16 Dezembro 2025
Manifestações deste domingo abrem uma porta. Elas mostram que derrotar a ultradireita em 2026, e estar no Palácio do Planalto, precisa ser a chave para enfrentar a desigualdade e os privilégios – não a senha para se acomodar a eles.
O artigo é de Antonio Martins, editor de Outras Palavras, publicado por Outras Palavras, 15-12-2025.
Eis o artigo.
O que há apenas seis meses parecia uma miragem voltou a tornar-se realidade neste domingo, 14/12. Dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas em diversos pontos do país, convocadas por movimentos sociais e artistas próximos à esquerda para contestar decisões do Congresso Nacional em favor do poder econômico e dos privilégios da casta política. Aceito sem críticas até há pouco, o tabu segundo o qual as ruas estavam dominadas pelo bolsonarismo e não podiam pesar em favor de uma agenda de mudanças foi novamente desmentido pelos fatos. O alvo, agora, foi duplo. Por um lado, a tentativa — do Centrão e da ultradireita, unidos — de reduzir as penas dos golpistas de 2023, disfarçada pelo eufemismo de “mudança na dosimetria”. Por outro — e não menos importante —, o novo esforço do Parlamento por aprovar um “marco temporal” que bloqueia a demarcação de terras indígenas, em favor dos proprietários de terra.
Na convocação, somaram-se duas forças, que agiram em sintonia. As chamadas Frente Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular, vertebradas por movimentos como o MST e o MTST, estão deixando a letargia em que permaneceram entre a eleição de Lula e junho deste ano. Seu apelo às ruas repete o que já haviam feito em 10/7 e 21/9. A presença de Guilherme Boulos na secretaria-geral da Presidência, concretizada no final de outubro, mas preparada com larga antecedência, parece ter reacendido no governo Lula o gosto pela disputa. Mas tanto ontem quanto em setembro (quando houve as duas maiores manifestações), artistas articulados por Paula Lavigne e Caetano Veloso tiveram presença destacada. Esta combinação feliz — entre movimentos sociais, mundo da cultura e uma espécie de “ala das ruas” do governo Lula — pode ser um elemento novo, de enorme potência, em 2026. Por pelo menos três motivos.
Primeiro, ela desarmará, caso se mantenha, o principal mecanismo de autossabotagem armado por Lula 3 entre sua posse e julho deste ano. Trata-se de uma variante da Síndrome de Estocolmo, o conhecido afeto que os cativos desenvolvem, em certas circunstâncias, por seus sequestradores. Eleito por uma maioria desejosa de mudanças, Lula deveria ser um corpo estranho num sistema de poderes que mantém há 500 anos nossas relações coloniais e nossa inserção periférica no capitalismo tardio e de rapina. Porém, os instrumentos de cooptação da elite brasileira são poderosos — e o que se viu, na maior parte do terceiro mandato, foi o acomodamento. Para usar uma expressão de Chico Buarque, o governo falou fino diante do poder do baronato financeiro e da maioria conservadora no Congresso.
Esta coabitação com o inimigo se dá em ambientes luxuosos — dos salões de um Congresso que legisla de costas para o povo aos abraços e afagos trocados nas recepções organizadas pelos bancos. O fato de haver agora, no Palácio do Planalto, quem prefira as ruas abre um horizonte que faltava.
O segundo motivo que torna animadoras as novas manifestações é a necessidade de estabelecer uma nova agenda no governo — em especial, com vistas a 2026. A resignação à correlação de forças existente significou, também, o declínio da imaginação política. Tomem-se como exemplo dois fatos centrais nesta semana. Diante do colapso no abastecimento de energia em São Paulo, provocado pela privatização e imposição da lógica do lucro máximo, o governo federal hesita. Mantém em curso a renovação das concessões a empresas-parasitas como a Enel, sem sequer cogitar a renacionalização. Em outra frente, prepara-se para selar, entre Mercosul e União Europeia, um acordo comercial que, conforme demonstra o economista Paulo Nogueira Batista Jr., aprofunda a regressão produtiva do país — no exato momento em que se desenvolve uma transformação tecnológica…
Num discurso recente, o próprio Lula reconheceu que a dinâmica do poder instituído leva os governantes a se afastar das bases populares que os elegem e a se afeiçoar a quem os desvia. As ruas são, precisamente, o fator capaz de sacudir esta dupla submissão — aos enquadramentos institucionais e às pautas da desigualdade.
Por fim, mas talvez a síntese do que mais importa, as manifestações sugeriram o possível reencontro da esquerda com o antissistema. As ruas foram convocadas contra o Legislativo, dominado por uma maioria conservadora e fisiológica. No Rio, Caetano abriu sua participação cantando Poderes Poderes. Eram inúmeros os cartazes que aludiam à ilegitimidade de um poder que não se envergonha de proteger a si próprio e à rapina das elites (Congresso inimigo do povo!).
Esta inclinação coincide, aliás, com os resultados de uma pesquisa qualitativa recém-finalizada pelo Observatório Político Eleitoral (Opel) da UFRJ, em parceria com o Núcleo Ypykuera. Conduzida entre agosto e setembro, com grupos de pessoas que votaram em Lula em 2022 e estão decididas a fazê-lo de novo em 2026, ela mostra uma atitude surpreendente para quem se acostumou a associar o apoio ao presidente à moderação política. Os participantes da pesquisa estão com sangue nos olhos, diante daqueles a quem Lula chamou, certa vez, de “picaretas com anel de doutor”. 32% julgam que os políticos “atuam em causa própria”; 17% que “são corruptos”; 14% que “são corrompidos pelo sistema”, 8% que “não cumprem o que prometem” e apenas 8% que “lutam pelo trabalhador”… Indagados acerca de sua avaliação sobre o “centro” político, 57% associam-no a “oportunismo” e 21% a “direita disfarçada” — somente 4% a “mistura de direita e esquerda”. É provável que este ânimo explique o forte apelo representado pelos atos que execram aqueles que foram tratados pelo atual presidente, em seu terceiro mandato, com enorme deferência.
Em tempos de crise, quando a própria segurança oferecida pela ordem mostra-se frágil e traiçoeira, nada mais importante do que apresentar-se como portador de um novo horizonte político — e da crítica ao status quo. Devido a uma espécie de W.O da esquerda, esta bandeira tem sido arrebatada, no Ocidente, pela ultradireita. É animador perceber a possibilidade real de uma mudança nesta cena.
E é importante notar que, caso se mantenha e aprofunde, este esboço de postura antissistema pode ser decisivo também nas eleições para o Congresso. Há muito, elas são um terreno ou para o fisiologismo (em que o Centrão nada de braçadas) ou para um discurso que, tirando proveito do descrédito nos políticos, propõe como saídas a destruição da democracia e a valorização dos “homens fortes”.
O importante é que surja, a partir do discurso embrionário contra o elitismo do Parlamento, uma crítica politizante. Significaria propor uma faxina no Congresso, livrando-o dos privilégios, do fisiologismo, da autoblindagem e — em especial — da defesa dos interesses do poder e do dinheiro. Em suma, dos podres poderes. Significaria lançar uma espécie de plataforma popular mínima, capaz de unificar dezenas de candidaturas no país e de transformar as eleições numa disputa de projetos.
Estamos prontos para isso? As manifestações deste domingo dão motivos para esperanças.
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