Pesquisadora da UFRJ relembra a centralidade do pensamento do historiador africano para a descolonização dos povos
"A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar em seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passado em seu presente e futuro”. Dessa frase do historiador africano de Burquina Fasso, Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), emerge uma das ideias centrais de seu pensamento: “só podemos promover uma revolução efetiva se promovermos a descolonização dos sujeitos”. Essa visão, segundo a historiadora Mariana Gino, está no cerne da visão de mundo do historiador africano. “Ele acreditava que a descolonização da mente e do ser precisa ser o primeiro passo para que possamos pensar em um futuro descolonizado”, comenta.
Na entrevista a seguir, a pesquisadora Mariana Gino recorda o legado de Joseph Ki-Zerbo na promoção da História Africana e recupera os conceitos de “desenvolvimento endógeno” e “identidade”, desenvolvidos pelo autor para promover a descolonização dos povos.
Mariana Gino é diretora executiva adjunta do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP). É também doutora em História Comparada pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ), com ênfase em História Intelectual Africana, em especial sobre o pensamento político e social do professor Joseph Ki-Zerbo, e mestra pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, com ênfase em Historiografia Africana e Reescrita da História, pós-graduada em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É bacharel em Teologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e, em História, pela UFJF.

Mariana Gino (Foto: Arquivo Pessoal)
Coordena o Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ) e a Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ). Integra o Grupo de Pesquisa Integrada em História, Patrimônio Cultural e Educação e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da Universidade de Vassouras. É coordenadora da Iniciativa Viva a Pequena África do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A entrevista é de Thiago Gama, doutorando em História Comparada (História da Igreja) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi enviada ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em seu doutorado, a senhora analisou a complexa intersecção entre a fé católica e a militância anticolonialista de Joseph Ki-Zerbo. Como essa síntese intelectual (e talvez tensão interna) informa, ou quem sabe, desafia, os métodos decoloniais de historiografia africana que a senhora defendeu em seu mestrado?
Mariana Gino – O professor Joseph Ki-Zerbo foi um intelectual à frente do seu tempo. Ele não só contribuiu de forma significativa para a promoção e difusão da História do continente africano, como também participou da construção de um projeto de historiografia sobre o continente africano, idealizado e escrito por intelectuais africanos. A sua relação com a Igreja Católica e, sobretudo, com a Igreja Católica no continente africano, nunca foi uma questão de dúvida diante dos seus princípios.
Ki-Zerbo acreditava que a Igreja Católica deveria contribuir para o processo de descolonização do continente africano, visto que a instituição ajudou no processo de colonização antes e durante a vigência da assinatura do Tratado de Berlim.
Sua atuação como diretora executiva adjunta no CEAP e na coordenação de projetos como o “Viva a Pequena África” e o “Ubuntu Carioca” demonstra um forte elo entre academia e território. Como o rigor da pesquisa histórica sobre o Cais do Valongo pode ser traduzido em ações públicas efetivas de combate ao racismo religioso naquela região?
Mariana Gino – O CEAP tem em sua essência um diálogo forte e extremamente dinâmico com os territórios periféricos e com o mundo acadêmico. Minha atuação dentro da instituição, como diretora executiva adjunta no CEAP e na coordenação de projetos, está muito ligada à minha construção enquanto pesquisadora atuante no movimento negro, que busca construir e promover pontes entre esses dois mundos que parecem estar distantes, mas não estão.
O ponto central é a forma como promovemos esses encontros, buscando dar o devido protagonismo às vozes que ainda são silenciadas dentro dos territórios durante a realização de pesquisas acadêmicas. Assim, buscamos, por meio desses projetos, dar visibilidade e elevar os protagonismos de quem verdadeiramente tem suas raízes centradas no desenvolvimento cultural do território.
Como secretária geral do Centre International Joseph Ki-Zerbo (CLIKAD), a senhora zela pela aplicação contemporânea do legado desse pensador. Qual conceito-chave de Ki-Zerbo – seja o de desenvolvimento endógeno, seja o de identidade como pré-requisito para a história – a senhora considera mais urgente para ser “traduzido” aos debates atuais da diáspora africana no Brasil?
Mariana Gino – Compreendo o legado e a trajetória do professor Joseph Ki-Zerbo e acredito que os dois conceitos são centrais e, ao mesmo tempo, a chave mestra para a elevação da difusão do seu pensamento. Afinal, só é possível pensar e vislumbrar uma África livre se o conceito de desenvolvimento endógeno estiver alinhado com o conceito de identidade.
Ki-Zerbo defendia que só podemos promover uma revolução efetiva se promovermos a descolonização dos sujeitos. Ou seja, ele acreditava que a descolonização da mente e do ser precisa ser o primeiro passo para que possamos pensar em um futuro descolonizado.
A senhora atua simultaneamente na pesquisa da história social da intolerância religiosa e na Rede de Professores Antirracistas. Em sua visão, qual é o papel estratégico da implementação efetiva da Lei 10.639/2003 não apenas na educação básica, mas também como uma ferramenta direta de desmonte do racismo estrutural que historicamente alimenta essa intolerância?
Mariana Gino – Primeiro, é importante ressaltar que a Lei 10.639/2003, que agora é Lei 11.645/2008, também torna obrigatório o ensino da História e Cultura Indígena, uma das grandes vitórias do movimento negro brasileiro. E o CEAP, na pessoa do professor Dr. Babalawô Ivanir dos Santos e do professor Elé Semog, juntos com outras lideranças negras, participaram ativamente dessa construção.
A Lei 10.639/2003 é um ato revolucionário, político e subversivo diante dos padrões de colonialidades e racismo que ainda permeiam os sistemas educacionais brasileiros. Assim, acredito que é preciso promover a lei em todas as etapas da formação dos/as sujeitos/as. Mas, infelizmente, ainda esbarramos em barreiras preconceituosas e racistas dentro do campo da educação, que minimizam o projeto político emancipatórios que a Lei 10.639/2003 se pretende.
Seu pós-doutorado enfoca a História Intelectual Africana. Para além da centralidade de Joseph Ki-Zerbo em sua trajetória, que outros pensadores ou tradições intelectuais do continente a senhora julga essenciais para compreendermos a formação e a sofisticação das resistências intelectuais afro-brasileiras?
Mariana Gino – No pós-doutorado busco analisar a construção dos currículos acadêmicos, centralizados em referências intelectuais brancas, como estratégia de manutenção de poder da disseminação do pensamento do sujeito branco. Assim, busco fazer uma experiência com disciplinas para a graduação e para a pós-graduação do curso de História em que só uso como fontes e referências bibliografias intelectuais escritas por intelectuais negros/as e africanos/as. Precisamos instigar e promover o conhecimento e o pensamento de intelectuais que, por muito tempo, só eram objetos no campo de pesquisa.
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