A sabedoria das Mães da Igreja como fonte e referencial para as tradições cristãs. Artigo de Rosemary Fernandes da Costa.

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13 Dezembro 2025

No ponto de partida do deste artigo, que apresenta uma “compreensão sobre a configuração das primeiras comunidades cristãs, seu desenvolvimento, amadurecimento”, está uma constatação: aquilo que foi como História da Igreja dos primeiro séculos está permeado da presença dos Padres da Igreja. Contudo, um olhar mais atento, mesmo que sem uma pesquisa aprofundada, vai estranhar a ausência da presença feminina nessa trajetória”.

Rosemary Fernandes da Costa é doutora em Teologia pela PUC-Rio e professora de Cultura Religiosa no Departamento de Teologia da mesma universidade. Atua na assessoria a movimentos populares de juventudes e integra grupos com experiências inter-religiosas.

Eis o artigo.

O que foi consignado e legitimado como História da Igreja, o início do processo de formação e de estruturação, a caminhada das comunidades, a pedagogia e documentação que inspirou e documentou esse rico processo, está permeado da presença dos Padres da Igreja. Contudo, um olhar mais atento, mesmo que sem uma pesquisa aprofundada, vai estranhar a ausência da presença feminina nessa trajetória. A pergunta sobre essa ausência conduz à investigação e também à busca de uma compreensão sobre a configuração das primeiras comunidades cristãs, seu desenvolvimento, amadurecimento. Não havia a presença das mulheres? Essa presença não impactou a formação das comunidades? E, se impactou, como se deu sua participação e influência no processo eclesial?

Abordar a trajetória dos primeiros séculos da Igreja cristã demanda uma pesquisa aprofundada, investigando documentos formais, textos do Magistério e da Espiritualidade, mas também as entrelinhas e contextos subjacentes a cada tempo. Muitas pesquisadoras e pesquisadores têm se dedicado a esse empreendimento. Nesta reflexão, no entanto, gostaríamos de nos ater às pesquisas quanto à presença feminina nessa trajetória. Sem nenhuma pretensão de abarcar esses estudos em sua complexidade, mas apenas pontuar algumas chaves de leitura que já estão presentes em nosso tempo.

1. A complexidade de fatores dos primeiros séculos

Vale a pena demarcarmos que desde os primórdios da caminhada cristã, ou seja, do tempo apostólico até o século IV, há uma confluência de fatores que não é apenas casual. Entre revelações, desafios, vivências, diálogos formais e informais, estamos diante de uma história viva, fecunda e fontal. Por isso mesmo, para a teologia, a parceria entre os fundamentos teológicos em elaboração e a caminhada concreta das comunidades precisa estar em diálogo. O que mais tarde foi chamado de pastoral era o agir eclesial e missionário em cada contexto, e a teologia foi elaboração a muitas vozes, muitos contextos e desafios. Portanto, se isolarmos um dos dois fatores, criamos um abismo que não apenas nos afasta do processo, como é enganoso.

O desafio, portanto, é estabelecer uma relação próxima, de escuta atenta e discernimento crítico e criativo, investigando fatos, os ditos e os não ditos, mas também priorizando o processo de Revelação em seu transbordar, em sua abertura à história de cada tempo e a recepção das pessoas e das comunidades. Enfim, propomos um tripé para esse diálogo: Revelação-Cotidiano das Comunidades-Leitura e interpretação eclesial. Buscamos estar atentas às comunidades, à história viva de homens e mulheres em sua busca pela origem e pelo sentido de sua existência e, assim, nos colocarmos como mediadoras, da Revelação que ecoa no tempo e convoca a uma experiência de fé com fidelidade e criatividade próprias da Ruah que nos orienta.

Estamos cientes da extraordinária expansão do cristianismo nos seus primeiros séculos, proveniente da atividade missionária, da motivação para propagar a fé cristã em todo o mundo. No final do século II, o quadro geográfico do Cristianismo é bastante extenso. (Pierrard, 1982, 26 e Hoornaert, 1986, 76). No século II, período mais florescente do gnosticismo, emergem alguns dos grandes representantes da Tradição eclesiástica. (Fuentes Patrística, 1992, 17) No início do século IV já se observa a organização das comunidades cristãs estabelecidas. (Hoornaert, 1986, 77). Por um lado, a Igreja cresce e se desenvolve, e por outro experimenta uma época de incertezas para o movimento cristão ainda recente, constantemente ameaçado por perseguições e heresias. (Jedin, 1966, 369-380)

Na centralidade dessa reflexão nos interpelamos: diante da Revelação divina e seu processo, das etapas de iniciação e construção do Cristianismo e seus fundamentos, por onde andaram as mulheres? Diante de um período tão longo para ser pensado e compreendido (sécs. I a IV) não podemos pretender encontrar apenas um enfoque ou uma unidade de ações pastorais e teologais. Para cada etapa da caminhada inicial do Cristianismo, encontraremos a presença feminina em espaços e atribuições diversas. Alguns exemplos: as igrejas domésticas, os serviços eclesiais (diaconato, catequese, presbiterato, tradução e interpretação de textos bíblicos), serviços litúrgicos, orientação espiritual, apoio econômico e social.

Esta caminhada inicial, que se tornou fundamento para o Cristianismo até nossos tempos, localiza como referenciais os Pais e Mães da Igreja. Segundo o monge Marcelo Rezende Guimarães, são todas aquelas pessoas que “fundaram ou ajudaram a firmar as comunidades, e estas guardaram sua força de fé, seu testemunho e ensino”. (1994)

2. Algumas das tantas referências presentes nessa caminhada

Trazemos aqui algumas das tantas Mães da Igreja, não com a finalidade de nos contentarmos com estas que as pesquisas dedicadas trouxeram à tona em sua participação fundamental, mas como luzes que nos apontam que muitas outras mulheres tiveram uma presença cotidiana, fecunda e histórica e, por isso mesmo, devemos prosseguir na missão de trazer à visibilidade e reverência para toda as comunidades cristãs e de outras tradições religiosas.

Iniciemos com o séc. I, lembrando da apóstola Junia e da diaconisa Febe. No séc. II citamos Filomena e Marcelina, acusadas como hereges. No séc. III, Perpétua foi a única profetisa considerada legítima, tanto pela ortodoxia católica, como pelos ‘ditos’ cristianismos hereges. Seu diário é considerado o primeiro texto cristão escrito por uma mulher e está contido nas Atas dos Mártires. No século IV não podemos deixar de pontuar o lugar que Helena ocupa com suas peregrinações e resgate histórico dos lugares sagrados, seguida por Melânia a Velha. Ainda no mesmo século, encontramos Marcela, Paula, Blesila, Eustóquia, Macrina, e as diaconisas Olímpia, Salvina, Amproukla, que nos chegam através dos Pais da Igreja, Jerônimo, Gregório de Nissa, Paládio e João Crisóstomo. Neste mesmo século, Proba e Egéria nos deixam seus testemunhos missionários e espirituais em textos preciosos. (cf. Ribeiro, 2025)

É fundamental ainda o nascimento do monaquismo, iniciado por Macrina e Marcela. Contudo, em muitos textos, encontraremos os nomes de Basílio no Oriente e de Jerônimo no Ocidente. (cf. Shenk, 2024)

3. Ausências ou invibilizações?

Para compreendermos as razões de não encontrarmos suas referências, olhemos para a própria cultura em que o Cristianismo se desenvolve nestes primeiros séculos. No mundo greco-romano havia a determinação do que seriam os papéis femininos, mas também a progressiva aceitação de sua autonomia financeira, educação e vida pública. No primeiro século do Cristianismo, já encontramos muitas mulheres nos relatos do Novo Testamento atuando como lideranças domésticas, evangelistas, diaconisas, e até apóstolas, como Junia.

Contudo, o respeito às lideranças e participações femininas é alterado na mudança de contexto do séc. III, quando o Cristianismo adota o sistema de reuniões em assembleias, sob supervisão de bispos locais e começa a associar as lideranças femininas às heresias. Sob essa acusação sofrem, por exemplo, Marcelina, Filomena e Perpétua.

O século IV apresenta um novo dinamismo eclesial. No Concílio de Niceia, a presença das mulheres é percebida nas entrelinhas de alguns cânones e, ao mesmo tempo, pedem cautela e limites, como por exemplo, não receberem a imposição de mãos. Ou seja, não serem legitimadas pelos homens como autoridades. (Cânone 19, Concílio de Niceia)

Impedidas de ensinar em público, de manterem sua vocação diaconal ou presbiteral, as mulheres seguem sua missão no serviço à fé que as orienta. Sua vida de oração, sua espiritualidade e leitura das Escrituras e de cada contexto em que viviam, indicavam sua maturidade e sabedoria, e por isso sendo reconhecidas tanto por homens como por mulheres para o ensino, a orientação espiritual e o aconselhamento. (cf. Ribeiro, 2025)

4. Prosseguir e perseverar no caminho das fontes de sabedoria e testemunho

Estes são apenas alguns nomes que já podemos reverenciar e aprofundar por seu testemunho e também por sua autoridade eclesial. Mães da Igreja que não apenas influenciaram as comunidades cristãs do seu tempo, mas também dos tempos que se seguiram.

É certo que, juntamente suas presenças, muitas mulheres anônimas participavam dessa caminhada. Seus nomes foram esquecidos em documentos históricos, mas podem ser resgatados por pesquisas dedicadas a investigar as entrelinhas e contextos de cada tempo.

Abraçamos o discernimento do monge Marcelo Guimarães quanto à nomeação de algumas presenças cristãs como Pais e Mães. Ele pontua que antes de Pais e Mães da Igreja, são irmãos e irmãs na fé. Com isso, Marcelo Guimarães confirma o processo de Revelação e sua acolhida como princípio fundante e que dinamiza o agir cristão. Sendo assim, pais e mães da caminhada cristã estiveram presentes em todos os tempos e continuam entre nós. Podemos reconhecê-los por sua presença fecunda, seu testemunho, seus ensinamentos, sua mistagogia. (Cf. Guimarães, 1994)

“Essa lista poderia ser ampliada com os nomes de pais e mães de nossa comunidade, da Igreja no Brasil e na América latina. Certamente, aquela rezadeira, aquele catequista, aquela religiosa, aquele bispo, aquela liderança indígena, aquele defensor dos escravizados e negros, e tantos outros.”. (Guimarães, 1994, 14)

Referências Bibliográficas

FUENTES PATRÍSTICAS. Irineo de Lion. Demonstración de la Predicación Apostólica. Introd., trad. e notas de Eugenio Romero Pose, Madrid: Ciudad Nueva, 1992.
GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Conversando com os Pais e Mães da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1994
HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão. Petrópolis: Vozes, 1986.
JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966.
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. O contexto social, histórico e teológico das “Mães da Igreja” Aula proferida no curso on-line A Espiritualidade das Mães da Igreja pela Lusófona-X. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 18 de outubro de 2025
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982.
SCHENK, Christine. As “Mães da Igreja” do Século IV. In: IHU Unisinos, 2024. Disponível em https://ihu.unisinos.br/categorias/639471-as-maes-da-igreja-do-seculo-iv. Acesso 14 nov 2025

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