06 Novembro 2025
“Teologia de mulheres: desafios epistemológicos hoje” é uma obra de elevada relevância acadêmica e pastoral. Seu mérito reside na capacidade de articular pensamento teológico, crítica social e experiência espiritual em uma linguagem acessível, mas intelectualmente rigorosa. A coletânea reafirma o compromisso da teologia feminista com a vida, a justiça e a dignidade das mulheres, ao mesmo tempo em que propõe novas epistemologias teológicas centradas na escuta, no cuidado e na corporeidade.
O artigo é de Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Eis o artigo.
A coletânea Teologia de mulheres: desafios epistemológicos hoje (Vozes, 2025) constitui uma contribuição significativa para o campo da teologia contemporânea, particularmente no contexto teológico brasileiro e latino-americano. Organizada por Maria Clara Bingemer e composta pelas reflexões de nove autoras: Cleusa Maria Andreatta, Francilaide de Queiroz Ronsi, Gisele Canário, Ivone Gebara, Lucia Weiler, Maria Clara Bingemer, Maria Inês de Castro Millen, Neiva Furlin, Suzana Regina Moreira, a obra reafirma a centralidade das experiências e epistemologias femininas na construção do saber teológico, ao mesmo tempo em que evidencia o processo de maturação da teologia feita por mulheres.
O principal valor da obra está em reconhecer e sistematizar o fazer teológico das mulheres não apenas como um campo temático, restrito à questão de gênero, mas como uma verdadeira epistemologia situada, que reivindica o lugar da experiência, da corporeidade e da linguagem afetiva como dimensões constitutivas do pensamento teológico. Ao articular teologia, feminismo e estudos de gênero, as autoras demonstram que o discurso teológico é sempre produzido a partir de corpos, contextos e histórias concretas.
Essa dimensão epistemológica é explorada de modo consistente ao longo dos capítulos, especialmente nas contribuições de Maria Inês de Castro Millen e Suzana Regina Moreira. Ambas ressaltam a necessidade de repensar o fazer teológico a partir da integralidade da pessoa humana e da valorização das narrativas e linguagens que emergem de experiências de marginalização e resistência. Essa perspectiva aproxima-se das correntes pós-coloniais e decoloniais da teologia latino-americana, revelando uma fecunda interlocução entre teologia feminista e crítica cultural.
Um dos aspectos mais relevantes da obra é sua inserção no contexto brasileiro, que historicamente combina forte tradição católica com estruturas patriarcais persistentes. As autoras demonstram sensibilidade ao analisar como o contexto social, eclesial e acadêmico do Brasil molda as possibilidades e limitações da presença feminina na teologia. O texto de Francilaide Ronsi e Gisele Canário, ao discutir a inserção das mulheres nos cursos e programas de Teologia e Ciências da Religião, representa uma contribuição empírica importante, ainda pouco explorada no campo teológico.
Além disso, a reflexão de Suzana Regina Moreira sobre o “fazer teológico” a partir do corpo e das “corpas” amplia a compreensão da teologia como prática encarnada. Essa abordagem, fortemente enraizada na realidade latino-americana, reforça a necessidade de uma teologia que dialogue com a diversidade, a pluralidade religiosa e as experiências concretas de exclusão e resistência no continente.
A obra também se destaca pela atenção dada à linguagem teológica, um tema central para a teologia feminista. Os textos de Lúcia Weiler e Cleusa Maria Andreatta mostram como a leitura e a interpretação das Escrituras, bem como o uso de imagens e metáforas femininas para expressar o divino, constituem um campo de disputa simbólica e teológica. Ao reivindicar a legitimidade de uma linguagem teológica inclusiva, as autoras ampliam o horizonte da reflexão sobre Deus, superando a hegemonia de representações patriarcais e antropocentricamente masculinas.
A leitura proposta por Weiler, que desafia a naturalização da hermenêutica patriarcal e reivindica uma leitura feminina e crítica das Escrituras, oferece um dos momentos mais densos e originais da coletânea. Já Andreatta, ao propor uma teologia que reformula a linguagem sobre Deus sem instrumentalizá-la, mas como meio de transformação social, reforça o caráter político da linguagem teológica.
A inclusão do texto de Neiva Furlin, de formação sociológica, confere à coletânea um caráter interdisciplinar que enriquece o debate. Ao situar a teologia feminista no âmbito dos estudos de gênero, Furlin demonstra que o diálogo entre teologia e ciências sociais é não apenas possível, mas epistemologicamente necessário. Essa interface permite problematizar as estruturas de poder que sustentam as narrativas teológicas tradicionais e contribui para a formação de um pensamento crítico, capaz de integrar fé, cultura e justiça de gênero.
Contudo, embora a obra seja rica em perspectivas teóricas e analíticas, percebe-se certa heterogeneidade metodológica entre os capítulos. Essa pluralidade, embora positiva como expressão da diversidade das autoras, pode gerar certa dispersão temática, especialmente para o leitor que busca uma linha argumentativa unificada. Essa característica, no entanto, é também coerente com a proposta do livro: dar voz a diferentes experiências e estilos teológicos femininos, sem reduzi-los a uma única matriz de pensamento.
A coletânea reafirma a teologia feminista como campo de produção legítimo e indispensável dentro da teologia contemporânea. Sua importância reside não apenas em dar visibilidade às mulheres teólogas, mas em propor novas formas de compreender o mistério divino e a experiência da fé a partir de lugares antes silenciados. Nesse sentido, Teologia de mulheres não é apenas uma obra descritiva, mas performativa: ela faz teologia ao mesmo tempo em que reflete sobre o fazer teológico.
A presença de teólogas consagradas, como Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer, ao lado de novas vozes, confere à coletânea um caráter de continuidade e renovação. A reflexão sobre a ruach divina proposta por Bingemer sintetiza simbolicamente o horizonte da obra: o sopro vital que inspira uma teologia em constante transformação, marcada por sensibilidade, crítica e esperança.
Teologia de mulheres: desafios epistemológicos hoje é uma obra de elevada relevância acadêmica e pastoral. Seu mérito reside na capacidade de articular pensamento teológico, crítica social e experiência espiritual em uma linguagem acessível, mas intelectualmente rigorosa. A coletânea reafirma o compromisso da teologia feminista com a vida, a justiça e a dignidade das mulheres, ao mesmo tempo em que propõe novas epistemologias teológicas centradas na escuta, no cuidado e na corporeidade.
Como toda produção coletiva, o livro reflete múltiplas vozes e perspectivas, o que constitui tanto sua força quanto seu desafio. Entretanto, essa diversidade é precisamente o que o torna indispensável: ele evidencia que a teologia feita por mulheres não é homogênea, mas plural, crítica e profundamente encarnada. Assim, a obra se consolida como referência obrigatória para estudiosos e estudiosas de teologia, da teologia feminista, dos estudos de gênero e da epistemologia teológica contemporânea, oferecendo um horizonte renovado para pensar a fé e o conhecimento a partir das margens, das experiências e das vozes historicamente silenciadas.
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