08 Novembro 2025
O aniversário de um ano da reeleição de Donald Trump e seu retorno ao poder levanta uma questão: os Estados Unidos estão caminhando para o fascismo ou já chegaram lá?
A reportagem é de Chris Herlinger, publicada por National Catholic Reporter, 07-11-2025.
O fato de essa pergunta ser feita com tanta naturalidade e frequência é um lembrete alarmante da natureza perigosa do momento atual. No mínimo, estamos vivendo em uma época autoritária; não apenas nos Estados Unidos, mas globalmente. Talvez, portanto, este seja o momento certo para perguntarmos quais livros e filmes podem oferecer contexto e história, instrução e até mesmo esperança, neste momento difícil.
Felizmente, existem muitas.
Um bom ponto de partida é o livro "O apagamento da história: como os fascistas reescrevem o passado para controlar o futuro", do filósofo Jason Stanley. Embora publicado durante o ciclo eleitoral de 2024, o estudo de Stanley se baseia no primeiro mandato de Trump e suas consequências para alertar sobre o crescente fascismo nos Estados Unidos.
O livro começa com uma pergunta: por que a história muitas vezes se opõe aos objetivos autoritários? Stanley argumenta que isso ocorre porque a história "oferece múltiplas perspectivas sobre o passado". Em contrapartida, ele afirma que "o grande rival do autoritarismo, a democracia, exige o reconhecimento de uma realidade compartilhada que consiste em múltiplas perspectivas". A exposição a essas perspectivas, diz Stanley, significa que "os cidadãos aprendem a se enxergar como contribuintes iguais para uma narrativa nacional".
A narrativa americana é complexa e frequentemente perturbadora, argumenta Stanley. Embora reconheça os paralelos históricos entre a atualidade e a Alemanha da década de 1930, Stanley afirma repetidamente que as raízes do fascismo americano podem ser encontradas em nosso legado problemático de racismo. (Um fato frequentemente ignorado é que as leis de segregação racial americanas serviram de modelo para a legislação racial nazista.)
"O que os Estados Unidos estão vivenciando hoje", argumenta Stanley, "é um retorno às práticas de segregação racial de Jim Crow para intimidar cidadãos e eleitores negros e impedi-los de participar da vida pública. Ao contrário do Terceiro Reich, o regime de Jim Crow nunca foi derrotado e desmantelado de forma contundente."
Livro "O apagamento da história: como os fascistas reescrevem o passado para controlar o futuro", de Jason Stanley
Se o racismo e a supremacia branca ajudaram a criar as bases do fascismo americano, Stanley defende um contrapeso baseado na educação que promova as virtudes de uma sociedade multicultural. Inspirando-se na obra de seu falecido pai, o sociólogo Manfred Stanley, ele propõe uma visão de “compaixão cívica” como forma de resistir à “deriva para a crueldade”.
Essa “deriva para a crueldade” é sustentada, segundo Stanley, por uma educação fascista cujos temas incluem a grandeza nacional (e, por extensão, o excepcionalismo nacional); a pureza nacional (geralmente de uma raça ou religião); a inocência nacional (a recusa em reconhecer as falhas do país); papéis de gênero rígidos (que negam agência às mulheres e às pessoas LGBTQ); e a demonização dos que estão à esquerda (vistos como “inimigos internos”).
“A educação fascista é uma educação para a mobilização”, escreve Stanley. “Assim como a propaganda fascista, ela prepara os cidadãos para a violência em defesa de um líder, de um grupo étnico ou de uma religião.”
Stanley é um dos vários acadêmicos americanos que recentemente deixaram a Universidade Yale para lecionar em Toronto. Ele afirmou ter saído por frustração e preocupação com o clima político atual nos EUA. Em entrevista ao New York Times, declarou: “Você sabe que está vivendo em uma sociedade fascista quando passa o tempo todo pensando nos motivos pelos quais ainda está seguro.”
Livro "Sobre a Liberdade " de Timothy Snyder
Outro que deixou Yale foi o historiador e comentarista Timothy Snyder, autor de On Freedom (“Sobre a liberdade”), que também aborda temas semelhantes. Snyder argumenta que as tiranias tendem a normalizar a ansiedade e procuram aplacá-la afirmando proteger os cidadãos do “Outro” ameaçador.
Essas reflexões de Stanley e Snyder ecoam um tempo e lugar perigosos: a Europa do século XX.
Livro "As Origens do Totalitarismo" de Hannah Arendt
Um dos melhores guias para refletir sobre o período em que regimes fascistas e autoritários brutalizaram a Europa é o clássico The Origins of Totalitarianism (“As Origens do Totalitarismo”), da filósofa Hannah Arendt, publicado em 1951 e agora relançado em edição ampliada pela Library of America.
Embora não seja uma leitura fácil, as reflexões de Arendt recompensam o esforço. Refugiada judia que imigrou para os Estados Unidos em 1941, Arendt oferece ideias proféticas aplicáveis à realidade contemporânea. Ela fala comoventemente do papel da solidão social na atração de pessoas para movimentos totalitários e do poder desmedido do líder político. Nesse mundo, escreve, “a política é um jogo de engano”, e o primeiro mandamento é que “o líder está sempre certo”.
Arendt escreve comoventemente, por exemplo, sobre o papel que a solidão social desempenha na atração de pessoas para movimentos totalitários, e de forma reveladora sobre o papel desproporcional de um líder na política totalitária. Nesse mundo, escreve ela, "a política é um jogo de trapaça" e o primeiro mandamento é que o líder está sempre certo. "A principal qualificação de um líder de massas", argumenta ela, "tornou-se a infalibilidade infinita; ele nunca pode admitir um erro."
O legado desse pensamento fundamenta diversos novos documentários que exploram temas totalitários. Em "Riefenstahl", da Apple TV+, as mentiras, evasivas e racionalizações da famosa cineasta alemã Leni Riefenstahl e sua relação com Adolf Hitler são expostas em detalhes.
Não é surpreendente constatar que, mesmo em idade avançada, a diretora de obras pró-fascistas como "O Triunfo da Vontade" tenha racionalizado sua relação com seus supervisores nazistas. Tampouco é surpreendente que o novo filme revele simpatias nazistas muito mais profundas por parte de Riefenstahl do que ela admitiu durante sua longa vida. (Riefenstahl morreu em 2003, aos 101 anos.)
O documentário, dirigido por Andrés Veiel, está repleto de momentos bizarros, como a retomada da amizade de Riefenstahl com Albert Speer, ministro do armamento e da produção bélica do Terceiro Reich. Speer, condenado nos julgamentos de Nuremberg em 1946, foi libertado da prisão em 1966 após cumprir uma pena de 20 anos por crimes de guerra.
Em uma carta, Riefenstahl se dirige carinhosamente a ela, chamando-a de "Querido Albert", e valoriza o que parece ser a renovação de um relacionamento amoroso. Nesse e em outros vislumbres de uma vida peculiar, os efeitos corrosivos de ter servido a um regime brutal parecem estar além da capacidade moral de Riefenstahl.
Um dos melhores observadores da época de meados do século foi, sem dúvida, o romancista, ensaísta e jornalista inglês George Orwell, tema do novo documentário "Orwell: 2+2=5", dirigido por Raoul Peck e também disponível na Apple TV. (O título deriva da descrição que Orwell faz em seu romance 1984 do "Grande Irmão" (Big Brother) distorcendo a verdade objetiva para atender aos propósitos de seu regime.)
O documentário, uma obra densa e repleta de imagens, deixa claro que Orwell, um socialista democrático e antiestalinista, legou ao mundo reflexões profundas sobre o poder político e o totalitarismo. Essas reflexões são extremamente relevantes hoje, em um mundo de crescente poder autoritário de direita e subserviência da mídia.
Talvez não haja melhor exemplo dessa dinâmica do que a Rússia, que Stanley chama de "a nação mais claramente fascista da atualidade".
No novo documentário "Meus Amigos Indesejáveis: Parte I — Último Ar em Moscou", alguém declara que o presidente russo Vladimir Putin transformou o país em uma Coreia do Norte russificada. É uma observação perspicaz em um filme que examina como jornalistas corajosos tentam — ou tentaram — contornar o regime autoritário na Rússia contemporânea.
O documentário de cinco horas e meia, dividido em duas partes, teve recentemente uma longa temporada nos cinemas de Nova York e ainda não está disponível em plataformas de streaming. Mas merece estar.
Dirigido por Julia Loktev, uma americana nascida na Rússia, o filme acompanha o trabalho e a trajetória de um grupo de jornalistas, em sua maioria mulheres jovens, que trabalham para o canal de televisão independente TV Rain, o qual fazia reportagens críticas ao governo russo, mas foi fechado pelas autoridades após a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022. (O canal está agora sediado no exílio, na Holanda.)
Filmado com um iPhone no estilo clássico do "cinema verdade", o documentário tira seu título do fato de os jornalistas terem sido rotulados como "indesejáveis" (bem como "agentes estrangeiros") pelo governo russo, uma acusação recebida com humor negro pelos jornalistas, às vezes até mesmo no ar.
Alguns dos episódios mais comoventes acontecem nas duas últimas horas do filme, que retratam a vida durante os primeiros dias da invasão russa da Ucrânia. Como muitos ucranianos que conheci em reportagens desde 2022, os jornalistas russos, antes da invasão, rejeitavam a ideia de que ela realmente aconteceria. Alimentando uma esperança frágil, e talvez em negação, eles acreditavam que, de alguma forma, não ocorreria.
Mas quando isso aconteceu, os russos sabiam que a mão pesada do regime logo estaria sobre eles – contudo, esse conhecimento não os impediu de fazer a cobertura jornalística. Os jornalistas se esforçaram ao máximo para relatar a invasão com veracidade; uma tarefa nada fácil, visto que as mentiras televisionadas de autoridades do governo russo são exibidas de forma impressionante no filme. (A "operação militar especial", como foi chamada, foi uma resposta à agressão ucraniana, disseram eles. Em uma ironia notável, digna de Orwell, uma das justificativas públicas de Putin para a invasão foi o combate ao que ele chamou de fascismo ucraniano.)
A dedicação das jornalistas – para não mencionar a solidariedade entre elas e com outros russos – é extraordinária, mesmo diante de um provável exílio. Num momento revelador, elas fazem uma vigília numa das prisões onde manifestantes contra a guerra estão detidos. Aconchegadas umas às outras no meio de uma fria noite de inverno russo, as jovens encontram um moscovita solidário que lhes oferece o uso do seu banheiro e diz: "Este sentimento de impotência permeia tudo".
Em outro momento, a mãe de um dos jornalistas observa laconicamente: "De alguma forma, eu não pensei que terminaria assim."
Quantos americanos disseram coisas semelhantes no último ano durante o "Trump Redux"? À medida que o mundo sofre com a ascensão do autoritarismo e do fascismo, sentimentos de impotência e incredulidade perplexa são muito comuns. Talvez ler, assistir, pensar e refletir sobre esses temas possa inspirar ações, levando a um futuro melhor, mais esperançoso e mais generoso.
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