12 Novembro 2025
A riqueza e a pobreza andam lado a lado em Moçambique. Neste país há recursos minerais preciosos, mas faltam empregos e acesso a cuidados básicos. É neste país onde a pobreza é generalizada entre a população que está ao serviço Inácio Saúre, um Missionário da Consolata que é o atual arcebispo de Nampula e presidente da Conferência Episcopal de Moçambique. Este arcebispo moçambicano lamenta a pobreza em que vive a população, a cobiça de que são alvo os recursos naturais do país e a vulnerabilidade das habitações dos mais pobres. Perante um futuro sem esperança, o recrutamento de jovens por parte de grupos armados acontece com facilidade. A violência é frequente no norte do país e “não se vislumbra nenhum fim”, lamenta Inácio Saúre.
A reportagem é de Juliana Batista, publicada por 7 Margens, 11-11-2025.
Em declarações ao 7 Margens na Cova da Iria (Ourém) onde esteve em setembro, depois do XVI Encontro de Bispos dos Países Lusófonos, Inácio Saúre explicou como aceder a um bem essencial como a água, por exemplo, não é uma realidade para muitos moçambicanos. “Na cidade de Nampula, a terceira maior cidade do país, em muitas casas, não há água corrente. Casas mesmo no centro da cidade”, referiu o arcebispo. A mendicidade é outra das realidades. “Há muita gente na rua. Há velhinhos a mendigar, e depois, praticamente, sem receber nenhum apoio”, lamentou.
O povo moçambicano vive maioritariamente na pobreza, mas há uma região deste país que é rica em recursos naturais. Trata-se da província de Cabo Delgado, onde é grande a concentração de gás natural. Empresas multinacionais têm grandes interesses naquela região. Moçambique conta atualmente com três projetos de desenvolvimento aprovados para exploração das reservas de gás natural da bacia do Rovuma, classificadas entre as maiores do mundo, e que se encontram localizadas junto à costa de Cabo Delgado.
É precisamente esta província rica em gás natural do Norte de Moçambique que tem sido alvo de ataques terroristas, desde 5 de outubro de 2017, reinvidicados por movimentos associados ao grupo extremista Daesh, o autoproclamado Estado Islâmico.
Em oito anos, os ataques terroristas em Cabo Delgado fizeram, pelo menos, 6.257 mortos, segundo o Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos. Desde 2017, este conflito provocou também mais de um milhão de deslocados, segundo estimativas oficiais.
Só no ano passado, pelo menos 349 pessoas morreram em ataques no norte do país, o que representa um aumento de 36 por cento em relação ao ano anterior, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos de África. Este ano, a violência na província de Cabo Delgado está prestes a atingir um recorde, com 519 ataques relatados até ao final do passado mês de agosto, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.
Desigualdades acentuadas
A exploração de recursos que ocorre no país não se traduz em benefícios para a população, como explica Inácio Saúre. “Moçambique é um país potencialmente muito rico mas, ao mesmo tempo é muito pobre. Uma das causas apontadas para esta guerra é a descoberta de recursos minerais, como o gás”, e acrescenta: “Tudo isto são riquezas do país das quais, infelizmente, as populações locais praticamente não beneficiam. São as grandes multinacionais que as exploram. O povo muitas vezes nem sabe como é que esta riqueza é redistribuída, qual é a percentagem que cabe ao país, à terra de onde são extraídos os minerais, e depois o país fica nesta situação de extrema pobreza.”
A miséria em que vive a população tem tornado fácil a mobilização de jovens pelos grupos armados. Só no ano passado, há dados que apontam que mais de 400 crianças foram recrutadas para as fileiras terroristas, na província de Cabo Delgado. “No bairro de Namicopo, em Nampula, crianças transportam areia para aqueles que constroem. Vive-se numa miséria tática. Isto certamente favorece o contexto de guerra”, aponta o bispo: “Qualquer proposta serve para um jovem que vive em extrema miséria. Basta dizer-lhe que vai receber um pouco de dinheiro. Penso que a miséria contribui muito para esta escalada de guerra. Facilita o recrutamento de jovens.”
Inácio Saúre não avista um desfecho para o conflito. “Não se vislumbra nenhum fim. Mesmo que agora não se fale muito disto, não há nenhuma melhoria. O Governo moçambicano aceitou a intervenção de forças externas. O exército ruandês continua lá, em peso, mas infelizmente a guerra prossegue. Há decapitações, destruição de aldeias, de capelas… É uma situação muito preocupante”, disse o arcebispo, enquanto mostrava no celular imagens recentes de pessoas decapitadas no contexto deste conflito.
Ciclones e ventos intensos
As catástrofes naturais são outro dos problemas que assolam o país. O número de ciclones que atingem Moçambique tem aumentado na última década, assim como a intensidade dos ventos, segundo o relatório anual do “Estado do Clima em Moçambique – 2024”. Este país africano é considerado um dos mais severamente afetados pelas alterações climáticas globais, enfrentando ciclicamente cheias e ciclones tropicais, mas também períodos prolongados de seca.
Essas tragédias afetam de forma acentuada a população pobre. “As catástrofes naturais encontram um terreno muito fácil também por causa da fragilidade das construções. Um dos últimos ciclones que passou – o Jude, em março deste ano – não foi muito violento, mas as palhotas onde as pessoas vivem são tão precárias, que ficaram destruídas”, recordou o arcebispo. “Se as construções fossem mais resilientes, isso não aconteceria. A vulnerabilidade perante esses fenómenos naturais é também por causa da fragilidade das próprias infraestruturas que se tem no país.”
Missionários junto do povo
A acompanhar as vivências do povo moçambicano estão os Missionários da Consolata, há já 100 anos. A congregação chegou a este país africano a 30 de outubro de 1925. A guerra colonial, entre 1964 e 1974, foi uma fase dura enfrentada pelos missionários. Mais tarde, a guerra civil – que opôs o governo da Frelimo e as forças da Renamo entre 1977 e 1992 – voltou a ser um período doloroso. Apesar do terror da guerra, que chegou a matar missionários, estes decidiram manter-se no país.
Com a assinatura do Acordo Geral de Paz em outubro de 1992 entrou-se numa nova fase da história, com a Igreja Católica a criar espaços dedicados à evangelização, educação e cuidado dos mais frágeis. Foi no final de 1998 que aconteceu a ordenação sacerdotal de Inácio Saúre, o primeiro padre da Consolata do pós-independência. “O nosso trabalho é estar com estas pessoas. O que temos procurado fazer é estar presentes em todos esses contextos. Trabalhamos no âmbito da promoção humana, incluindo da mulher, e no encorajamento das escolas comunitárias, por exemplo.”
Dramas humanos identificados em Fátima
A última grande peregrinação do ano a Fátima – a de outubro – foi presidida por Claudio Dalla Zuanna, arcebispo da Beira, em Moçambique. Na conferência de imprensa de apresentação da peregrinação, no dia 12, na Cova da Iria, o arcebispo deu conta de uma Igreja que está a crescer.
“Venho aqui como peregrino, trazendo aqueles que são os anseios, sobretudo da minha diocese da Beira, mas também de todo o Moçambique. Anseios que são de uma Igreja que está a crescer e que está a assistir, nestes últimos anos, a um aumento de vocações consagradas e sacerdotais”, referiu. “Estamos neste momento com o desafio de construir um segundo seminário teológico, para acolher estas vocações, ainda insuficientes para o número e a extensão de Moçambique”. E o arcebispo da Beira acrescenta: “Trago também anseios que são dos cidadãos do país: o maior é o da paz, da tranquilidade e do desenvolvimento. O Papa Leão XIV, na exortação apostólica ‘Dilexi te’, diz que a falta de equidade é a raiz dos males sociais. Em Moçambique há falta de equidade.”
O conflito no Norte de Moçambique está também entre as preocupações de Claudio Dalla Zuanna. “Em Cabo Delgado, acho que podemos falar, de alguma forma, de uma guerra civil, porque é dentro de Moçambique e são moçambicanos que atacam outros moçambicanos, provavelmente movidos por interesses que não são só vindos de dentro do país”, alertou, referindo também a exploração de recursos em outros países africanos, como o Congo ou Angola. “Os nossos recursos são muitas vezes utilizados fora dos nossos países, em benefício de outros. Por isso, é importante falar dos vários conflitos, mas sem os ver como realidades isoladas. Há algo que liga todos esses dramas humanos”, alertou o arcebispo.
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