Juan Hernández Pico: jesuíta apaixonado por Jesus, pela justiça e pela amizade. Artigo de Omar Serrano

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16 Dezembro 2025

Entre memórias e marcos históricos, este texto apresenta sua vida entregue à América Central, sua lucidez, sua humanidade e seu legado no apostolado social.

O artigo é de Omar Serrano, vice-presidente do departamento de ação social da UCA, publicado por Religión Digital, 15-12-2025. 

Eis o artigo. 

Convivi com Piquito por mais da metade da minha vida. Meu primeiro encontro com ele foi no Panamá, quando cursei Fé e Política, um binômio cuja separação neutraliza e até condena o compromisso com a justiça. Para Piquito, ambas eram inseparáveis: a luta pela justiça é consequência da fé cristã. Naquela primeira ocasião, apresentou-se como Juan Hernández Pico, mas explicou que, por ser baixinho, o chamavam de Piquito.

E assim passou a ser chamado por muitos desde então. Nasceu em 24 de abril de 1936, em Bilbao, na Espanha. Ao longo de seus 89 anos, viveu em um tempo de mudanças ou, talvez mais adequadamente, de mudança de época. Três meses após seu nascimento, em julho de 1936, ocorreu o levante militar inconstitucional contra a República, que provocou uma guerra civil e que, três anos depois, instaurou a ditadura de Francisco Franco, prolongada até sua morte, em 1975.

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Entre as muitas marcas daquele período, Piquito sempre sentiu não ter aprendido a falar euskera, o idioma basco, já que a ditadura proibiu o uso de línguas regionais como o catalão, o galego e o euskera. Durante esses anos, estudou em colégios jesuítas e ali descobriu sua vocação. Ainda no colégio, sentiu o chamado para seguir Jesus como missionário. Ingressou no noviciado de Orduña aos 17 anos, em 1953. No mês de Exercícios Espirituais obrigatório para os novos jesuítas, orientou esse chamado missionário pedindo para ir à América Central. Contudo, teve de esperar alguns anos para concretizá-lo: uma grave doença de seu pai, que se estendeu até sua morte em 1957, adiou sua partida.

A primeira coisa que se pode dizer de Piquito é que o centro de sua vida foi Jesus Cristo. E daí deriva todo o resto. Em seu relato autobiográfico, narra como sentiu o chamado nos Exercícios Espirituais do noviciado: um amor pessoal por Jesus Cristo que nunca mais desapareceu. Anos depois, já sacerdote, em outros Exercícios, afirmou que Deus, ao longo da vida, o havia preparado para assumir o amor de sua vida e viver dele: Jesus Cristo e, nele, o povo pobre. Esse amor a Jesus crucificado e aos pobres fez dele uma pessoa disponível para ir onde fosse necessário. Sentia que depender da vontade de Deus era viver ao vento do Espírito, expressão que deu título ao seu livro autobiográfico Lutar pela justiça ao vento do Espírito. Essa atitude permanente o levou a viver tempos belos e turbulentos, alegrias e tristezas, experiências de vida e de morte.

Outra característica de Piquito é que, sendo apaixonado por Jesus e por seu Reino, viveu o seguimento sempre acompanhado. Não o imagino vivendo sozinho. Sua vida transcorreu honrando a ordem à qual pertencia e amava, buscando ser companheiro de Jesus, mas também dos demais com quem compartilhava o mesmo carisma. Tinha facilidade para fazer amizades, algo que nem todos compreendiam. Sabia amar com profundidade e também se deixava amar. Quase sempre, segundo minha experiência, a iniciativa partia dele; aprofundar a amizade dependia do outro. O sorriso com que o conheci no Panamá jamais desapareceu ao longo dos anos, em cada reencontro, inclusive no último, poucos dias antes de sua morte. E essa atitude não se limitava aos jesuítas: construiu amizades profundas também com muitas pessoas de fora da Companhia de Jesus.

O desejo de ir à América Central só se concretizou em 1960, quando veio realizar a etapa do magistério no colégio Javier, no Panamá. Ali conheceu quem se tornaria um de seus grandes amigos, César Jerez, a quem considerava um irmão. Piquito dizia que fora adotado pela família Jerez, embora provavelmente tenha sido ele o primeiro a adotá-los a todos. Não tenho dúvidas, ainda que nunca tenha falado com ele sobre isso, de que essa filiação, unida à experiência da comunidade da Zona 5, na Guatemala, influenciou sua decisão de se tornar guatemalteco, como gostava de se apresentar.

Não se compreende Piquito sem os amigos e companheiros de sua geração, como Ricardo Falla, Javier Gorostiaga, Iñaki Zubizarreta, Xavier Zarrabe e muitos outros, cujos nomes estavam gravados em seu coração. Mas também teve abertura para fazer amizade com as gerações seguintes, inclusive com grande diferença de idade. Ter sido responsável por etapas da formação e professor facilitou essas relações. Foi um acompanhante espiritual próximo, sempre pronto a aconselhar, compreensivo com as fragilidades do outro, sem deixar de ser assertivo na correção fraterna.

No interior da Igreja, Piquito viveu também um momento decisivo. Ingressou na Companhia antes do Concílio Vaticano II, que acompanhou enquanto estudava teologia com seus colegas em Frankfurt. Segundo suas próprias palavras, durante a etapa da teologia, entre 1963 e 1967, o mais importante de suas vidas foi o Concílio Vaticano II. Contava que o acompanharam de perto, em parte porque três jesuítas que eram seus professores também foram peritos conciliares e os mantinham informados sobre seu andamento. Pessoalmente, creio que, para seu grupo e para a direção da Companhia de Jesus, o Concílio não foi um terremoto inesperado, mas uma confirmação do que já vinham fazendo, pensando e sentindo.

Desde sua chegada ao Panamá para o magistério, Piquito e César Jerez já pensavam em fundar na América Central um Centro de Pesquisa e Ação Social, como existia em outras províncias da América Latina. Essa ideia amadureceu durante os estudos de teologia. Sobre o que já faziam e à luz do Vaticano II, Piquito escreveu que estavam realmente na fidelidade católica quando decidiram buscar, a partir da fé e por meio da análise, da pesquisa, da crítica, da denúncia e da proposta, soluções plenamente humanas para uma realidade tão injusta como a vivida na América Central.

Após a teologia e já ordenados, um provincial visionário, como ele gostava de dizer, Luis Achaerandio, enviou um grupo de jesuítas para realizar estudos especiais em sociologia, antropologia, economia e outras disciplinas, com vistas à criação do Centro. O projeto se concretizou em 1973, com a fundação da comunidade da Zona 5, uma área populosa da capital guatemalteca, da qual todos os seus integrantes, alguns anos depois, tiveram de partir para o exílio devido às ameaças que sofreram. Piquito e seu grupo foram precursores do que hoje é o apostolado social da Companhia na América Central.

Por sua formação, Piquito se movia nessa fronteira sempre difícil entre a sociologia e a teologia. Procurava manter-se atualizado nas novidades dessas e de outras áreas. Foi a primeira pessoa de quem ouvi falar de Manuel Castells e da chamada era da informação na qual a humanidade estava entrando. Chegou inclusive a dissertar sobre esse tema no Encontro Centro-Americano de Análise da Realidade, em 2002, realizado em El Progreso, Honduras. Sem saber, estávamos então no prelúdio das transformações vertiginosas que as tecnologias da informação e da comunicação trariam e que hoje, ao que parece, definem a ordem mundial. Além disso, Piquito possuía uma memória privilegiada, o que lhe rendeu o apelido de memória da província. Por isso, em seus últimos anos, doía-lhe perceber as falhas da memória, mas, como em tantas outras situações, soube acolher isso com humildade.

Muitas outras coisas importantes poderiam ser ditas sobre alguém a quem tive o privilégio de contar entre meus muitos amigos e amigas. Mas essa não é a intenção. Creio que é evidente que, ao descrever Piquito, descrevi o jesuíta apaixonado por Jesus Cristo e pelos pobres, lutador pela justiça, com sólida formação acadêmica, coragem para dizer a verdade, consciente de suas falhas e limitações, e com grande capacidade de partilhar seus conhecimentos nas salas de aula e nas comunidades; e também de partilhar a mesa com os preferidos de Deus na Zona 5, no Ixcán, em Arcatao ou em Santa María Chiquimula.

Ao longo de sua vida, Piquito experimentou dois temores. Um era a solidão, ser abandonado. O outro era o esquecimento, que se esquecessem dele. Creio que ambos permaneceram apenas como temores. Viveu toda a sua vida em companhia e sendo querido por muitos; morreu cercado de companheiros que estiveram com ele até o último momento. Até sempre, querido Piquito.

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