A ideia que não sustenta a realidade: o celibato obrigatório do clero. Artigo de João Melo

Foto: Lunamarina/Canva

Mais Lidos

  • "Teologia de ganso": a arte de formar presbíteros impermeáveis à realidade. Artigo de Eliseu Wisniewski

    LER MAIS
  • A herança escravocrata dos setores poderosos da sociedade brasileira agrava a desigualdade e mantém o privilégio dos ricos

    O assalto do Banco Master foi contratado pelas elites financeira e política. Entrevista especial com André Campedelli

    LER MAIS
  • Júlio Lancellotti é calado nas redes enquanto padres conservadores discursam para milhões

    LER MAIS

Assine a Newsletter

Receba as notícias e atualizações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em primeira mão. Junte-se a nós!

Conheça nossa Política de Privacidade.

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

18 Dezembro 2025

"Um olhar cuidadoso para a realidade desses homens de Deus demandaria das autoridades eclesiais repensar os caminhos formativos e, principalmente, a obrigatoriedade do celibato", escreve João Melo, licenciado em Filosofia e Matemática, bacharel em Teologia e mestrando em Educação na UERJ.

Eis o artigo. 

Se a Igreja acredita mesmo que o celibato é um dom, ela não deveria propô-lo como obrigatoriedade clerical. Convém recordar que o celibato presbiteral não pertence ao núcleo dogmático da fé católica, mas constitui uma disciplina eclesiástica, própria da tradição latina, que se tornou obrigatória ao longo da história. Como toda disciplina, não é imutável nem universal, como demonstram as Igrejas católicas orientais e outras tradições cristãs.  

A experiência milenar da Igreja romana já provou que em muitos casos, pessoas que são vocacionadas ao presbiterato não têm o dom do celibato. Nessas circunstâncias, ou ele é vivido no sofrimento como uma mutilação afetiva, impedindo a uma plena realização da pessoa humana e fecundidade pastoral; ou ele simplesmente não é vivido, e o presbítero mantém sigilosa atividade sexual, ocasional, fortuita ou em relacionamentos afetivos, situações essas que podem causar conflitos interiores, culpa, prejuízo no desenvolvimento de relações maduras e sadias, além do ônus da manutenção de energia vital, estratégias e recursos (emocionais, financeiros, sociais e de poder) para esconder a “vida dupla”.  

Uma boa parte dos fiéis hoje sabe ou não mais se escandaliza com a descoberta de que muitos padres possuem vida sexual ativa, independente da orientação sexual do presbítero. Para muitos católicos, isso não é sinal de pecado nem desqualifica esses padres de suas funções presbiterais. Como nos lembrava o papa Francisco, “a realidade é superior à ideia” (EG n. 231). A realidade da vida sexual do clero – conhecida pelas autoridades eclesiásticas – é maior que a ideia de celibato obrigatório vivida por eles.  

“A realidade simplesmente é, a ideia elabora-se” (EG n. 231). A Igreja pode continuar insistindo em um ensinamento obrigatório que contradiz com a realidade de seus membros – e provavelmente ela seguirá fazendo isso por alguns anos —, mas essa ideia elaborada simplesmente está desconexa da realidade. Os séculos de investimento na ideia de que o padre, por ser celibatário, é um homem mais santo e mais próximo de Deus, trouxeram certo prestígio e poder para essa categoria de homens “castos”. O ônus do conhecimento, aqui e ali, da contradição da vivência da obrigatoriedade estabelecida por alguns compensava o investimento como estratégia de credibilidade institucional. O padre gozava – e ainda goza – de uma autoridade moral sobre os demais. No imaginário popular católico, ele é “um homem de Deus que nem tem tempo para pensar em sexo”. 

Entretanto, na atualidade, era da comunicação instantânea e da hiperconectividade, torna-se cada vez mais difícil para a instituição contornar a dicotomia abissal entre o discurso do celibato obrigatório do clero e suas vivências sexuais. Talvez essa seja uma das maiores incoerências da Igreja Católica na contemporaneidade.  

Se as autoridades da Igreja não se impusessem a necessidade de sustentar esse discurso, muita coisa tida como escândalo, não o seria. Será mesmo que os padres, sejam gayshéteros ou bissexuais, perderiam autoridade moral se vivessem de forma aberta o que vivem às escondidas? Certamente que a constituição de famílias traria outra questão para a Igreja resolver: os bens. A experiência de outras comunidades religiosas católicas não latinas e até ortodoxas — onde padres podem casar e o celibato é um dom (não uma obrigação clerical) — poderiam servir de aprendizado para essa situação.  

Desse modo, a Igreja teria menos motivos para agir pelos bastidores do sigilo nas trocas de padres, nomeações de bispos e etc. Às claras, e sem medo da opinião pública, assumiria postura profética de assumir a humanidade de seus ministros ordenados. Com isso, os que governam a Igreja teriam mais tempo para o pastoreio segundo o Evangelho.  

Há séculos a Igreja está enredada em desafios resultantes do esforço de sustentar o fantasioso e longo investimento da figura desumanizante do padre como homem assexuado e por isso mais próximo de Deus. Para isso, a grande massa dos católicos é deixada no escuro dos bastidores clericais, onde a verdade circula no sigilo. A justificativa é simples: a contenção de escândalo entre os ingênuos e inocentes fiéis. Por essa razão, a Igreja tem longa tradição em lidar com suas questões internas com pouca transparência. 

O silêncio muitas vezes é estratégia para preservar a credibilidade institucional da Igreja, valor absoluto que muitas vezes é negociado a quase qualquer preço, pondo em xeque até mesmo a fidelidade ao Evangelho. 

Os presbíteros não vocacionados ao celibato, mas que se esforçam por vivê-lo podem se tornar pessoas fragilizadas emocional e afetivamente quando sentem que falham com um ideal que se propuseram viver. Infelizmente, a formação presbiteral não costuma alertá-los que esse ideal do celibato é um dom e que, portanto, não é vocação de todos os que se sentem chamados ao presbiterato ou que sejam dissidentes sexuais. O celibato não é um dom universal e quem não o possui, independentemente da orientação sexual ou do chamado vocacional, não deveria sentir-se culpado por não tê-lo.  

O que infelizmente ocorre diversas vezes é que fragilizados pela crença escrupulosa ou culpabilizadora, ou mesmo pela falta de experiência ou imaturidade sexual, muitos presbíteros se tornam alvos fáceis de pessoas mal-intencionadas ou adoecidas. Podem criar dependências afetivas e relações tóxicas que comprometem seu bem-estar e seu trabalho pastoral. Como muitas vezes vivem esses dramas de forma solitária e sem poder partilhar abertamente com outras pessoas, se colocam em riscos até de integridade física.  

Um olhar cuidadoso para a realidade desses homens de Deus demandaria das autoridades eclesiais repensar os caminhos formativos e, principalmente, a obrigatoriedade do celibato. Às custas de manter a credibilidade institucional, muitos presbíteros têm sofrido com o silenciamento de seus afetos, têm adoecido emocionalmente, vivem crises profundas e em casos mais extremos perdem a própria vida. É hora de agir com responsabilidade e transparência.

Leia mais