Bonhoeffer. Uma ética situada dentro da história. A partir de Cristo. Artigo de Gianni Vacchelli

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17 Dezembro 2025

"Em todo caso, os dois livros de Ferrario nos convidam a reler Bonhoeffer de forma rigorosa e criativa: os nossos também são tempos difíceis e dramáticos, repletos de violência e destruição, nos quais, paradoxalmente, as ideias do grande teólogo podem nos falar com maior profundidade e ressonância. No coração das trevas, uma luz ardente e de transformação precisa ser redescoberta. E nessa passagem, Dietrich Bonhoeffer também está conosco", escreve Gianni Vacchelli, narrador, escritor, docente (PhD) italiano, em artigo publicado por Avvenire, 14-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Falar de Bonhoeffer sem ceder à hagiografia, à simplificação e ao hiperespecialismo é um exercício que muitos estudiosos tentaram, mas poucos realizaram com equilíbrio. Fulvio Ferrario, um dos teólogos evangélicos mais respeitados da Itália, aborda esse desafio em dois volumes complementares, ambos publicados pela editora Claudiana intitulados Dietrich Bonhoeffer. Un profilo, um retrato intelectual e biográfico ágil, porém denso, e Gli scritti dal carcere di Bonhoeffer: Una guida alla lettura (Os escritos da prisão de Bonhoeffer: um guia de leitura), uma introdução detalhada e atualizada a Resistência e Submissão, que contém os textos provavelmente mais famosos e mal-entendidos do grande teólogo protestante.

Livros do teólogo Fulvio Ferrario sobre Dietrich Bonhoeffer. (Foto: Reprodução/Claudiana)

Juntos, os dois livros oferecem uma trajetória sólida e acessível que restitui a complexidade de uma figura que ainda hoje continua sendo essencial para o debate espiritual, teológico, mas também ético e político. O primeiro volume tem um objetivo ambicioso: reconstruir, em pouco menos de cem páginas, uma vida entrelaçada com alguns dos momentos mais dramáticos do século XX, da crise da República de Weimar à formação da Igreja Confessante, até sua participação na resistência contra o nazismo e na conspiração contra Hitler.

Ferrario procede com rigor, mas evita o tom acadêmico: o resultado é um texto legível mesmo para aqueles que se aproximam do pensamento de Bonhoeffer pela primeira vez, sem por isso sacrificar a precisão. O texto começa com sua trágica morte: junto com outros conspiradores, ao amanhecer de 9 de abril de 1945, Bonhoeffer foi enforcado no campo de concentração de Flossenbürg, por ordem expressa de Hitler. Ele é executado "como um criminoso político, junto com outros criminosos políticos, em solo 'não consagrado'". Suas últimas palavras são: "É o fim, para mim é o começo da vida". Somos, assim, conduzidos a conhecer melhor sua figura prismática, dialética, coerente e, ao mesmo tempo, em constante superação: "Quem era o jovem teólogo enforcado naquela manhã? E o que fazia ele entre os conspiradores, ele que fora um pacifista fascinado por Gandhi?"

Aqui estamos, então, na família de classe média alta de Dietrich, que tanto influenciaria sua educação e formação, ou imersos na viagem — seja Roma, Nova York, Londres — que sempre foi "uma aventura espiritual, um encontro profundo e rico com o outro e o diferente" e "um aspecto importante da breve e intensa vida do teólogo". Basta pensar no Harlem: "o testemunho das igrejas negras, as impressões da época da grande crise, constituem estímulos que foram processados com grande vigor e que contribuiriam substancialmente para mudar profundamente sua atitude em relação à fé e à sociedade". Por essa razão também, "de teólogo ele se tornará cristão".

Encontramos também muitas das grandes intuições de Bohnoeffer: a graça barata, a lúcida distinção em relação a Hitler, desde 1933, entre Führer (líder) e Verführer (sedutor), seu empenho em favor dos judeus ("só quem clama pelos judeus pode cantar canto gregoriano"), a ideia de uma ética "situada" e imersa nos desafios dramáticos de seu tempo: por isso, "a ação responsável visa ao sucesso, porque só assim o mal pode ser derrotado", caso contrário, cai-se num perigoso ahistoricismo. Afinal, para Bohnoeffer, "Cristo é a lei da realidade", e o empenho deve ser concebido a partir dessa perspectiva.

O segundo volume é muito mais do que um simples "guia de leitura", especialmente se entendido de forma excessivamente didática e simplificada. Trata-se, de fato, de um livro de grande clareza e riqueza, fruto não só de um estudo aprofundado, mas também de mais de vinte anos de prática docente. Os comentários e interpretações de Ferrario são repletos de citações pontuais e contínuas dos textos de Bohnoeffer — principalmente de Resistência e Submissão (mas não apenas) —, conduzindo-nos a um dos textos mais densos do pensamento teológico, filosófico e espiritual do século XX, capaz de dialogar com homens e mulheres diversos: crentes e não crentes, religiosos e agnósticos, todos em busca de respostas.

O gênero da epístola reflete a urgência, a imediatez e a natureza não sistemática da obra de Bohnoeffer, mas também cativa o leitor de imediato, que se sente interpelado. Não se deve esquecer que a epístola é também um gênero antigo, muitas vezes puramente filosófico. Além disso, as cartas da prisão não são apenas um livro vertiginoso do ponto de vista da reflexão teológica e filosófica, mas também um testemunho claro e discreto do trabalho interior de Bonhoeffer naquelas condições extremas: deve-se ao menos lembrar "a inclinação à 'acedia-tristita', com suas consequências perigosas, ou seja, a tentação do suicídio", e a prática fundamental da "disciplina", como um ato de resistência não apenas ético, mas também interior.

Os "flashes" bonhoefferianos, sejam eles incipientes ou completos, continuam sendo de grande e radical potência, e muitas vezes amplamente ignorados, segundo Ferrario (e não só), pela linguagem religiosa e eclesiástica destas últimas décadas: basta pensar na relação entre "último" e "penúltimo", certamente hierárquico, mas que de modo algum pode penalizar a "fidelidade à terra"; na necessidade de ler o Novo Testamento a partir do Antigo e não apenas o contrário; no "Cristo que segura o ser humano no centro da vida", novamente sem reducionismos espiritualistas e moralistas.

Dessa forma, até mesmo as afirmações mais mal compreendidas ou problemáticas — o fim da religião, o etsi deus non daretur, a rejeição do "Deus tapa-buracos", a adultez do mundo, a "mundanidade cristã", o "cristianismo inconsciente" — devem ser enquadradas numa busca corajosa e ousada de fé, que procura desarticular o dualismo céu-terra, interior-exterior, indivíduo-sociedade, física-metafísica, no âmbito do dogma calcedoniano e do anthropos teleios: isto é, rumo a uma plenitude divino-humana para a qual o próprio Cristo nos chama.

Afinal, "o Deus que está conosco é o Deus que nos abandona", o Deus que aceita ser expulso do mundo na cruz, para que nós, humanos, com Ele e dentro d'Ele, levemos qualidades divinas ao mundo.

Poderia ser heuristicamente fascinante e dialógico justapor essas passagens de Bonhoeffer com algumas das grandes reflexões de Raimon Panikkar — por um lado tão diferentes, e por outro, pelo menos em alguns aspectos, profundamente semelhantes — como a "secularidade sagrada", a cristania, o misticismo não como fuga do mundo, mas como plenitude do humano, a luta contra dualismos e monismos, o mysterium crucis inscrito na própria Trindade, a centralidade da experiência de Cristo.

Em todo caso, os dois livros de Ferrario nos convidam a reler Bonhoeffer de forma rigorosa e criativa: os nossos também são tempos difíceis e dramáticos, repletos de violência e destruição, nos quais, paradoxalmente, as ideias do grande teólogo podem nos falar com maior profundidade e ressonância. No coração das trevas, uma luz ardente e de transformação precisa ser redescoberta. E nessa passagem, Dietrich Bonhoeffer também está conosco.

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