01 Novembro 2025
Relatório de escuta foi elaborado por autoridades públicas, no início desta semana, e acessado de maneira oficial pela Aty Guasu.
A informação é publicada por CIMI, 30-10-2025.
A entrada dos Guarani e Kaiowá na sede da Fazenda Ipuitã, área sobreposta à Terra Indígena (TI) Guyraroká, em Caarapó (MS), no último sábado (25), e a subsequente escalada do conflito foram motivadas pelo sequestro de uma jovem de 17 anos e a suspeita de abuso sexual sofrido por ela.
As informações fazem parte de um relatório de escuta elaborado por autoridades públicas, no início desta semana, e acessado com exclusividade pela Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, após um pedido formal a elas. O documento deixa em evidência a sequência de violações de direitos humanos, atos violentos e criminalização a que os indígenas estão submetidos.
Na tentativa de recuperar a jovem, enfrentaram homens armados, alguns encapuzados e todos vestidos de preto, estiveram sob intenso tiroteio e após um ato criminoso dos próprios milicianos, o que os levou a fugir, os Guarani e Kaiowá decidiram ficar na sede para impedir a volta do bando até a chegada da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP).
Sem condições psicológicas de descrever o que ocorreu enquanto esteve sob o poder dos sequestradores não identificados, a jovem oferece indícios de que pode ter sofrido abuso sexual. Os Guarani e Kaiowá pedem às autoridades públicas que investiguem o caso e deem todo o amparo à jovem.
Conforme integrante da Aty Guasu ouvido pela reportagem e que acompanha a situação na TI Guyraroká, não identificado por razão de segurança, “ficou a imagem de que a gente foi pra lá tacar fogo, fazer barbaridades. Estão nos chamando de terroristas. Não são palavras verdadeiras. A comunidade só foi pra sede porque a menina foi sequestrada, e há a suspeita de que fizeram algo com ela. Isso revolta, machuca. Querem culpar as vítimas”.
Sequestro durante caçada
De acordo com familiares que presenciaram o momento do sequestro, e que conversaram com os órgãos competentes para o relatório de escuta, o grupo havia saído da área de acampamento da retomada, contígua à aldeia consolidada, ainda na madrugada de sábado (25) para caçar javali. Percorreram áreas próximas à aldeia e em uma região de brejo, atrás da sede da Fazenda Ipuitã, encontraram o animal.
Como é de praxe, os três indígenas se separaram para cercar o javali. Quando se aproximaram da caça, perceberam que a jovem havia sumido. Imediatamente, ouviram o barulho de um motor e gritos: viram uma caminhonete branca, modelo Hilux, se afastando pela estrada e deduziram que a jovem tinha sido sequestrada.
Segundo os familiares, um deles voltou à retomada para avisar sobre o ocorrido. Outro seguiu a pé o rastro da caminhonete em direção à sede da fazenda.
Raiva, vergonha e trauma
O indígena que seguiu a caminhonete chegou à sede da fazenda e encontrou a jovem chorando sob uma mangueira. Ele relatou que, naquele momento, sentiu raiva, ódio, “trauma” e vergonha pelo ocorrido. Não teve, contudo, tempo para processar os sentimentos.
Um dos homens que estavam na sede efetuou quatro disparos contra ele, que se protegeu e não foi atingido. Não se sabe se o atirador era um dos sequestradores.
Enquanto isso, outros Guarani e Kaiowá se deslocaram da retomada para a sede da fazenda. Ao chegarem, avistaram homens não indígenas vestidos de preto, e com aparência de embriaguez, que portavam armas de fogo e começaram a atirar contra o grupo.
Protegidos dos disparos, os indígenas identificaram um foco de incêndio em um bambuzal no lado em que estavam os homens não indígenas. O fogo crepitante estalava os bambus, simulando disparos de arma.
Com o ruído enganoso, os homens não indígenas interpretaram que estavam sendo alvejados e fugiram em uma caminhonete branca – um deles subiu na carroceria e de lá passou a atirar com o que parecia ser uma arma de calibre 22.
Suspeita de abuso sexual
Traumatizada, a jovem de 17 anos ainda não se sente capaz de relatar às autoridades públicas o que sofreu dentro da caminhonete e no momento em que foi abordada pelos homens mascarados. No entanto, contou os fatos a familiares, que, por sua vez, levaram o relato às autoridades.
Os familiares afirmam que a jovem disse ter sido abordada por um homem de preto e máscara, que se aproximou por trás, apontou uma arma e perguntou quem era a liderança da comunidade. Eles relatam que o homem tocou partes de seu corpo e a levou à força para a caminhonete branca.
Dentro do veículo havia outros quatro homens, também vestidos de preto, que amarraram suas mãos. De acordo com os familiares, a jovem sente vergonha de contar o que aconteceu durante o trajeto. Na sede da fazenda, ela foi deixada desamarrada sob a mangueira.
Os familiares e os demais indígenas da TI Guyraroká pedem às autoridades uma investigação a respeito das violações sofridas pela jovem.
Incêndios, permanência e saída da sede
O relatório também aborda os focos de incêndio identificados na sede da fazenda após o sequestro. Após a saída dos homens não indígenas armados e vestidos de preto, alguns encapuzados, os indígenas afirmam que tentaram conter as chamas no bambuzal usando paus, terra e água da caixa d’água, mas sem sucesso.
Os Guarani e Kaiowá relatam que o forte vento propagou o fogo descontroladamente, que rapidamente atingiu as construções da sede conforme entendem como aconteceu.
Eles lembraram que a sede era usada por seguranças privados armados – os homens vestidos de preto – e por efetivos da Polícia Militar (PM), Polícia Civil (PC) e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF). De lá também partem drones que vigiam os indígenas durante o dia.
Diante de todos os eventos, e para evitar o retorno do bando com características de milícia, os Guarani e Kaiowá decidiram permanecer no local. Com a chegada da PM, PC e DOF, e receosos de uma nova ação policial violenta – como em quatro intervenções anteriores –, decidiram sair do local após intermediação da FNSP.
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