na Ásia, emergiram a China, a Índia e a própria Indonésia. Na África, há uma disputa entre Estados Unidos, Europa Ocidental, China e Rússia. A África também é um continente em disputa, daí as guerras e revoltas que ocorrem lá.
O governo Trump está tentando se garantir controlando a América Latina, o que esperamos que os povos latino-americanos não permitam e que retomemos a força anti-imperialista.
Nesse quadro de transição, emergiu uma articulação nova que são os Brics. O que era antes apenas “um clube de amigos de cinco países”, agora se conformou como uma articulação internacional que atraiu a Índia, que antes estava na esfera do imperialismo americano. Hoje já temos 21 países participando dos Brics. A última reunião foi aqui no Brasil e foi muito importante. Há pedidos de adesão de dezenas de países que querem entrar.
Acho que a China vai desempenhar um papel muito importante, porém eles são uma civilização de mais de 5 mil anos e são muito cautelosos. Não querem usar a força militar, que, no fundo, é o que decide a rapidez da transição. Então, a China está usando a tecnologia como maneira de se contrapor ao império, estimulando a inteligência artificial e novas tecnologias na indústria.
Além disso, a China, junto com os Brics, tem liderado o debate sobre a necessidade de substituir o dólar por uma nova moeda internacional. A derrota do dólar seria a principal arma contra a exploração econômica que os Estados Unidos exercem sobre o mundo. Quem usa o dólar está sendo explorado. Isso ficou evidente no “tarifaço” de Trump, que aumentou em 40% ou 50% os impostos sobre exportação para os Estados Unidos. Isso aumenta o preço, e todos nós, que produzimos mercadorias que vão para lá, acabamos explorados.
No Brasil, as exportações de calçados, café e açúcar pagaram esse imposto a mais. Esse valor foi para o tesouro americano para contribuir com o equilíbrio fiscal deles e para pagar os custos da guerra. As armas americanas são produzidas pela indústria privada e quem as paga para enviar a Israel e à Ucrânia é o tesouro nacional dos Estados Unidos. Esses são os temas fundamentais que vão moldar o debate no próximo período.
No Brasil, Lula iniciou 2025 com baixa aprovação da população, mas conseguiu se recuperar, aparecendo, agora, como o candidato mais competitivo para 2026. Além disso, conquistou uma de suas promessas de campanha, a aprovação da isenção do IR para quem recebe até R$ 5 mil. Como você avalia a atuação do governo ao longo do ano?
A sociedade brasileira é a mais desigual do mundo. Há uma diferença abissal entre 1% de bilionários e 88% da população que vive do trabalho e tem que ralar todo dia para comer. Essa estrutura iníqua não se alterou com o governo Lula, porque não foram feitas reformas estruturais na economia, a reforma agrária, a reforma urbana ou a reforma educacional, entre outras.
Por outro lado, foi importante termos derrotado a extrema direita em 2022, mas a aliança ampla gerou um governo de frente ampla. O governo Lula, pela sua natureza, não tem um projeto de país. Dentro dele, existem ministérios da burguesia, da pequena burguesia e dos bancos. O Banco Central continua dirigido pelo capital financeiro e nos impôs uma taxa de juros de 15% ao ano, o que é uma excrescência e o principal mecanismo de concentração de renda no Brasil.
Por isso, a isenção do Imposto de Renda (IR) foi importante, mas não vai alterar a concentração de renda. A concentração se dá pela taxa de juros: o povo paga imposto embutido nas mercadorias, esse dinheiro vai para o Tesouro Nacional e, de lá, 40% da receita é separada para o pagamento dos juros da dívida interna, cujos proprietários são apenas uns poucos milionários e bilionários. Isso não mudou.
Embora o governo tenha recuperado políticas de assistência social como o Bolsa Família, Botijão de Gás e o Pé-de-Meia, elas não alteram as condições estruturais de vida da população. A popularidade do Lula melhorou pouco. As pesquisas mantêm o patamar da vitória de 52% para Lula e 48% para os outros.
Qual tem sido a estratégia da extrema direita para 2026?
Com a saída da extrema direita do páreo, pode ser que aumentem os votos nulos e brancos, pois esses eleitores não terão candidatura. Acho que a candidatura do Flávio Bolsonaro é apenas um jogo de cena. No fundo, o que nos ajuda é que a burguesia brasileira não tem mais interesse em apoiar a extrema direita. Ela prefere uma candidatura de centro.
Como não encontram um nome de centro com densidade popular — pois até o candidato de São Paulo que a imprensa burguesa defende dificilmente ganharia de Lula nacionalmente —, a burguesia não vai arriscar perder o controle de São Paulo. São Paulo equivale a uma Argentina, em poder econômico e população. Eles não vão jogar isso fora. Provavelmente, Tarcísio vai à reeleição em São Paulo.
A jogada principal da burguesia será colocar um vice de confiança para o Lula. Os partidos de centro controlam o Congresso e o Judiciário. Eles vão tensionar para indicar o vice-presidente. Com isso, teriam segurança, seja pela idade do Lula ou por qualquer outra eventualidade. A segunda tática do centrão e da extrema direita é priorizar o Senado. Se fizerem maioria lá, colocarão “a corda no pescoço” do segundo mandato de Lula, ampliando a tragédia das emendas parlamentares e pressionando o governo para atender aos interesses da burguesia.
A condenação e prisão de Bolsonaro (PL) e de militares de alta patente, inéditas na história do Brasil, influenciam como na disputa?
O nosso parâmetro não deve ser o comportamento individual de agentes na imprensa ou no Congresso, mas sim o comportamento das classes, pois elas detêm o poder. A burguesia brasileira, como classe, se afastou da extrema direita. Uma parte já apoiou Lula em 2022, porque a esquerda, sozinha, não o elegeria, dado o período de descenso do movimento de massas.
As massas não estão exercendo seu poder de mobilização permanente nas ruas. Tivemos manifestações pontuais importantes, como a das mulheres contra o PL do Aborto ou a de 21 de setembro contra a PEC da Blindagem, mas ainda não é um reascenso organizado e permanente.
A burguesia continua afastada da extrema direita, e foi isso o que levou o Judiciário a agir. Os mesmos ministros que prenderam o Lula, depois o soltaram dizendo que não houve crime, e agora prenderam o Bolsonaro. Eles não tiveram coragem de abrir processo pelas 700 mil mortes durante a pandemia de covid-19. Foram mortas por irresponsabilidade de Bolsonaro. Só não morreu mais gente porque o governo de São Paulo fez acordo com a China para as vacinas.
A prisão dele faz parte da correlação de forças. O principal não é o tempo de cadeia, mas a desmoralização política e o fato de que ele não poderá mais se candidatar. Também foi fundamental a condenação dos militares de alta patente. É um recado da burguesia para os quartéis: “vocês só podem se mexer quando nós mandarmos, como em 1964. Não inventem aventuras próprias”.
O papel do militar é servir à nação, não a interesses partidários escusos. Já em relação aos manifestantes do 8 de janeiro, que receberam penas de 15 a 20 anos, acho que a tendência será a diminuição das penas e a soltura após alguns anos, pois são apenas “pobres diabos” manipulados pela extrema direita.
Em 2025, com a construção do Plebiscito Popular por Um Brasil mais Justo, ganharam destaque as pautas da justiça tributária e da redução da jornada de trabalho. Quais temas devem dinamizar o ano de 2026?
Todas as forças populares e de esquerda deverão priorizar a campanha pela reeleição do Lula no ano que vem. Mas não basta reeleger. A campanha precisa ser didática para elevar a consciência política e estimular a luta de massas. Só a luta de massas arranca conquistas e mudanças estruturais. O voto é importante, mas insuficiente.
A campanha de reeleição deve ter duas vertentes. A primeira é debater um projeto de país, algo que o atual governo não tem, o que permite que cada força ou parlamentar faça o que quer com as emendas. Ninguém sabe para onde foram os R$ 80 bilhões de emendas, que acabam servindo a interesses pessoais e métodos corruptos. Precisamos discutir reindustrialização, soberania alimentar e defesa da natureza, indo além do debate sobre crédito de carbono para propor o desmatamento zero.
A segunda vertente é o diálogo com a população sobre necessidades emergenciais. Um novo governo Lula tem que se comprometer com a redução da jornada de trabalho para 34 ou 36 horas, como no exterior, e não apenas o 5×2 que mantém 40 ou 44 horas.
Também é preciso tarifa zero nas regiões metropolitanas, remanejando impostos; um amplo programa habitacional para os 43% da classe trabalhadora que pagam aluguel na periferia; garantir trabalho produtivo para os 70 milhões que estão na informalidade, sem direitos como CLT, férias ou 13º salário, já que o setor de serviços não resolve o desemprego.
Outra necessidade é avançar no debate sobre a segurança pública, com propostas concretas para a periferia. Ninguém é a favor da bandidagem nem da violência policial. O povo não pode ficar no meio desse fogo cruzado. Quem comete crime tem que pagar, inclusive os crimes de colarinho branco e de bancos corruptos. Por fim, segue sendo urgente avançar na reforma agrária e na produção de alimentos saudáveis via agroecologia.
Precisamos dizer ao Lula: “estamos te elegendo porque precisamos de um governo comprometido em resolver imediatamente esses problemas”. Isso alteraria sua base de apoio entre os mais pobres.