01 Novembro 2025
“A transição para uma sociedade das vidas descartáveis é um processo em curso nas margens do capitalismo contemporâneo, e a tecnologia, em suas diversas formas, tende a intensificar essa mudança acelerada, particularmente por meio do experimento macrossocial da pandemia de Covid-19 e dos lockdowns globais. A adoção da robotização e da inteligência artificial por uma corporação como a Amazon trará mudanças significativas no mercado de trabalho devido ao efeito cascata que outras empresas globais adotarão em relação aos processos implementados pela gigante da tecnologia”. A reflexão é de Isaac Enríquez Pérez, em artigo publicado por Rebelión, 31-10-2025. A tradução é do Cepat.
Isaac Enríquez Pérez é professor da Universidade Autônoma de Zacatecas, escritor e autor do livro La gran reclusión y los vericuetos sociohistóricos del coronavirus. Miedo, dispositivos de poder, tergiversación semántica y escenarios prospectivos.
Eis o artigo.
Historicamente, as revoluções tecnológicas tendem a mudar as formas como o processo econômico e a sociedade como um todo estão organizados.
As suspeitas e as resistências sociais que isso suscita também são uma constante nos 250 anos de história do capitalismo. O ludismo foi defendido por artesãos ingleses no início do século XIX que, em seu descontentamento, priorizaram a destruição de máquinas, como as máquinas de fiar e os teares, que haviam sido introduzidos naquele país desde a Revolução Industrial. A mecanização trouxe consigo uma ampla modificação das condições de trabalho, com seus consequentes flagelos, como a queda dos salários e o desemprego.
Mais do que uma oposição direta à tecnologia em si, o descontentamento dos luditas derivava do uso que os capitalistas faziam desses avanços para empobrecer a classe trabalhadora. De maneira semelhante, 120 anos depois, no contexto da Grande Depressão, o filme Tempos Modernos – protagonizado por Charles Chaplin – ofereceu uma crítica à desumanização do trabalhador e sua redução a um mero apêndice, ambas impostas pela máquina e pela sua fusão com a linha de montagem e a produção em massa.
Embora as máquinas, e a tecnologia em geral, gerem descontentamento entre os trabalhadores afetados e deslocados, existe um consenso quanto ao aumento da produtividade, à simplificação das tarefas e ao conforto que proporcionam. No entanto, é importante notar que a tecnologia não é neutra; pelo contrário, beneficia principalmente aqueles com rendimentos elevados e – especialmente – aqueles que detêm o poder e a riqueza. A sua significativa contribuição para os processos de acumulação, concentração e centralização de capital permanece constante.
Estas reflexões são relevantes porque a Amazon anunciou recentemente (outubro de 2025) o seu interesse em privilegiar a inteligência artificial e a robótica nos seus processos de produção e vendas. Depois do Walmart, a Amazon é a segunda maior empregadora dos Estados Unidos, com 1,2 milhão de empregos ativos, número que triplicou desde 2018. Portanto, o anúncio do seu projeto de automação de processos é tudo, menos irrelevante. Torna-se ainda mais relevante quando a empresa de e-commerce planeja substituir 600 mil trabalhadores por robôs somente nos Estados Unidos até 2033.
O objetivo é dobrar a quantidade de mercadorias vendidas por essa gigante da tecnologia até esse mesmo ano. Até 2027, a Amazon espera evitar a criação de 160 mil empregos nos Estados Unidos, resultando em uma redução de 30 centavos de dólar no custo de cada item que a Amazon separa, embala e entrega ao consumidor final. A longo prazo, a empresa pretende automatizar 75% de seus processos com robôs, operar seus centros de distribuição sem trabalhadores e adotar integralmente a inteligência artificial.
O plano de negócios da Amazon inclui a fabricação de robôs para atingir esses objetivos. A Kiva – braço comercial da Amazon adquirido em 2012 por US$ 775 milhões – fabrica essas máquinas, que já estão operando e são especializadas em tarefas como movimentação, manuseio, separação, classificação, armazenamento, identificação e embalagem de produtos. O objetivo é criar armazéns de entrega rápida sem mão de obra humana.
Em seu armazém em Shreveport, Louisiana, a Amazon utiliza 1.000 robôs, o que resulta em uma redução de 25% da equipe em comparação com uma instalação não automatizada. Esse modelo empresarial está previsto para ser replicado em outros 40 armazéns até 2027. Para minimizar os impactos sociais e de imagem dessa iniciativa, os documentos executivos da Amazon omitem termos como inteligência artificial e robotização, substituindo-os por uma linguagem politicamente correta, como “tecnologia avançada”.
O aumento expressivo do comércio eletrônico e das vendas durante a pandemia de Covid-19 levou a um aumento substancial nas contratações. Consequentemente, a empresa está agora em transição não para o seu crescimento, mas para a melhoria da eficiência dos processos. Isso é facilitado pelo milhão de robôs que já trabalham nos armazéns da Amazon em todo o mundo. Assim, em poucos anos, a Amazon passará de uma grande criadora de empregos para uma destruidora de empregos através de operações automatizadas e eficiência robótica e generativa.
A transição para uma sociedade das vidas descartáveis é um processo em curso nas margens do capitalismo contemporâneo, e a tecnologia, em suas diversas formas, tende a intensificar essa mudança acelerada, particularmente por meio do experimento macrossocial da pandemia de Covid-19 e dos lockdowns globais. A adoção da robotização e da inteligência artificial por uma corporação como a Amazon trará mudanças significativas no mercado de trabalho devido ao efeito cascata que outras empresas globais adotarão em relação aos processos implementados pela gigante da tecnologia.
Corporações como Walmart, UPS, Microsoft, Ford Motor Company e outras do setor bancário, já estão seguindo ou considerando seguir o exemplo da Amazon. Atividades como as realizadas em call centers – que economizaram US$ 500 milhões para a Microsoft ao utilizar inteligência artificial –, departamentos operacionais no setor bancário/financeiro e outras tarefas de escritório podem ser aprimoradas por avanços tecnológicos à custa de empregos. Isso representa um amplo processo de destruição em massa de empregos e aumento da insegurança no trabalho, à medida que os trabalhadores continuam sendo contratados por hora.
As perguntas que surgem neste cenário promovido pela Amazon são as seguintes: se 600 mil empregos forem eliminados ou perdidos somente nos Estados Unidos, quem comprará os produtos? Quem contribuirá para o sistema previdenciário? Quem pagará o imposto de renda? Os robôs – eufemisticamente chamados de “cobots” ou “colaboradores” – darão conta de tudo isso? O que acontecerá com o trabalho como um direito humano fundamental e como um mecanismo de coesão social? Qual é o papel do Estado diante dessa exclusão social? Como construir um novo contrato social entre o Estado, o capital e a força de trabalho após o enorme impacto trabalhista da aceleração das mudanças tecnológicas? Qual será o futuro dos sistemas de seguridade social em todo o mundo?
Essas questões levantam dilemas políticos e éticos no contexto de um capitalismo rentista, especulativo, neoextrativista, automatizado e excludente da mão de obra, uma situação que vai muito além da Amazon e abrange todo o sistema econômico. Da mesma forma, envolvem a consideração de pensar formas de regulamentar o uso excludente da tecnologia e a reformulação das leis trabalhistas para garantir verdadeiramente o direito ao trabalho em condições dignas.
O problema é estrutural e, por sua vez, relaciona-se às novas formas de organização dos processos de produção e comercialização. Trata-se de um problema econômico global ligado à queda da taxa de natalidade em muitos países e aos apelos tecnocráticos por uma renda básica universal provida pelo Estado, todos sustentados pela erosão e degradação da dignidade humana garantida pelo direito ao trabalho.
Embora a incorporação de novas tecnologias ao processo econômico tenha, ao longo da história do capitalismo, levado a transformações e adaptações entre as gerações mais jovens em idade ativa, o que emerge na sociedade contemporânea é uma exclusão e o desaparecimento em massa de profissões e ofícios tradicionais, e a ascensão de um trabalhador comprometido com o aprendizado contínuo, a versatilidade, a rápida adaptação e o cultivo da empatia.
A fabricação e o transporte de produtos na indústria foram automatizados nas últimas quatro décadas com máquinas-ferramenta e a robotização, enquanto os trabalhos intelectuais ou que exigem raciocínio – como os de médicos, dentistas, advogados, contadores, arquitetos, engenheiros de computação, programadores, jornalistas e analistas de dados – em suas fases repetitivas, podem ser replicados e automatizados pela chamada inteligência artificial.
No entanto, é importante observar que os impactos e as trajetórias evolutivas da inteligência artificial, bem como seus efeitos estruturais, são difíceis de antecipar devido à própria velocidade e voracidade da mudança tecnológica. Prever seu curso torna-se ainda mais desafiador porque poucas corporações e países em todo o mundo concentram e centralizam essas tecnologias geradoras, e seu poder de excluir a intervenção humana e monopolizar informações e conhecimento é vasto. Apesar disso, os pessimistas não hesitam em expressar suas previsões alarmistas: Elon Musk, em novembro de 2023, declarou que “estamos testemunhando a força mais disruptiva da história. Chegará um momento em que nenhum emprego será necessário. Você pode ter um emprego se quiser, para satisfação pessoal, mas, em última análise, a inteligência artificial fará tudo”.
Após a especulação desenfreada e o capitalismo ponto.com da década de 1990, um retorno ao capitalismo desenfreado por meio da robotização, do Big Data e da inteligência artificial é iminente. Por isso, os Estados e a ação coletiva global devem assumir a responsabilidade pela regulação global da mudança tecnológica e sua natureza inerentemente excludente e de concentração desigual. Sem esses contrapesos do setor público – além das implicações geopolíticas e geoeconômicas da luta em torno da inteligência artificial –, a mudança tecnológica, seu uso excessivo e sua concentração ampliarão a exclusão digital, exacerbarão as desigualdades globais extremas e estenderão a restrição ou a anulação do direito à exploração no local de trabalho.
Deixado ao sabor dos caprichos e interesses particulares dos tomadores de decisão do mercado, o uso e a apropriação da tecnologia – inerentemente transnacionais – colocam em risco direitos humanos fundamentais, como o direito ao trabalho, e também podem prejudicar os direitos autorais, os direitos de propriedade intelectual e os direitos à privacidade. Sem ampla ação e regulamentações públicas, há o risco de que grandes conglomerados de tecnologia liberem seu poder, vigilância e dominação, ao mesmo tempo que reforçam a exclusão social e fomentam a entronização de uma sociedade dos descartáveis.
P.S. – Notícia de última hora: o futuro já chegou: em 27 de outubro de 2025, a Amazon anunciou que, no dia seguinte, 30.000 funcionários de escritório seriam demitidos e substituídos por inteligência artificial e robôs. A ideia de empregar menos humanos em tarefas rotineiras e repetitivas dentro das empresas está ganhando força; isso inclui não apenas os trabalhos manuais, mas também as tarefas corporativas, cognitivas e burocráticas, tudo em nome do aumento da eficiência e da redução de custos. Isso abre caminho para uma profunda transformação do mercado de trabalho.
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