Há um Natal culturalmente rico e espiritualmente encharcado de brasilidade nas roças e interiores do Brasil profundo que sobrevive na espiritualidade e alegria das manifestações populares
A Folia de Reis, conhecida também como Reisado ou Festa de Santos Reis, representa uma das mais ricas e antigas expressões populares brasileiras. Uma tradição que tem suas raízes em Portugal e foi introduzida no Brasil no século XVIII, trazida pelos jesuítas, que a utilizavam como uma ferramenta de catequização e difusão da fé católica entre a população.
“As folias de reis fazem parte daquilo que insiste em afirmar a vida nos atravessamentos de nossa brasilidade. (...) Aqui, os magos encontraram uma afetuosidade vinda das margens africanas e se tornaram então folias da plena irmandade”, explica Humbertho Oliveira, autor do livro A alma brasileira e a folia de reis (2025), em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Com o tempo, essa manifestação incorporou elementos das culturas indígena e africana, resultando em uma forma de arte popular genuinamente brasileira, celebrada em diversas regiões do país entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro. “O novo [pode ser] visto como o ato de varrer o que mata e o bem comum sentido como a perspectiva de se acabar as guerras e a dominação da vida na terra”, sublinha o entrevistado que é integrante da cantoria de reis do núcleo de cultura popular Céu na Terra, no Rio de Janeiro, e compartilha sua vivência de mais de 20 anos com a prática foliã.

Humbertho Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)
Humbertho Oliveira Pinto é artista-pesquisador do Núcleo de Cultura Popular Céu na Terra, graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação. É autor de A alma brasileira e a folia de reis (Vozes, 2025) e professor Instituto Junguiano do Rio de Janeiro.
IHU – Qual a importância da Folia de Reis para a cultura brasileira e em que sentido ela se constitui como uma espécie de alma brasileira?
Humbertho Oliveira – As folias de reis fazem parte daquilo que insiste em afirmar a vida nos atravessamentos de nossa brasilidade. Absorvida dos jesuítas pelos escravizados, o ritual popular cristão da folia de reis foi reinventado pela religiosidade popular como a mítica da esperança descolonial da liberdade, da legitimidade e da autoria.
IHU – O senhor é autor do livro A alma brasileira e a folia de reis, que tem origem em sua dissertação de mestrado. Onde foi, exatamente, que estudou o fenômeno, em quais cidades?
Humbertho Oliveira – Eu faço parte da cantoria de reis do núcleo de cultura popular Céu na Terra, no Rio de Janeiro. Há mais de 20 anos esse grupo vem realizando uma prática foliã, inspirada nas velhas folias de reis, atuando principalmente na região do interior do estado do Rio de Janeiro e na capital, repetindo a cada passagem de ano, esse conhecido período das manifestações das folias ao longo do Brasil, o ritual de visitação dos reis a residências, instituições, lugares públicos de significação popular... Nas visitas foliãs de reis que fazemos anualmente estamos sempre presente as casas de velhos integrantes de folias. E também estamos sempre atentos às folias de reis da região para conhecermos e “toparmos com a bandeira”.
Capa do livro A alma brasileira e a folia de reis (Foto: Editora Vozes)
IHU – O que é o Auto dos Reis Magos, narrativa mítica anterior ao nascimento de Jesus Cristo na grande Palestina? Como essa história foi parar no Evangelho de Mateus?
Humbertho Oliveira – Os mitos, as narrativas nascem através da necessidade humana de criar histórias para lá de sensíveis como forma de dar conta da realidade, das duras realidades vividas na mais substancial artesanalidade das sociedades. Essas narrativas são contadas e recontadas, formadas e alteradas, em formas profundamente espontâneas e variadas. Até que em algum momento alguém eterniza uma narrativa mítica, culturalmente, escrevendo uma de suas versões. Assim se deu com o Grande Édipo que depois de 300 anos de histórias do populacho grego sobre édipos variadíssimos foi plasmado como o édipo rei de Sófocles. Assim se dá nas folias de reis brasileiras que repetem contando, em forma de vivência mítica, a história palestina de intensa poesia contada por Mateus: a mítica do encontro dos reis magos com o deus menino num estábulo, num cocho-manjedoura.
IHU – Em uma perspectiva histórica, qual a origem da Folia de Reis e como ela foi se desenvolvendo na história do Brasil desde o século XIX?
Humbertho Oliveira – Sabe-se que a folia é de origem portuguesa e espanhola, trazida pela colonização, utilizada mesmo como catequização e transformada pela população pobre em ritual religioso não clerical, não catequético. O cruzo com o que era considerado profano foi fundamental aqui, como em outras tantas manifestações artísticas populares. A inclusão da música, da dança, da festividade idas de porta em porta, porta que acolha os foliões com seus cânticos, sua celebração da vinda do divino. São grupos, ternos, companhias, caravanas de gente do povo que levam violas, pandeiros, sanfonas, rabecas, pífanos e caixas para celebrar o santo reis. A comida servida aos foliões nas casas visitadas tornou-se parte do ritual.
IHU – Como a Folia de Reis une a mitologia cristã, muito mediada por uma perspectiva ocidentalizante, e mitos populares brasileiros como saci-pererê e o Curupira?
Humbertho Oliveira – Esses são mitos vindos do mundo dos nossos povos originários. Outra grande chama da nossa alma brasileira, a mais original daqui. Há aqui muitas vertentes míticas na alma brasileira. Nesse nosso assunto, a folia de reis, estamos mais voltados para aquela mítica cultivada na cultura popular brasileira, no ambiente do cruzo. No bumba-meu-boi, por exemplo, podemos encontrar místicas indígenas, negras, europeias...
IHU – Como essas narrativas da cultura popular produzem ou se transformam em vivências místicas?
Humbertho Oliveira – Instintos da natureza humana, poderia dizer a psicologia complexa. Precisa-se do místico, do religioso, da proximidade com o mistério, se não a vida se empobrece muito para além ainda da pobreza legítima.
IHU – O que essas vivências místicas revelam sobre um tipo de sagracidade que nos é muito própria?
Humbertho Oliveira – Isso é o que também pensamos como alma brasileira. Que espécie de sagrado e de profano procuramos, traçamos, nos faz ficar estonteados? O que criamos a partir do barro do nosso chão? Recentemente estive lançando o livro em Portugal e lá brinquei que ia eu numa espécie de movimento descolonial lírico mostrar a alma brasileira aos portugueses. Foi emocionante e muito bem recebido. E fiquei muitíssimo curioso em expandir a minha visão sobre a alma portuguesa. Em que contracolonialidades estiveram eles, antes de nós, transitando e se construindo? O que nos ensina acerca daquela gente o fado popular nascido em Coimbra, Porto, Lisboa?
IHU – Por que encruzilhadas o Auto dos Reis Magos passou até que chegasse na nossa Folia de Reis, produzindo esses cruzamentos (ou cruzo) de manifestações culturais e místicas, fazendo-nos chegar a uma manifestação tão genuinamente brasileira?
Humbertho Oliveira – As paradas no ritual da visita das folias para o grude, a comida que é servida pelos que recebem a folia, costumam terminar em festa. É onde se cantam e se dançam o samba de roda, o jongo, a ciranda, o congado, o mineiro pau... Aqui os reis se embebedaram com a arte popular. Aqui, os magos encontraram uma afetuosidade vinda das margens africanas e se tornaram então folias da plena irmandade.
IHU – O que significa dizer que a Folia de Reis é, também, uma prática meditativa? Quais as consequências culturais e místicas dessa compreensão?
Humbertho Oliveira – Gilberto Gil dizia que o bloco Afoxé Filhos de Gandhy era uma prática meditativa, uma prática profundamente corporal de se chamar a paz, a conexão com tudo, a perspectiva de um melhor lugar para se viver. Assim são nossas folias, uma meditação para a irmandade.
IHU – Qual a importância de fazer esse tipo de aproximação com manifestações da cultura brasileira para podermos descolonizar o Natal no Brasil?
Humbertho Oliveira – Estamos precisando descolonizar tudo. Em psicologia complexa falamos mesmo que precisamos descolonizar o inconsciente, a psique. E como precisamos!
Precisamos nos descolonizar, por exemplo, dos halloweens americanos e visitar nossos mortos ao gosto das carpideiras, dos curupiras, dos sacis, dos festeiros... Precisamos descolonizar nossos natais: Papai Noel, árvores lantejouladas e neves não nos pertencem. O pastoril é um dos nossos legítimos natais, e muito ainda praticado no Recife e em muitos outros lugares. Um folguedo brasileiríssimo que, como a Folia de Reis, absorveu a mitologia cristã e o presépio tornou-se uma lapinha especialíssima que só teria acesso o populacho que cultivasse a vida intensamente como as Dianas, os cirandeiros, os velhos apaixonados, o boi, o burro... E muita música e dança para evocar a alegria reverente.
IHU – Vivemos em um tempo de guerras, solidão e mundo convulsionado. Diane esse cenário, qual sua mensagem de Natal?
Humbertho Oliveira – Que o doce Menino Deus, o devir desesperado dos nossos tempos, aquele menino nascido no cocho com os animais e os pastores, à luz da estrela que iluminava aquele nascimento, seja por nós muito procurado! Tornemo-nos magos à procura desse menino em nós e em quem estiver junto à perspectiva da fundamental irmandade.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Humbertho Oliveira – Sim. Desejo agradecer o interesse de vocês por esse livro. Esse livro celebra a minha vida de alguma maneira. Soube eu das folias de reis na minha mais tenra infância, conto isso no livro. A experiência que tenho daquele evento na minha vida é de ter-me impactado com aquilo que é novo, com aquilo que procuramos para fazer melhor a vida. E é isso que gostaria de conversar com as pessoas: o novo [pode ser] visto como o ato de varrer o que mata e o bem comum sentido como a perspectiva de se acabar as guerras e a dominação da vida na terra.