14 Outubro 2025
- Dilexi te reafirma de maneira admirável a opção preferencial pelos pobres como núcleo do Evangelho. Recupera a memória patrística e o legado de santos e congregações que encarnaram a caridade cristã, situando a justiça social como dimensão essencial da fé. É, acima de tudo, uma carta de amor evangélico ao pobre.
- Mas roça a idealização histórica: celebra com razão os gestos heroicos da caridade cristã, porém toca muito pouco nos capítulos obscuros que acompanham essa história — abusos, clericalismo, conivências com o poder — que exigem conversão, mudanças estruturais e reparação... “quando nos metemos com a interpretação da história, raramente saímos ilesos...”
- Falta uma maior inclusão ecumênica. Dilexi te parece se recolher sobre si mesma, sem reconhecer explicitamente que outras religiões, movimentos e organizações também servem aos pobres... Jesus não quis uma Igreja que tivesse o monopólio da bondade, mas uma que cooperasse com todos os que amam (Mc 9,40).
O artigo é de Guillermo Jesús Kowalski, teólogo e cientista social, mestre em Doutrina Social da Igreja pela Universidade de Salamanca, publicado por Religión Digital, 13-10-2025.
Eis o artigo.
A exortação apostólica Dilexi te do Papa Leão XIV dá continuidade aos grandes textos do magistério social da Igreja, mas também levanta um desafio de maturidade eclesial: como falar do amor aos pobres sem convertê-lo em um discurso de auto-elogio? Como proclamar a opção preferencial pelos pobres – constitutiva do Evangelho – sem admitir as sombras da própria história eclesial?
- Dilexit te: o amor que silencia o que ainda precisa de cura Dilexit te nasce do coração pastoral de um Papa que deseja lembrar ao mundo que o cristianismo é, acima de tudo, uma história de amor feito serviço. É um texto belo, profundamente evangélico, que respira misericórdia. Mas é também um documento com silêncios. Sua fraqueza não está no que diz, mas no que decide silenciar. O texto percorre com gratidão os séculos de caridade cristã, homenageia santos e comunidades que encarnaram o Evangelho entre os pobres. No entanto, não há uma única palavra sobre as sombras que também fazem parte da história da Igreja: a corrupção das cortes papais, as violências coloniais, as conversões forçadas, as alianças com o poder, a pedofilia e seu acobertamento, o clericalismo como doença estrutural que impediu a missão disruptiva do evangelho em relação aos pobres. Esse silêncio clama por desenvolvimentos posteriores. “Quem se mete com a interpretação da história, nunca sai ileso.” Se o Evangelho ensina que “temos, porém, este tesouro em vasos de barro” (2 Cor 4,7), como pode uma Igreja falar de amor sem reconhecer suas próprias fragilidades? Como pode anunciar o Reino se não confessa suas feridas? O risco é claro: parecer mais preocupada em preservar sua imagem com uma teologia apologética da instituição, em vez de uma leitura integral da história que mostre suas fraquezas.
- Uma contribuição necessária, mas ainda insuficiente Dilexit te denuncia com força a desigualdade do mundo, mas guarda silêncio sobre a desigualdade dentro da Igreja. O clericalismo – essa forma sutil e persistente de dominação espiritual – continua a gerar pobreza de participação, silenciamento de vítimas, exclusão de mulheres, invisibilização de leigos, exclusão de padres casados e concentração de poder. Esta desigualdade eclesial perpetua um mecanismo empobrecedor na própria igreja. Onde o clericalismo se ergue sobre o Povo de Deus, o Evangelho se empobrece. A comunhão se converte em subordinação e a autoridade é confundida com privilégio. Uma Igreja que não revisa suas estruturas de poder, mesmo que fale dos pobres, corre o risco de perpetuar pobrezas: as daqueles que não podem decidir, nem ser ouvidos, nem participar. “Uma Igreja credível não é a que se defende, mas a que se deixa interpelar.” (Christoph Theobald). Essa é a conversão pendente: deixar-se interpelar não apenas pelos santos, mas pelas vítimas da história, pelo grito daqueles que foram silenciados dentro e fora do templo. Somente aqueles que têm a experiência da pobreza fruto da injustiça, têm os olhos abertos para compreender. Dilexit te invoca o “pecado estrutural”, mas apenas para se referir ao mundo exterior, não à própria instituição. Não menciona nem uma vez a palavra pedofilia, nem clericalismo, nem sinodalidade. E, no entanto, esses são os sinais dos tempos que mais clamam por conversão para concretizar a pobreza evangélica. Francisco, na Evangelii Gaudium (49), advertiu que devemos temer mais o confinamento em estruturas que nos dão uma “falsa contenção” do que o risco de errar. Talvez aqui o documento tenha se refugiado precisamente nessa contenção. A caridade, sem autocrítica, pode transformar-se em discurso estético. Não basta uma referência abstrata à “necessidade de conversão”. Esta, sem mudanças estruturais, pode ser apenas uma versão piedosa do autoengano.
- Falta de olhar ecumênico: o amor não tem fronteiras Quando Francisco escrevia um documento, convidava a participar um ortodoxo ou muçulmano e citava autores “não canônicos”. Por isso se sente um vazio em Dilexit te em seu olhar para o mundo. Fala muito da Igreja e suas obras, mas pouco dos outros que também amam, servem e constroem justiça. A Igreja não tem o monopólio do amor aos pobres. Não há referências explícitas às comunidades cristãs não católicas, a outras religiões nem às inúmeras organizações sociais e leigas que encarnam o amor ao próximo sem esperar reconhecimento. O documento parece pensar a caridade como um patrimônio interno, quando o Evangelho a propõe como uma corrente universal. Jesus mesmo corrigiu seus discípulos quando quiseram proibir outros de fazer o bem em seu nome: “Não lho impeçais; pois quem não é contra nós, é por nós.” (Mc 9,40). O amor aos pobres não tem fronteiras confessionais. É uma regressão eclesiológica: do diálogo aberto ao monólogo devoto. Essa falta de reconhecimento empobrece o testemunho eclesial. Em um mundo onde muitas pessoas boas – cientistas, ativistas, pensadores, crentes e não crentes – arriscam sua vida pelos pobres, pela justiça ou pela paz, uma Igreja que não as nomeia se isola. O Espírito sopra também fora de seus muros. Santo Agostinho compreendeu isso há dezesseis séculos: “Muitos que parecem estar dentro não estão, e muitos que estão fora pertencem à alma da Igreja.” Não precisamos de uma Igreja que ostente o monopólio da bondade, mas de uma que coopere com todos os que amam.
Conclusão
Do discurso às mudanças estruturais A terceira carência de Dilexit te é a partir de onde se prega a pobreza. O documento exalta a simplicidade dos santos e a dedicação das congregações religiosas, mas não enfrenta a contradição de falar de pobreza a partir de estruturas de poder, riqueza e privilégio. Uma Igreja que fala de pobreza a partir de palácios vaticanos e curiais gera dissonância. O testemunho de Francisco – sua austeridade, sua proximidade, seu estilo evangélico – mostrou que a verdadeira reforma não começa nos documentos, mas na coerência dos gestos. Foi uma pedagogia profética que deveria ser continuada em reformas de estruturas que perpetuam desigualdade, isolamento e abuso. O celibato obrigatório, a verticalidade hierárquica, a desconsideração de mulheres, leigos, padres casados e a sacralização do poder clerical continuam a gerar pobrezas espirituais e humanas dentro da própria Igreja. Como lembra Elizabeth Johnson, a conversão não é uma estratégia de sobrevivência, mas uma resposta ao Deus que irrompe a partir das vítimas da história. A credibilidade do Evangelho depende hoje dessa resposta: passar da memória piedosa ao testemunho transformador, da caridade retórica à pobreza encarnada e reparadora. Só uma Igreja que confesse seu barro poderá voltar a ser luz para os pobres. Então, o amor deixará de ser ideologia piedosa e se fará fogo profético que acende esperança, cumprindo o sonho conciliar de compartilhar as alegrias e angústias dos pobres e de toda a humanidade (GS 1).
Fontes no texto
Bíblia: Segunda Carta aos Coríntios 4,7; Evangelho segundo São Marcos 9,40. (Sobre a fragilidade da Igreja e o amor sem fronteiras confessionais.)
Magistério: Francisco. Evangelii Gaudium, 2013, (sobre o risco de se fechar em estruturas que oferecem falsa contenção.) Concílio Vaticano II. Gaudium et Spes. 1965. (sobre a comunhão de alegrias e esperanças com os pobres.) Leão XIII. Rerum Novarum, 1891 (Contexto histórico do magistério social retomado por Dilexi te.) Paulo VI. Populorum Progressio, 1967. (continuidade doutrinal com o magistério social moderno.) Francisco. Fratelli Tutti. (o amor sem fronteiras e a abertura ecumênica.)
Teologia: Santo Agostinho: In Ioannis Evangelium Tractatus, 45, 12. “Muitos que parecem estar dentro não estão, e muitos que estão fora pertencem à alma da Igreja.” Theobald, Christoph. El estilo de la vida cristiana 2016. “Uma Igreja credível não é a que se defende, mas a que se deixa interpelar.” Johnson, Elizabeth A. La búsqueda del Dios vivo Trazar las fronteras de la teología de Dios, 2007. “A conversão eclesial não é uma estratégia de sobrevivência, mas uma resposta ao Deus vivo que irrompe a partir das vítimas.” Gutiérrez, Gustavo. Teologia da libertação. Perspectivas. 1971. a opção preferencial pelos pobres como categoria teológica constitutiva. Boff, Leonardo. Igreja: carisma e poder. 1981. crítica ao clericalismo como forma estrutural de dominação espiritual. Congar, Yves. Verdadera y falsa reforma de la Iglesia, 1950. A reforma interna como critério de autenticidade eclesial. Ellacuría, Ignacio. Escritos teológicos, vol. I. 1991. “história como lugar de salvação” e a missão libertadora do Evangelho. Sobrino, Jon. Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret. 1991. o Cristo dos pobres e das vítimas.
Pensamento filosófico: Ricoeur, Paul. A memória, a história, o esquecimento. 2003. “Quem se mete com a interpretação da história, não sai ileso.” Camus, Albert. O homem revoltado. 1951. Sobre o “autoengano piedoso” e a necessidade de autenticidade diante da dor humana. Levinas, Emmanuel. Totalidade e infinito. 1977. a ética do outro e a responsabilidade como raiz do amor cristão. Habermas, Jürgen. Consciência moral e ação comunicativa. 2002. Para a crítica sobre a falta de diálogo e sinodalidade.
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