10 Novembro 2025
O pastor evangélico Franklin Graham atrai quase 70.000 pessoas a Buenos Aires após ser recebido por Milei.
A reportagem é de Mar Centenera, publicada por El País, 09-11-2025.
Se ao menos eu pudesse
vivendo entre os dois.
Primeiro, amarei o mundo.
E então eu amarei a Deus.
O turbilhão de espiritualidade do novo álbum da cantora espanhola Rosalía cruzou fronteiras e oceanos nesta sexta-feira, dia de seu lançamento. Sua canção de amor ao divino e evocação de santos e imagens religiosas — da mesma artista que três anos antes experimentou com ritmos latinos e letras sobre sexo e fama — chegou aos ouvidos dos fãs, mas também daqueles que preveem o retorno de um movimento conservador global. Naquela mesma sexta-feira, em Buenos Aires, a 10.500 quilômetros de Barcelona, mais de 30.000 evangélicos se reuniram em um estádio de futebol na capital argentina para ouvir a palavra do pregador americano Franklin Graham, um dos favoritos de Donald Trump. Um número ainda maior compareceu no sábado.
Graham é o herdeiro da poderosa dinastia evangélica fundada por seu pai, Billy Graham. Assim como ele, mantém-se próximo ao poder e é também a estrela de uma turnê mundial de "avivamento cristão" que o levou a dezenas de países. O Festival da Esperança segue o mesmo formato todas as vezes. Começa com apresentações musicais evangélicas que culminam gradualmente no evento principal: o sermão do pastor e sua subsequente absolvição dos pecados.
“As pessoas estão buscando. As pessoas estão procurando um propósito, um significado para suas vidas. Mas algo está faltando. Dentro de nós existe um vazio que só Deus pode preencher. E eu lhes digo: Deus tem um plano para a sua vida”, proclamou Graham do púlpito erguido no palco do Estádio Vélez Sarsfield. “Mas nós temos um problema. E o problema é o pecado. O pecado impede Deus de se revelar e de mostrar a você o Seu plano. O pecado é uma barreira entre você e Deus”, continuou ele diante de uma plateia repleta de adolescentes e famílias com crianças.
Entre a longa lista de pecados citados por Graham, a homossexualidade se destacou — “Deus quer que você pratique o sexo, mas ele deve ser praticado dentro de um relacionamento conjugal entre um homem e uma mulher. Não entre dois homens. Não entre duas mulheres” — e o aborto — “o aborto aos olhos de Deus é assassinato”.
Seu discurso reacionário entra em conflito com as leis vigentes na Argentina, mas também revela a batalha cultural em curso, defendida pelo governo de extrema-direita de Javier Milei, que encontra cada vez mais eco no país.
O sermão de Graham foi interrompido diversas vezes por aplausos. Os aplausos mais calorosos vieram quando ele mencionou seu encontro com Milei na terça-feira anterior. O pastor americano relatou no festival que Milei lhe falou sobre Moisés, o profeta do Antigo Testamento com quem ele gosta de se identificar, e que lhe deu uma Bíblia, o mesmo presente que os participantes receberam ao saírem do evento.
Na véspera, em 31 de outubro, o presidente argentino recebeu representantes da Aliança das Igrejas Evangélicas da República Argentina (ACIERA) na Casa Rosada. O encontro foi seguido por um culto de oração sem precedentes. Nunca antes uma cerimônia evangélica havia sido realizada na sede do Poder Executivo argentino. Tampouco um presidente deste país latino-americano jamais havia declarado que Deus lhe apareceu para revelar que tinha uma missão, nem jamais havia invocado “as forças do céu” para garantir a vitória na transformação que está promovendo na Argentina com uma motosserra.
Cerca de 15% dos argentinos se identificam como evangélicos, um número abaixo da média latino-americana de aproximadamente 20%. Mesmo assim, tanto o número de fiéis dessa religião quanto o poder de seus líderes estão em ascensão, embora ainda longe da influência que exercem há décadas em países como os Estados Unidos e o Brasil. “Até agora, a presença evangélica tem sido principalmente territorial, sem conseguir se inserir na política”, afirma o sociólogo Ariel Goldstein, autor do livro Poder Evangélico.
O presidente argentino começou a cortejar o voto cristão durante sua campanha de 2023 como estratégia para alcançar a classe trabalhadora, mas intensificou seus esforços nesse eleitorado este ano. Nas eleições legislativas de 26 de outubro, seis candidatos evangélicos foram eleitos pelo partido de Milei, La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), e assumirão seus cargos em dezembro. Entre eles está a pastora Nadia Márquez, futura senadora, que afirma que o aborto "é um dos maiores genocídios da história" e defende a revogação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, aprovada na Argentina há cinco anos.
Para Goldstein, a principal força do evangelicalismo é "sua capacidade de construir relacionamentos em termos de emoções e pertencimento, e na Argentina isso está avançando em um contexto de desintegração social que se acelerou desde a pandemia". Este sociólogo destaca que nem todas as igrejas evangélicas defendem posições de extrema direita como a de Graham. Em 2023, algumas delas apoiaram o candidato peronista Sergio Massa.
Ainda assim, ele acredita que muitos pastores pentecostais se tornaram intermediários entre a direita argentina e a classe trabalhadora. “O governo de Milei está sofrendo com a queda de popularidade, embora tenha conseguido manter uma parcela significativa dos votos. Uma maneira de ampliar sua base social para incluir os setores da classe trabalhadora e da classe média é por meio do evangelicalismo”, afirma Goldstein. Ele cita Trump e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro como exemplos. A enorme ovação dos evangélicos argentinos ao ouvirem o nome de Milei demonstra o sucesso dessa estratégia.
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