"Urge nos defrontarmos pessoal e também coletivamente com os medos reais e aqueles produzidos a fim de cegarem narrativas de sentido, de dialogia, de esperançar. Denunciar é um caminho: profetas de todos os tempos usaram esta estratégia pedagógica na formação política e mística. Mas também anunciar o esperançar. Em tempos de semeadura de medos, a profecia é lutar pelas esperanças, sinalizar, fecundar, aprender com povos e organismos resilientes a transgredir e reconstruir."
O artigo é de Rosemary Fernandes da Costa, Teóloga, assessora do MEL (Movimento de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras), professora na PUC-Rio, membro da Comunidade Batismo do Senhor, Caxias, Rio de Janeiro.
Rosemary Fernandes (Foto: Arquivo Pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Seja em rodas de conversa entre amigos, análises de conjuntura, confidências sobre projetos existenciais, avaliações e planejamentos de ordem familiar, afetiva, socioeconômica, política -, podemos sentir nas entrelinhas ou mesmo no calor das palavras e emoções, as angústias, os medos, as desconfianças, os sobressaltos presentes neste tempo...
Poderíamos pensar nos grandes dramas que temos experimentado nestes tempos históricos, mas nesta reflexão, propomos também pensarmos o quanto estas inseguranças são utilizadas como estratégias na construção de narrativas de ausência de sentido.
Nas trilhas de Paulo Freire, aprendemos que é possível construir um mundo que seja do interesse das comunidades e grupos sociais, contanto que se parta das pessoas concretas, com suas histórias, conhecimentos, pontos de partida e de chegada, analisando problemas e propostas de superação. Enfim, o processo existencial é dialógico, coletivo, político.
Retomar a própria identidade é tornar-se sujeito, e não objeto. Reconhecer as identidades coletivas é experimentar a força política da comunhão de vidas. Olhando para tantos grupos sociais, movimentos, povos escravizados e aviltados em sua dignidade e formas de viver, ainda está latente a presença colonizadora. Contudo, são esses mesmos grupos e povos que mergulham em suas raízes fundadoras e resgatam identidades e desdobramentos palpáveis por tantas gerações.
Mas voltemos ao medo... ele anda circulando entre nós, talvez até dentro de nós. Nos confronta, nos interpela, nos coloca diante de limites, condições, impotências. Esse é um fator positivo, pois pode nos impulsionar a partir do diagnóstico. Mas ele também possui uma força existencial, que vem atingindo pessoas e grupos produzindo paralisia, isolamento, desconexão relacional, descompromisso ambiental. Nesse quesito estamos recebendo uma avalanche de informações e de desinformações que visam justamente a estagnação das narrativas de sentido e da conjugação concreta do verbo esperançar com suas tantas dimensões: realizar, construir, solidarizar, politizar.
Byung-Chul Han nos alerta que o medo e a democracia são incompatíveis. O medo generalizado sufoca a esperança, deprime, atiça ódios, deteriora a empatia. No entanto, a história já nos provou de muitas formas que o medo é um meio de dominação. Aprisionados no medo não nos solidarizamos, não enxergamos uns aos outros, não nos expressamos, nem mesmo queremos nos diferenciar.
A esperança atua de outra forma, pois ela aponta para o futuro, olha para o diagnóstico presente com sua concretude, mas também com suas brechas e possibilidades. A esperança estende o horizonte, percebe projeções e profecias, recupera o viver no seu desejo de plenitude e não de sobrevivência crítica.
Citando Han: “o medo sufoca qualquer amplidão, qualquer perspectiva, estreitando e bloqueando a visão. No medo, o mundo nos parece uma prisão. Todas as portas que levam ao aberto estão fechadas. O medo obstrui o futuro, fechando-nos o acesso ao possível, ao novo.” (Han, 2024,14)
Voltemos a Paulo Freire que nos convoca a entrarmos na história como sujeitos e não como objetos. Este é um saber prático, que precisa ser exercitado na solitude e na coletividade. Estamos conscientes das pressões que recebemos a cada instante para nos alienarmos de nós mesmos e de todo o entorno? Pressões que nos coisificam, como objetos de projetos que vão em direções antagônicas aos anseios de um mundo de comunhão e irmandade? De muitas e muitas formas, somos sutilmente convocados a apoiarmos o patriarcado capitalista, o imperialismo, o neoliberalismo, as ideologias de servidão e empreendedorismo de si mesmo, o apagamento de culturas, povos, ambientes e organismos.
Urge nos defrontarmos pessoal e também coletivamente com os medos reais e aqueles produzidos a fim de cegarem narrativas de sentido, de dialogia, de esperançar. Denunciar é um caminho: profetas de todos os tempos usaram esta estratégia pedagógica na formação política e mística. Mas também anunciar o esperançar. Em tempos de semeadura de medos, a profecia é lutar pelas esperanças, sinalizar, fecundar, aprender com povos e organismos resilientes a transgredir e reconstruir.
Nos unimos às vozes aqui citadas, de Freire e Han, mas também às tantas vozes que não se detiveram no medo, mas que imersas neste clima despertaram do mais fundo de si mesmas, a esperança. Aqui trazemos algumas como Simone Weil, Pedro Casaldáliga, Marielle Franco, Antonio Bispo dos Santos. Que possamos trazer muitas outras vozes, que nos convoquem, nos interpelem, nos enraízem na ancestralidade e em uma reflexão que integre a crítica, a mística e a política. Que possamos não nos submeter às ideologias que fabricam o medo e suas redes, e espalhemos esperanças. Sim, no plural, como fermento de revolução.
Não te rendas, ainda é tempo
de se ter objetivos e começar de novo,
aceitar tuas sombras,
enterrar teus medos
soltar o lastro,
retomar o vôo.
Mario Benedetti
Cf. HAN, Byung-Chul. O espírito da esperança. Contra a sociedade do medo. Petrópolis: Vozes, 2024.