Tradicionalismo, “desordem informacional” e interesses econômicos. Artigo de Fabrizio Mastrofini

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15 Dezembro 2025

"A missão da Igreja na era digital não é apenas corrigir falsidades, mas curar a imaginação, para que os católicos aprendam a ver o mundo não como um palco de conspirações, mas como um 'lugar' onde possam agir positivamente, na História, à luz do Evangelho e não das reconstruções mais fantasiosas".

O artigo é de Fabrizio Mastrofini, jornalista e ensaísta italiano, em artigo publicado por Settimana News, 15-12-2025.

Eis o artigo.

Os tradicionalistas (católicos) radicais e os católicos reacionários de hoje acreditam ser verdadeiramente fiéis ao Magistério, seja lá o que isso signifique. A análise é de Mike Lewis, fundador e editor do site Where Peter Is, que recentemente publicou uma análise aprofundada da bricolagem característica dos últimos anos.

Reações a dois documentos eclesiásticos

Baseando-se nas teorias de Claude Lévi-Strauss, o renomado antropólogo francês, Mike Lewis destaca as contradições de uma forma de pensar e agir que mistura diferentes elementos, funcionais a uma visão conservadora e simplista do mundo, católica ou não.

No centro das atenções está a dicotomia entre "sociedades quentes" e "sociedades frias", ou seja, entre sociedades caracterizadas por um alto grau de aceitação e acentuação do dinamismo, dos acontecimentos, da mudança, e sociedades que tendem, ao contrário, a congelar o fluxo dos acontecimentos, da história.

Isso fica claramente evidente nas reações exageradas aos dois últimos documentos divulgados pela Santa Sé. O primeiro — tecnicamente — é um texto oficial, a Nota do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre os Títulos Marianos. Embora tenha sido apresentada em um local diferente da Sala de Imprensa, um ambiente natural, a Nota provocou uma onda de críticas por parte dos conservadores devido ao seu pedido enfático e específico para que os termos "corredentora" e "mediadora" não fossem usados ​​ao se referir a Maria. Tanto que gerou acusações de lesa-majestade por parte do mundo conservador, tanto nos EUA quanto em outros países.

O segundo documento, que na verdade não é um documento, é o relatório da Comissão do Diaconato, divulgado pelo seu presidente, o Cardeal Petrocchi. Também aqui houve uma enxurrada de comentários nas redes sociais e insultos dirigidos àqueles que expressaram posições críticas, como evidenciado pela hostilidade com que os comentários do liturgista Andrea Grillo e da teóloga Irmã Linda Pocher foram recebidos. E a necessidade, por uma vez, de reagir no SettimanaNews, para enfatizar publicamente que o estilo de comunicação interna não deve se rebaixar a esse ponto.

Em vez disso, estamos nos acostumando com um mundo católico insultando o outro. E com todo o respeito ao Artigo 220 do Direito Canônico (Cân. 220: "É ilícito prejudicar ilicitamente o bom nome de outrem ou violar o direito de alguém à defesa da sua privacidade"), e é — obviamente — completamente inaplicável.

Cardeal Burke (centro) é um dos tradicionalistas radicais do catolicismo. A imagem é de uma celebração no ano de 2016 (Foto: Reprodução)

Como influenciar o julgamento

Mas qual é o ponto crucial da questão? Na verdade, existem dois "centros" da questão.

O primeiro ponto é destacado por Mike Lewis: "A Igreja — especialmente nos ensinamentos de João Paulo II, Bento XVI e Francisco — tem afirmado consistentemente que fé e razão caminham juntas, incentivando a abertura à investigação empírica, a honestidade intelectual e os métodos disciplinados da ciência moderna. Esses papas insistiram que as ordens natural e sobrenatural não são rivais, mas parceiras na busca da verdade, e que a fé autêntica não tem nada a temer da investigação científica. Muitos católicos, no entanto, desconhecem a abordagem institucional da Igreja. O tradicionalismo contemporâneo frequentemente mistura fragmentos da ideologia da guerra cultural americana com fragmentos da teologia moral escolástica, produzindo um sistema que parece tradicional, mas que, na realidade, é um híbrido improvisado de política moderna e medievalismo seletivo."

Ele continua: "Ainda hoje, muitos católicos não respondem a alegações sensacionalistas com pesquisa cuidadosa ou investigação histórica. Em vez disso, reagem com intuição imaginativa. Uma profecia ressoa. Uma voz 'se encaixa'. Um influenciador repete uma alegação. Um símbolo parece ameaçador. A narrativa emocional se constrói muito antes que as evidências sejam consideradas. Teorias da conspiração e aparições apocalípticas não aprovadas prosperam precisamente nesse ambiente imaginativo porque confirmam ansiedades já presentes no subconsciente. (...) Infelizmente, muitos católicos seguem esse caminho. Eles confiam em figuras de confiança para interpretar os eventos em seu nome. Em vez de ouvir o Papa e outros líderes institucionais da Igreja, seguem seus influenciadores favoritos, muitos dos quais entram em conflito regularmente com o Magistério. Essas figuras incluem o Padre Chad Ripperger, o Bispo Joseph Strickland e Taylor Marshall, entre outros, cujas plataformas de mídia se apresentam regularmente como guardiões do catolicismo 'ortodoxo' em oposição ao Magistério, ao Papa e aos líderes da Igreja. Em sua narrativa, bispos importantes e praticamente toda a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos são retratados como corruptos." liberais, modernistas e progressistas.

Como exemplo, Mike Lewis cita os dois grupos distintos e opostos de seguidores de Veronica Lueken, uma dona de casa do Queens, Nova York, que supostamente testemunhou aparições na década de 1970, as quais foram negadas em 1986 pela Diocese do Brooklyn. "O movimento Bayside sobrevive até hoje, apesar da condenação pela Igreja institucional, porque oferece um universo simbólico. As aparições e profecias descritas por Veronica Lueken contam uma história na qual eventos desconcertantes fazem sentido."

O "significado" é uma explicação simples do mundo: um papa faz declarações desconcertantes porque não é um papa verdadeiro; a Tradição é sempre válida; a verdade é a Igreja como sempre; o mal é sempre obra do diabo; comunistas e maquinações ocultas buscam minar "nosso" sistema e modo de vida, que é sempre o ocidental. E a pandemia seria a resposta de Deus, ofendido pelo Sínodo da Amazônia e suas supostas tendências sincréticas.

Uma nova versão da simplificação universal tem circulado nestas últimas semanas. Não há receio de contradição, visto que os protagonistas estão todos mortos. Trata-se — como aponta Mike Lewis — do ressurgimento do interesse — obviamente explorado — no ex-jesuíta Malachi Martin (1921-1999). Na década de 1960, ele decidiu escrever romances baseados em teorias da conspiração para um público católico predominantemente tradicionalista, após o sucesso de seu romance sobre exorcismo, Refém do Diabo, que foi adaptado para o cinema no filme O Exorcista.

A obra de Martin criou um modelo interpretativo que persiste até hoje. Suas insinuações sobre inimigos ocultos, profecias reprimidas e hierarquias comprometidas continuam a influenciar católicos que interpretam os eventos modernos através de uma lente apocalíptica. Seu mundo é simbólico, e não histórico, mas oferece uma maneira convincente de organizar o medo. De acordo com essa linha de pensamento, a teoria habilmente construída que agora se espalha afirma que Martin foi até mesmo nomeado cardeal in pectore por Paulo VI.

Na era digital, o universo simbólico se expande, por exemplo, através do Sign of the Cross Media, um canal dedicado a incitar o medo e a indignação entre católicos facilmente influenciáveis ​​por meio de memes e artigos enganosos sobre o mundo do catolicismo.

Outra vertente da divulgação midiática é o John Henry Westen Show, um podcast do YouTube que apresenta vozes extremistas, profecias catastróficas e comentaristas de credenciais duvidosas. Por meio de seus esforços na mídia, ele entrelaça diversas alegações e afirmações em uma narrativa mais ampla de crise: traição eclesial, colapso moral e conspirações ocultas. Essa estrutura narrativa convida os espectadores a interpretarem os eventos da Igreja pela lógica da infiltração e da apostasia.

Negócios e Política

Daqui chegamos ao segundo "núcleo" da questão. Embora, à primeira vista, isso possa parecer "pensamento descontrolado" (Levi-Struss) — rejeitar a lógica e a análise para se refugiar em mitos e símbolos —, na realidade, esconde interesses econômicos específicos. São mecanismos construídos para financiar e serem financiados por grupos e interesses políticos e partidários.

Nas redes sociais, basta um exemplo da organização X: a criação de um perfil de católicos para católicos, "o movimento católico que mais cresce nos EUA", que apoia a política "cristã" do presidente Trump, baseada na preeminência de valores "tradicionais" (seja qual for o significado que se queira atribuir a eles) e reiterada no documento da Casa Branca sobre a estratégia de segurança nacional. Uma estratégia política, econômica e financeira que se apoia na "desordem informacional", eleita como sistema e regra para semear dúvidas, descrença, descrédito e disseminar informações falsas ou manipuladas, a fim de gerar medo e terror e demonstrar que apenas um partido político pode nos defender de "inimigos" internos e externos.

O que fazer? A tarefa aqui é realmente difícil, porque a Igreja Católica hoje está tão polarizada quanto o resto do mundo, graças à proliferação desenfreada e descontrolada de sites e mensagens. De forma sutil e generalizada, sem que as Conferências Episcopais ou a Santa Sé percebessem, essa proliferação ocorreu e persiste até hoje.

E, infelizmente, ainda há pouca consciência da situação e da importância absoluta de estarmos preparados para exercer discernimento baseado na caridade, e não no medo.

A missão da Igreja na era digital não é apenas corrigir falsidades, mas curar a imaginação, para que os católicos aprendam a ver o mundo não como um palco de conspirações, mas como um "lugar" onde possam agir positivamente, na História, à luz do Evangelho e não das reconstruções mais fantasiosas.

Mas é preciso conscientização. Em primeiro lugar, por parte daqueles que gerenciam e utilizam os meios de comunicação , especialmente os meios oficiais da Santa Sé e das Conferências Episcopais.

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