08 Novembro 2025
Fortalecer a presença de jovens de povos indígenas e comunidades tradicionais nos processos de governança do oceano é mais do que uma questão de representatividade, é uma condição para o futuro.
O artigo é de Rede Ressoa, Alice Pataxó, Bruna Canal e Katharina Grisotti, publicado por ((o))eco, 04-11-2025.
Rede Ressoa é um projeto colaborativo de divulgação científica e comunicação sobre o Oceano.
Alice Pataxó é uma jovem ativista e comunicadora indígena da Mata Atlântica,no sul da Bahia.
Bruna Canal é bióloga, especialista em design para sustentabilidade e regeneração, atua na gestão de projetos, advocacy e promoção de igualdade de gênero na conservação do oceano.
Katharina Grisotti é oceanógrafa, escritora e comunicadora de impacto.
Eis o artigo.
Números, metas e negociações. A COP30 será palco de discussões necessárias para o futuro climático do planeta. Mas existe algo essencial a ser lembrado para esse debate: a consciência de que a natureza não é apenas um objeto de cálculo – ela é uma linguagem. A crise que vivemos não é só ambiental, é uma crise de relação: fragmentamos os saberes, separamos a razão de imaginação, o ser humano da natureza.
A juventude oceânica – aqueles que promovem educação, conscientização e ação direta para a conservação marinha – vem atuando de maneira a dissolver essas fronteiras, trazendo novos códigos de linguagem e reimaginando um futuro mais diverso e interconectado. Mas para que essa nova narrativa se construa de fato, é preciso garantir que aqueles que têm mais raízes na natureza (povos tradicionais, comunidades costeiras, juventudes periféricas) possam falar e ser ouvidos. Afinal, se a natureza é linguagem, essas são as vozes que há séculos a traduzem.
Nesses territórios, onde nunca houve fronteiras, mas que foram violentamente limitados por cercas e picadas, se desenhou a linha da desigualdade, do esquecimento e da invasão desse Brasil. Lá, vivem os rostos de Povos Tradicionais – Indígenas, Ribeirinhos, Quilombolas, Ciganos e tantos outros, que lutam contra as mudanças climáticas, antes que essa se chamasse emergência, ou tivesse nome. Mais antiga que a invasão desta terra chamada Brasil, é o anúncio dos Povos Indígenas de todo o mundo que ouviram na floresta o declínio da humanidade se aproximando, alertando para os desastres que atingem sem distinção aldeias e cidades, tendo elas cercas ou não.
Um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (2023) provou que terras indígenas têm os menores índices de desmatamento e queimadas, mesmo vivendo fortes investidas de invasão da mineração ilegal e do agronegócio, um retrato da luta da conservação ambiental no país. Aldeias são o coração da floresta, o pulsar insistente pela sobrevivência, e essa afirmação fica aqui provada pelo tempo, já que resistem e vivem da existência dela. Povos tradicionais no Brasil se adaptaram e lutaram por protagonismo e voz por diferentes biomas ao longo dos anos, dizendo: A floresta e as águas são sujeitos de direito!
Saindo das florestas e alcançando o mar, na morada Pataxó e caiçara do Sul da Bahia, o oceano não é somente objeto de contemplação, é espaço de diálogo. Porém, essas comunidades raramente são colocadas no centro do debate. Meninas e jovens de territórios costeiros, por exemplo, vivem o oceano de forma direta, mas quase nunca têm espaço de liderança ou acesso pleno à informação. Com o oceano cada vez mais inacessível, as porteiras e muros (sejam elas físicas, políticas ou intelectuais) desequilibram a vida, inclusive vidas humanas que dele dependem. É preciso criar caminhos que formam e sustentam essas lideranças. Os preconceitos de gênero ainda enraizados, o avanço das tecnologias, a falta de políticas públicas voltadas à educação ambiental crítica e à valorização das culturas locais têm contribuído para um problema silencioso: a desconexão da juventude com a natureza e com seus próprios territórios. Sem estímulo e oportunidades de formação, a herança de cuidado e sabedoria das mulheres do mar corre o risco de se perder entre as gerações.
Fortalecer a presença de jovens dessas comunidades nos processos de governança do oceano é mais do que uma questão de representatividade, é uma condição para o futuro.
Reconhecer e valorizar suas experiências é ampliar a escuta e trazer para o futuro a pluralidade de perspectivas que sempre existiu, mas que muitas vezes foi silenciada. Se dissolver fronteiras entre saberes é essencial, também é necessário dissolver fronteiras sociais: abrir espaço para que essas vozes façam parte da construção coletiva do que chamamos de governança oceânica.
Projetos que unem educação, arte e pertencimento têm mostrado que esse vínculo pode ser restaurado. Iniciativas como a Escola do Mar, no litoral sul da Bahia, têm inspirado meninas a se reconhecerem como guardiãs de seus maretórios, integrando saberes tradicionais e conhecimento científico para fortalecer a liderança feminina na conservação marinha. Movimentos culturais como o ArteManha, em Caravelas, resgatam o diálogo entre gerações, estimulando o pensamento crítico e o sentimento de pertencimento por meio da arte.
Ainda assim, é preciso ir além: as mulheres representam quase metade das pesquisadoras do país, mas permanecem sub-representadas nos espaços de decisão e liderança científica. Essa desigualdade também se reflete nos projetos de conservação e na própria formulação de políticas ambientais, que raramente têm gênero e território como eixos estruturantes. Garantir recursos e políticas públicas que fomentem a formação de jovens mulheres é, portanto, investir na conservação marinha e fortalecer a regeneração social e ecológica, capaz de costurar de volta os laços entre pessoas e natureza. E é justamente nesse movimento de reconexão que a juventude oceânica se levanta, lembrando que o futuro do oceano não será decidido apenas nas mesas de negociação, mas também nas margens, nas escolas, nos maretórios e nos corpos que vivem o mar todos os dias.
A ameaça para nosso futuro não está apenas no silenciar do Maracá que dita o ritmo da dança em lua cheia na beira da praia, mas no avanço da destruição ambiental, no aquecimento das águas, no embranquecimento dos corais e na perda de manguezais para a reprodução das espécies. O ouvido humano tem audição ruim para o som da vida, e com as ondas que não param, muitos ainda não foram capazes de perceber que o oceano está ficando silencioso.
E as soluções? Essas estão justamente nos saberes tradicionais, na juventude apartada dos mares e florestas. Essas vozes precisam ser ouvidas. E agora teremos a oportunidade perfeita para isso: a COP é um dos poucos momentos em que o mundo inteiro se volta para discutir o futuro comum. Mesmo que ainda haja pouca representação no palco político e nos processos formais de negociação, a juventude marca presença de outras formas poderosas: ao se unir aos encontros da sociedade civil, nos espaços paralelos como a Green Zone, nas casas de diálogo e articulação – como a Casa Vozes do Oceano – e também na mídia, ampliando narrativas que muitas vezes ficam de fora das mesas de decisão, mas que engatilham sonhos e projetos de impacto. É nessa diversidade de espaços que a juventude assume papéis de liderança, trazendo urgência, criatividade e novas linguagens para que o futuro da governança global seja realmente plural e intergeracional.
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