A violência estatal não é fortuita, ocasional e indeterminada: ela é seletivamente direcionada, constituindo um “nós” (cidadãos de bem) e um “eles” (inimigos internos). Mas quem são esses “eles”? A própria realidade brasileira nos lança ao rosto a dura realidade da qual não podemos desviar o olhar: são os corpos negros, pobres, periféricos e indígenas. Assim, discutir o nexo entre os fascismos e o sistema de justiça criminal brasileiro é imperativo em um tempo marcado pelo recrudescimento de novos autoritarismos, com um espelhamento mundial sinistro, como no caso norte-americano, argumenta a Profa. Dra. Márcia Rosane Junges. Para a pesquisadora, a reflexão de Felipe Lazzari da Silveira "nos convida a uma vigilância mais sofisticada: o maior perigo não está no que vem de fora para destruir nossa democracia, mas no que pode ser acionado desde dentro de suas próprias estruturas, transformando instrumentos de justiça em ferramentas de opressão e a normalidade democrática em um estado de exceção permanentemente administrado”.
Márcia Rosane Junges é graduada em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e licenciada em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. É especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova (UNIPD), na Itália, onde realizou cotutela com dupla titulação. É professora permanente do PPG Filosofia da Unisinos e do curso de graduação em Filosofia e uma das jornalistas da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Coordena o grupo de estudos "A Filosofia Política Pensada pelas Mulheres: Vozes, Ressonâncias e Insurgências", ligado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento no PPG Filosofia "Os Dilemas das Democracias Ocidentais: Espetacularização da Política e Recrudescimento do Neofascismo – Diálogos a Partir de Nietzsche e Agamben".
Dentre suas publicações, destacamos: A transvaloração dos valores em Nietzsche e a profanação em Agamben (Cadernos de Filosofia Política da USP, Especial II Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, nº 28, 2016, p. 97-108), bem como os capítulos de livros Potência-do-não e potência destituinte: uma política como forma-de-vida (ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro (org.), Política, direito e economia no século XXI, Rio de Janeiro: Via Verita, 2019, v. 1, p. 203-214) e A potência em Nietzsche e Agamben: aberturas da política e críticas à democracia liberal (VIESENTEINER, Jorge L.; MÜLLER, Maria Cristina; NETO, Rodrigo Ribeiro Alves (org.), Filosofia política contemporânea, São Paulo: ANPOF, 2019, v. 1, p. 68-75).
Quarta-feira, dia 8 de outubro, das 10h às 11h30, o Prof. Dr. Felipe Lazzari da Silveira, docente e pesquisador na Universidade Federal de Pelotas – UFPel, trará para o centro do debate uma tese provocadora e fundamental para os tempos atuais: o fascismo deve ser compreendido não como uma anomalia ou um "inimigo externo" à democracia, mas como uma "potencialidade interna" do próprio Estado liberal capitalista. Sua conferência, "Fascismos e o sistema de justiça criminal brasileiro", integra a programação do XXII Simpósio Internacional IHU: “A extrema-direita e os novos autoritarismos: ameaças à democracia liberal” e será transmitida ao vivo em ihu.unisinos.br.
A apresentação promove um diálogo direto com a entrevista concedida por Lazzari ao IHU em 14-04-25, na qual o pesquisador desenvolve a ideia de que "o fascismo é um traço constitutivo das democracias liberais capitalistas". Se por um lado a forma-Estado liberal é, por natureza, cindida e contraditória, por outro lado opera a partir de um duplo movimento: proclama a igualdade formal e os direitos universais e, paradoxalmente, atua para manter as estruturas materiais de desigualdade.
“As condições para a produção do fascismo em grande escala estão presentes. Não por acaso estamos presenciando o recrudescimento dos signos fascistas no plano macropolítico. Contudo, a atual conjuntura possui peculiaridades que tornam tudo diferente. As subjetividades e as racionalidades do capitalismo neoliberal diferem sobremaneira das que garantiram o desenvolvimento do capitalismo industrial. Logo, é arriscado tentar fazer aproximações entre a ascensão fascista do presente e o fascismo italiano cogitando simplesmente uma atualização ideológica ou estética. O risco de incorrer em anacronismo ou de descurar de elementos cruciais do fenômeno na atualidade é muito grande”, adverte.
É nessa fenda que a análise de Lazzari ganha contornos fundamentais para pensarmos criticamente o sistema de justiça criminal, especialmente ao examinar o caso brasileiro. Segundo o professor, este sistema é um dos aparelhos privilegiados onde a potencialidade fascista do Estado se atualiza. Ele não é um mecanismo neutro, mas um operador ativo de distinção e hierarquização.
A partir de sua reflexão, se compreende que a violência estatal é seletivamente direcionada, constituindo um “nós” (cidadãos de bem) e um “eles” (inimigos internos). Lazzari é enfático ao descrever quem compõe esse "eles": os corpos matáveis, torturáveis e extermináveis são, em nossa formação social, majoritariamente os corpos negros, pobres, periféricos e indígenas.
Dessa forma, o sistema de justiça criminal não é um pilar da democracia que ocasionalmente falha, mas uma estrutura que funciona conforme seu design: o Estado de Direito não é uma fachada, ele é a forma política do Estado capitalista, e, portanto, ele é, ele mesmo, o responsável pela gestão das desigualdades e dos privilégios de classe, raça e gênero.
Em contextos de crise profunda – sejam econômicas, políticas ou sociais – a lógica seletiva e excludente inerente ao sistema de justiça criminal não apenas se intensifica, mas se reorganiza para dar forma ao "momento fascista". Este não é um regime político novo que surge do vácuo, mas sim um ponto de inflexão qualitativo dentro da própria ordem democrático-liberal, onde suas contradições internas se exacerbam a um grau crítico. Esse momento é a convergência explosiva de três processos inter-relacionados.
O primeiro deles é a crise de hegemonia (crise política e de autoridade), que representa o colapso do consenso social. Seguindo a tradição gramsciana, ocorre quando as classes dominantes falham em exercer sua liderança intelectual e moral sobre o conjunto da sociedade, tornando-se incapazes de dirigir por meio de persuasão e valores compartilhados. Paralelamente, as classes subalternas (trabalhadores, movimentos sociais) encontram-se fragmentadas, cooptadas ou reprimidas, perdendo a capacidade coletiva de lutar eficazmente por seus direitos e impor uma contra-hegemonia. O resultado é um impasse político: ninguém consegue liderar de forma legítima, e ninguém consegue contestar de forma eficaz. O tecido social da confiança e do diálogo se rompe.
Em segundo lugar, ocorre um aprofundamento da desigualdade (crise social e material), que não significa mera estagnação econômica, mas uma acumulação por espoliação acelerada. Há um aumento brutal da exploração do trabalho, combinado com um desmonte sistemático de políticas sociais e direitos historicamente conquistados (como saúde, educação e previdência). O abismo entre uma pequena elite e a massa da população se alarga vertiginosamente, gerando um terreno fértil para o ressentimento, a insegurança existencial e a luta fratricida por recursos escassos. A vida, para milhões, se torna precária no sentido mais literal do termo.
Por último, há um fortalecimento do braço coercitivo do Estado (crise da mediação) que se constitui diante da impossibilidade de mediar os conflitos sociais por meio de concessões e reformas – pois isso exigiria uma redistribuição de riqueza e poder que a elite não está disposta a fazer – o Estado abandona sua face "integrativa" (o Estado de bem-estar social, mesmo em sua forma limitada) e recorre integralmente à sua face coercitiva e autoritária. O investimento migra da escola e do hospital para a prisão e a tropa de choque. A lei, que no plano ideal deveria garantir direitos, é instrumentalizada como letra morta para os privilegiados e arma letal para os indesejados.
Neste cenário de tempestade perfeita, o sistema de justiça criminal sofre uma metamorfose decisiva. De instrumento de controle seletivo e rotineiro, ele se transforma no mecanismo central do "momento fascista". Sua função deixa de ser apenas a gestão marginalizada de "corpos indesejados" e passa a ser a de um instrumento aberto de perseguição política e extermínio simbólico e material.
É esse aparato que, de forma organizada, canaliza o ódio e a frustração social gerados pela crise de hegemonia e pelo aprofundamento das desigualdades. Ele direciona o mal-estar social para baixo e para os lados, nunca para cima. Cria e consolida bodes expiatórios funcionais: os "inimigos internalizados". Estes podem ser racializados (negros, indígenas, imigrantes), convertendo o racismo estrutural em política de Estado explícita; ou políticos (ativistas, intelectuais críticos, "comunistas"), onde a dissidência é criminalizada e equiparada a uma ameaça à segurança nacional. Ao mesmo tempo, são produzidos medos, inseguranças e ódio contra os indivíduos estereotipados como inimigos, afetos negativos que, em conexão com outros fatores, propiciam a aceitação da violência policial e das demais instituições do sistema de justiça criminal.
Dessa forma, o sistema de justiça criminal não é um espectador do momento fascista, mas um de seus arquitetos operativos. Através de suas operações policiais, sentenças judiciais e lógicas penais, ele materializa no cotidiano a divisão entre os cidadãos que devem ser protegidos pelo Estado e os "outros" que devem ser eliminados por ele, realizando, na prática, a máxima fascista de que "o direito é a vontade do mais forte".
A conexão estabelecida por Felipe Lazzari entre sua análise estrutural e o fenômeno dos fascismos e do sistema de justiça criminal brasileiro representa uma contribuição fundamental para desmontar leituras simplificadas sobre a crise democrática contemporânea. Sua reflexão opera um deslocamento crucial: em vez de entender o autoritarismo como uma patologia externa que infecta um corpo saudável, demonstra como ele pode emergir como metástase de tensões constitutivas do próprio Estado liberal.
O perigo real reside exatamente na dificuldade de reconhecer a ameaça em sua forma embrionária. Quando o autoritarismo é compreendido apenas como uma ruptura abrupta (um golpe clássico) ou como uma importação estrangeira, subestima-se sua capacidade de germinar nas brechas da normalidade democrática. A potencialidade fascista não é um vírus que chega de fora, mas uma semente plantada na própria contradição entre a universalidade prometida pela lei e a particularidade excludente de sua aplicação prática. O sistema não precisa ser demolido para dar lugar ao autoritarismo: basta que seus mecanismos de exclusão sejam intensificados e direcionados para novos alvos.
Ao colocar o sistema de justiça criminal na "linha de frente" dessa transformação, Lazzari identifica o local preciso onde a abstração da potencialidade fascista se converte em violência concreta. Este sistema é a interface privilegiada entre o Estado e os corpos indesejáveis. É através dele que a linguagem técnica do direito pode ser mobilizada para legitimar a exceção, transformando perseguição política em "combate ao crime" e dissidência em "subversão da ordem". A violência física é convertida em violência legal, onde o arbítrio policial e a seletividade judicial vestem o manto da legalidade. A produção de inimigos se torna um procedimento burocrático, com processos, sentenças e classificações que institucionalizam a exclusão.
Os novos autoritarismos não representam, portanto, um regresso ao século XX, mas sim formas contemporâneas de ativação dessa potencialidade latente. Eles inovam ao combinar uma retórica de lei e ordem com um aparato midiático de criminalização de movimentos sociais. Além disso, usam ferramentas de vigilância digital e controle de dados como extensões do poder penal, empregando uma gramática de legitimação que mistura linguagem jurídica com narrativas morais e de segurança nacional.
Esta compreensão transforma radicalmente nossa percepção do que significa defender a democracia. Não se trata apenas de proteger instituições formais contra ataques externos, mas de desativar os mecanismos internos que podem convertê-las em instrumentos de opressão. A verdadeira resistência ao autoritarismo exige, portanto, desnaturalizar a violência institucional do sistema de justiça criminal, expor como o direito pode ser instrumentalizado para fins autoritários e reconhecer que a justiça seletiva é o cavalo de Troia do autoritarismo nas democracias contemporâneas.
Dessa forma, a reflexão de Lazzari nos convida a uma vigilância mais sofisticada: o maior perigo não está no que vem de fora para destruir nossa democracia, mas no que pode ser acionado desde dentro de suas próprias estruturas, transformando instrumentos de justiça em ferramentas de opressão e a normalidade democrática em um estado de exceção permanentemente administrado.
A transmissão aberta do evento pelo IHU visa fomentar esse debate crucial, oferecendo ao público uma análise fundamentada que escapa das explicações superficiais e aponta para as raízes profundas do autoritarismo na sociedade brasileira.
A programação completa do XXII Simpósio Internacional IHU: “A extrema-direita e os novos autoritarismos: ameaças à democracia liberal” pode ser conferida aqui. As inscrições são gratuitas e abertas a interessados de todas as áreas do conhecimento. Estão abertas até 15 de outubro as submissões para apresentar trabalhos acadêmicos dentro da temática do evento, segundo linhas específicas que podem ser conferidas na convocatória completa.
Fascismos e o sistema de justiça criminal brasileiro
📍 Prof. Dr. Felipe Lazzari da Silveira – UFPEL
⏰ 08/10 | 10h às 11h30min
🎥Transmissão ao vivo
YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ft2FnGJhnEw
Facebook: https://www.facebook.com/InstitutoHumanitasUnisinos/events
Página inicial do IHU: https://www.ihu.unisinos.br/
📌 A atividade é gratuita. Será fornecido certificado a quem se inscrever e, no dia do evento, assinar a presença por meio do formulário disponibilizado durante a transmissão.
📌O evento ficará gravado no YouTube e Facebook e pode ser acessado a qualquer momento.
Inscrições e mais informações: https://www.ihu.unisinos.br/evento/novos-autoritarismos
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