08 Novembro 2025
Quando o Estado elege a pobreza como inimigo e a execução como política, a Constituição Cidadã é reduzida a um mero epitáfio para os que morrem em sua suposta proteção.
O artigo é de Carlos Marina Frederico, doutor em Direito Penal pela PUC-SP, publicado por A Terra é redonda, 05-11-2025.
Eis o artigo.
O presente texto se propõe a demonstrar a ilegalidade no argumento do governador Cláudio Castro que, ao ser questionado a respeito da megaoperação vitimizadora de, até o momento, cento e vinte e um cidadãos, justifica-a com o seguinte argumento: eram todos suspeitos, a operação foi um sucesso.
Esse argumento não contraria apenas a ética que permeia uma sociedade pretensamente civilizada, mas vai de encontro a institutos presentes em nossa Constituição Federal, pactos de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e leis infraconstitucionais, tal e como o Código Penal e de Processo Penal.
Veja, caro leitor, não é uma questão de opinião, de forma de ver o mundo, não se trata de escolha individual e, sim, de escolha civilizatória de nação. O que ocorreu foi ilegal, inconstitucional! Veja-se que no Preâmbulo da Carta Cidadã de 1988, o Poder Constituinte Originário deixou claro o que o Brasil desejava naquela imediata pós-ditadura: que a sociedade brasileira perseguisse os caminhos do Estado democrático de direito, ressaltando a solução pacífica dos conflitos. É visível que não conseguimos!
Mas, essas normas servem como norte no processo de civilização coletivo e individual. “Como a raiva é filha do medo e mãe da covardia” (Chico Buarque), em metrópoles que estão cada vez mais violentas, há um ímpeto selvagem em ansiar por exterminar, ou aplaudir o extermínio daqueles que são considerados inimigos do povo.
Reconhecer isso não é aval para liberação desse tipo de conduta ou fala. Ao contrário, é obrigação de que, enquanto sociedade e individualmente haja o exercício do pensamento racional para sufocar os impulsos bestiais. A Constituição de 1988 reflete exatamente isso: a escolha de uma sociedade recém-saída de uma ditadura civil-militar, por distanciar-se da truculência que leva a porões irrespiráveis, sufocantes e infectos. Naquele momento a sociedade fez a escolha por um Estado que prefere o cérebro ao fígado como conselheiro.
O que percebemos na cidade de São Sebastião foi o Estado agindo no extremo oposto à decisão do constituinte, voltando a força letal contra o titular da Constituição: o povo.
Mas vamos à fala do governador que, para justificar massacre, trocou a palavra vítima por suspeito.
Primeiramente é necessário esclarecer o que é ser suspeito à lente do Código de Processo Penal: é aquele que sequer foi investigado. Não há provas, indícios. Literalmente, recai sobre ele somente suspeita!
Mas ainda que se considerem todas as vítimas os mais ignóbeis dos criminosos, mesmo assim, de acordo com o Código de Processo Penal, instituído em plena ditadura do Estado Novo (1941), há um conjunto de procedimentos a serem percorridos. Primeiramente seriam investigadas. Havendo indícios de autoria e materialidade, processadas dentro do devido processo legal e, uma vez provado o crime, condenadas às penas previstas no Código Penal e na Constituição. Esta, por sua vez, em seu art. 5º traz a proibição de penas cruéis, desumanas, tortura, e pena de morte.
Aliás, é preciso frisar que a proibição desses tipos de pena representa o processo de civilização da sociedade, uma evolução. Agora, mesmo nos Estados onde há a possibilidade da pena de morte, esta pode ser considerada menos bárbara do que o ocorrido no Rio de Janeiro, pois a pena capital exige processo, defesa, prova, julgamento. O que o Rio de Janeiro vivenciou demostrou algo que retroage até mesmo à pena de morte, cuja proibição já é uma conquista consolidada em diversos Estados.
E aos que defendem a implantação da pena de morte no Brasil, é importante lembrar que há o princípio da vedação ao retrocesso impedindo a mitigação de direitos fundamentais por legislação infraconstitucional e até mesmo por emenda constitucional. Portanto, não! Não há a possiblidade de implantarmos a pena de morte até mesmo porque se trata de cláusula pétrea constitucional, isto é, imodificável, na inteligência do art. 60, § 4, inciso IV.
E essas conquistas, vedação às penas cruéis, à tortura, à pena de morte e o direito de ser julgado dentro do devido processo legal encontram seus fundamentos na dignidade da pessoa humana, que, mais do que princípio, é valor constitucional. É importante ressaltar a historicidade liberal desses direitos, não só advindos das revoluções burguesas, como encontram seu marco jurídico no chamado constitucionalismo liberal. São os direitos de primeira geração.
Todavia, em se tratando de justiça penal, todos esses direitos individuais e mesmo os direitos voltados à justiça social, podem ser considerados meras alegorias jurídicas se não enfrentarem algo que Raul Eugênio Zaffarone denomina seletividade penal, cujo termo já traz em si seu conceito, mas, em resumo, pode ser definido como a criminalização da população vulnerável. É, em curtos termos, a certeza de que esse massacre jamais ocorreria no Leblon.
Inclusive, o óbito dos policiais nessa operação também demonstra que há um único alvo: a pobreza! Nesse sentido explica Raul Eugênio Zaffarone: “Se considerarmos que os criminalizados, os vitimizados e os policializados (ou seja, todos aqueles que sofrem as consequências desta suposta guerra) são selecionados nos estratos sociais inferiores, cabe reconhecer que o exercício do poder estimula e reproduz antagonismos entre as pessoas desses estratos mais frágeis, induzidas, a rigor, a uma autodestruição” (Zaffarone, Direito Penal-I, p. 58).
E o combate à seletividade penal ultrapassa as esferas jurídica e adentra, por óbvio, em escolhas de cunho político e econômico, que o presente texto irá se eximir em aprofundar. Nas palavras de Frei Beto no texto, “Uma história da esperança”, que introduz a obra História Social dos Direitos Humanos, há uma contradição e distância entre o que idealizamos, teorizamos sobre direitos humanos e a hediondez da miséria, exclusão social que atinge a maioria do planeta.
É visível o elastecer dessa longevidade a cada escolha política por representantes de uma ideologia que não esconde a tranquilidade em afirmar nas entrelinhas que, se for pobre, prescinde o inquérito, o processo, a prova, a pena; pode matar!
Como último ponto, não se pode ignorar que a barbárie ocorrida no dia 28 de outubro de 2025 encontra vozes elogiosas dentro da sociedade civil, tal e como tantos outros crimes cometidos pelo Estado ao longo de nossa história. Pois, infelizmente, “existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia!… Meu Deus, Meus Deus, mas que bandeira é essa?”, perguntaria Castro Alves.
Que horror![1]
Nota
[1] Esse artigo traduz o posicionamento não apenas de seu autor, como também da equipe de advogados criminalistas da Assistência Judiciária Gratuita 22 de Agosto: Antônio Carlos Malheiros.
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