Maria, mulher Advento. Artigo de Lúcia Pedrosa-Pádua

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18 Dezembro 2025

"Refletir sobre Maria nos leva ao mistério de um Deus que quis se encarnar, que quis estar conosco. Este acontecimento se efetiva na carne de Maria e permanece vivo: Deus continua acontecendo hoje, em nosso coração, em nossa carne, em nossa história, no cosmos", assinala Lúcia Pedrosa-Pádua.

O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu a conferência Maria, mulher (do) Advento e devoções marianas. Diálogos com a Nota Mater Populi Fidelis, que contou com a presença da Prof. Dra. Lúcia Pedrosa de Pádua, do Prof. Dr. Rodrigo Portella e do doutorando Thiago Gama

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Lúcia Pedrosa-Pádua é professora de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Graduou-se em Teologia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, e doutorou-se pela PUC-Rio. É bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Estudou no Centro Internacional de Estudos Teresianos e São Joanistas de Ávila (Espanha) e fez estudos de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma, Itália. É organizadora, com Mônica Baptista Campos, do livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo (PUC-Rio/Reflexão, 2011). Dentre suas outras obras, destacamos O humano e o fenômeno religioso (Ed. PUC-Rio, 2010) e Juventude, religião e ética: reflexões teológico-práticas sobre a pesquisa “Perfil da Juventude na PUC-Rio” (Ed. PUC-Rio, 2010, organizadora). 

Eis o artigo. 

A reflexão sobre Maria é particularmente importante no Advento, por mais que nossa cultura privilegie o mês de maio, ou de outubro, pelas comemorações de N. Sra. Aparecida. É no Advento que Maria surge à nossa compreensão mais claramente como “mulher do Advento” que é, ou, como propõe esta conversa, Mulher Advento. Esta mulher Maria está profundamente enraizada na esperança e na história do seu povo, ela é a Filha de Sião e aguarda, com seu povo, os tempos messiânicos. Proclamou que, nela, se cumpria a promessa aos “nossos pais” (Lc 1,55), como nos fala o cântico do Magnificat, no Evangelho de Lucas. Hoje está profundamente enraizada na esperança e na história do nosso povo, na história de nossos pais e mães. Liturgicamente, celebramos no dia 18 de dezembro a invocação de Maria como N. Sra. da Expectação ou N. Sra. do Ó, que clama as esperanças de seu povo e espera aquele que vem: Ó sol de justiça! Que ouve os desprezados e desprezadas. Ó Emanuel! Que vem e está conosco apesar de nossas recusas. É Maria no Advento, Maria do Advento e Maria Advento.

Refletir sobre Maria nos leva ao mistério de um Deus que quis se encarnar, que quis estar conosco. Este acontecimento se efetiva na carne de Maria e permanece vivo: Deus continua acontecendo hoje, em nosso coração, em nossa carne, em nossa história, no cosmos.

Maria, nas palavras de Puebla, é um elo entre o céu e a terra. “Deus se fez carne por meio de Maria [...] ela é o ponto de união entre o céu e a terra, sem Maria desencarna-se o Evangelho” (DP 301). E, considerando o tempo, ela é uma ponte entre “o já e o ainda não” da salvação. Nela aconteceu o “já” da presença de Deus, a atuação plena do Espírito que transforma a humanidade, que modelou Maria e fez dela uma “mulher nova”; ela nos acompanha, como companheira de caminho, nesta travessia pascal que é nossa vida: nossa vida é, na visão paulina, esta passagem do homem e mulher velhos para pessoas novos, comunidades velhas para comunidades novas, um mundo velho para um mundo novo, incessantemente. Portanto, Maria é ponto de união entre o céu o a terra, pois Deus encarnado a habitou; ela é ponte entre o já e o ainda não da salvação, pois viveu a situação de remida e agora, glorificada, acompanha seus filhos com amor materno e sororal.

Esta novidade invade o nosso Advento, pois traz sempre uma esperança, suscita novos horizontes. Maria está relacionada, tecida com os mistérios de Deus (“unida a Cristo por um vínculo estreito e indissolúvel” – LG 53). Vejamos em seguida em que sentido ela está entretecida com os mistérios de Deus, com o mistério da Igreja, com os mistérios do povo e, mesmo, com o mistério de toda a criação.

A mulher Advento descobriu o coração do Evangelho, que Deus é misericórdia e ternura. Este coração do evangelho já se anuncia no Magnificat. Maria, afirma Francisco na Evangelii Gaudium, é a que soube reconhecer o “mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada um e de todos” (EG 288). Reconheceu a presença de Deus fazendo a reviravolta ao desprezar os soberbos e exaltar os humildes, acolher os famintos e despedir os ricos de mãos vazias.

Ter olhos para reconhecer o mistério de Deus é o dom místico por excelência. Um dom de sabedoria que as primeiras comunidades cristãs reconheceram em Maria. Ela reconhece a atuação divina na história e canta o Deus da misericórdia, do abaixamento – kénosis – em direção à humanidade, e em particular em direção à humanidade humilhada. Como no Magnificat: “olhou a humildade de sua serva” (Lc 1,48). Maria soube ler, dar-se conta e cantar o mistério de um Deus que é amor, a começar pelos pobres. A começar por ela! Isto marca o destino de Maria e de todos. Liberdade, irmandade, cuidado fazem parte do amor servidor concreto na história. Amor que exige corporalidade, relações de reciprocidade, atitudes e gestos concretos. Maria guardou e falou deste amor, foi moldada por ele em sua interioridade e em seu corpo. Serviu à esperança esperançando. O Advento nos ajuda a penetrar neste mistério de serviço e amor do próprio Deus ao entrar na história. Em Maria Advento, o Espírito nos ensina a penetrar neste modo tão original de Deus em atuar na história.

Grávida, Maria entoa o Magnificat no contexto do encontro na casa de Isabel. Sabe que Deus a OLHOU em sua humilhação e, em resposta, afina o seu OLHAR com o olhar de Deus e, depois, com o olhar do seu filho Jesus. Por isso ela se une a todos os que são reunidos pelo olhar de Deus que ela ajuda a olhar. Olhar que é também caminhar na luz, e esperar diante das noites mais escuras. No Advento, em Maria Advento, o Espírito nos ensina a entrar neste olhar sábio de Maria, que guarda no coração e vai compreendendo o mistério do filho.

Maria deixou-se plasmar pelo Espírito, num itinerário de fé, rumo a formas concretas de amar e de ser fecunda. Muito jovem pronunciou o seu sim. Foi nova criatura, habitante dos caminhos da nova criação. Há neste deixar-se plasmar pelo espírito uma jovialidade, um deixar-se renovar (diferente da fonte da juventude), porque trata-se de uma jovialidade que acompanha os/as que se dispõem a uma vida nova, itinerários insuspeitados, esperanças que parecem não sobreviver à dura realidade, mas que esperam um passo, um processo mesmo que não finalizado – porque outros virão atrás de nós. “Aquilo que envelhece a alma”, afirma Francisco, “é o que nos separa dos outros” (ChV13). O que renova são os vínculos fortalecidos simultaneamente com Deus, com os demais, com o mundo criado e consigo mesmo. No Advento, em Maria Advento, O Espírito nos coloca no caminho dos vínculos concretos com a humanidade e com toda a criação, sem a certeza de frutos concretos, mas com a esperança firme de um novo horizonte e de novos processos de mudança.

Assim, Maria é a mulher de Deus, atravessada por sua graça e amor.

Inserida no mistério da Igreja, Maria reúne em si toda a comunidade de fé, os batizados, leigos e leigas, ministros ordenados. Mulheres e pobres, indígenas – todos entram, são contemplados neste ícone da vida nova a que a Igreja é chamada. Em Maria, o povo lê sua própria vida, em Maria o povo lê os mistérios do Evangelho. No Advento, em Maria Advento, o Espírito proclama à sua igreja que a força brota da fraqueza, a sabedoria da ignorância, a vida nova nasce de uma virgem, uma Igreja servidora surge do povo simples.

Glorificada Maria, em sua maternidade espiritual, permanece a serviço da vida nova do Reino de Deus. Como no tempo de Maria, assim também hoje o Reino é uma nova situação, viver as novas relações – com Deus, com os demais e com a natureza, em meio às forças que excluem e hierarquizam pessoas, tiram a dignidade e as terras de povos originários, matam mulheres, expoliam direitos pelo racismo, destroem o meio ambiente. As comunidades são chamadas incessantemente às novas relações que Deus instaura, e que tem em Maria Advento, a pobre e serva de Javé, a humilhada, um sinal da redenção, da humanidade libertada e restaurada. Como ponte entre o já e o ainda não, Maria, Mãe do povo fiel continua acompanhando - como COMPANHEIRA nesta transformação das realidades.

A figura de Maria não é um paradigma externo, pois ela incide em nós e nas comunidades de maneira interna e existencialmente, pelo vínculo de amor proporcionado pelo Espírito. Nela é possível ler os mistérios do Evangelho e vive-los, animados pelo amor.

Assim, Maria está inserida nos mistérios de Deus e nos mistérios do povo. A figura inculturada de Maria, como Aparecida, nos mostra isso. Entre nós, as manifestações marianas são intensas. O substrato destas manifestações é um amor sem medidas. Em entrevista ao mariólogo Alexandre Awi, Francisco disse que os teólogos dizem quem é Maria, mas é o povo quem diz como amar Maria (AWI, A. “Ela é minha mãe!”. Encontros do Papa Francisco com Maria. 5ª ed. (2017). São Paulo/Aparecida: Loyola/Santuário/AMA, 2014). Há nesta devoção uma vida teologal intensa, mesmo se as expressões teológicas desta vida teologal não sejam exatas. O povo vê sempre Maria com Cristo, unida a ele.

Do ponto de vista da experiência, ela é Mãe, ó Mãe!

O Documento Mater Populi fidelis, do Dicastério para a Doutrina da Fé (2025) intitula Maria como Mãe do Povo fiel. Este título traz algumas características desenvolvidas pelo documento e que desejamos aqui refletir: presença materna, intercessão e proximidade.

Presença materna de ternura e acompanhamento – com Maria se pode contar. Ela me acompanha, e por isso nessa maternidade entra o acompanhamento. Assim é mãe e companheira, inseparavelmente. Maria e companheira na dor e na alegria. Nossa verdadeira companheira e irmã.

Maria Advento canta, como vimos, a misericórdia e amor de Deus, em Cristo. Por isso, Deus misericordioso se mostra misericórdia em Jesus Cristo. E tem em Maria um seu sinal desta misericórdia de Deus.

O documento nos diz que a Mãe do povo fiel, além das características maternas da ternura e acompanhamento, é intercessora. No próprio Magnificat ela se coloca como mulher que representa o povo (o povo dos nossos pais) e louva a Deus pelos seus feitos. Nas bodas de Caná, ela se coloca em nome dos que não tinham mais vinho. Ela é sinal do amor divino, e deseja se colocar como quem intercede. Glorificada, continua acompanhando e intercedendo pelo povo.

Outra característica é a proximidade. O documento mencionado dá o exemplo de N. Sra. de Guadalupe. Mas nós podemos dizer que esta característica da proximidade é estampada na figura inculturada de Maria, como N. Sra. Aparecida. Na narrativa de Aparecida, ela, a mãe, se coloca na lama do rio para esperar os trabalhadores, pescadores, que representam os humilhados da terra em meio às dificuldades da vida, da insegurança, da pobreza, da injustiça e da violência dos poderes estabelecidos.

Aparecida está destemidamente presente em meio às lutas e buscas de seus filhos. Submerge na lama para renovar a esperança.

Teologicamente, podemos dizer que a narrativa de Aparecida insere Maria no interior da lógica encarnatória da graça, ou ação salvífica de Deus. Como em Jesus Cristo, Deus se abaixa e esvazia de sua glória para assumir em tudo a humanidade, também Maria, a perfeita discípula, “desce” e “entra” na vida humana e, indo além, “submerge” no espaço onde estão as pessoas concretas e “suja-se” com as realidades carentes de salvação para facilitar a transformação e sinalizar a salvação de Deus.

Ela é discípula, e o discípulo não se acomoda, está “em saída”, vence a autorreferencialidade e segue o amor servidor de Jesus, tal como Francisco havia descrito na Exortação Evangelii Gaudium. Assim, Maria é Mãe também por fazer-se próxima.

A figura inculturada de MariaN. Sra. da Conceição Aparecida – passa a ser ícone de um povo missionário, seguidor daquele que entrou na fragilidade humana, fez-se escravo da humanidade, desceu à situação do mais humilhado pela pobreza, abandono, doenças, solidões. Discípula, ela assume suas causas. Hoje a vemos também como mãe da criação, por acompanhar seu povo neste despertar para os gemidos mortais da casa comum. Diz São Paulo que Cristo fez-se “carne de pecado” (Rm 8,3), em solidariedade a nós, para abrir um caminho novo e oferecer uma vida nova em comunhão e dignidade. Como viveu o Cristo, assim viveu sua discípula Maria. A encarnação-serviço marca a dinâmica evangelizadora do discípulo e de toda a Igreja.

A proximidade de Deus é sinalizada em Aparecida, porque a discípula se faz próxima. No tempo do Advento, Maria grávida, N. Sra. do Ó nos lembra esta proximidade. Ela, Maria, nos deixa próximos de quem se aproxima e nos aponta a causa de seu júbilo. As comunidades cristãs são chamadas a esta proximidade, a aproximar-se e a tornar toda a realidade mais próxima de Deus – amor encarnado que encanta. Uma proximidade que é júbilo e missão, decisão e ação. Uma proximidade irradiadora porque, banhada do Espírito, ajuda a perceber a luz do próprio Deus.

O povo fiel, que busca e confia em Deus, se detém para contemplar Maria. Nela contempla os mistérios do Evangelho, do Deus conosco.

Portanto, a mulher Advento não é inatingível nem inimitável: ela representa o povo em suas esperanças e buscas, ela acompanha o povo fiel em suas alegrias e vicissitudes, encorajando-o nas lidas da vida. Ela é a cheia de graça, cheia de Deus, cheia do amor de Deus cuja espera, cujas palavras e cuja vida nos confirma que Deus ama a humanidade e nos quer bem perto dele. Queremos Deus! Maria nos mostra que ele está mais perto do que imaginamos, atuando em nós e perto de nós. Vocês não veem? – ela poderia nos perguntar. Nos mostra que a covardia de um “não” traz mais problemas do que as responsabilidades de um “sim”. Porque o sim livremente pronunciado abre as portas para a realização das promessas de Deus. Maria Advento nos mostra que ela não é mais misericordiosa que Deus, mas fruto da grande misericórdia que O fez olhar a humildade da sua serva. Confiando na colaboração de Maria, Deus inaugurou o tempo novo anunciado pelos profetas mais antigos e por João, o batizador. Tempo da reviravolta do Reino de Deus, tempo do “já” das nossas iniciativas e da espera premente do ainda não. Entre o já e o ainda não, Maria é a ponte. Ela é realização de uma promessa de Deus e acompanha o povo fiel como companheira de caminhada até o tempo feliz da plenitude que a humanidade e as realidades sofrentes tanto esperam.

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