11 Outubro 2025
“A masculinidade especulativa tornou-se uma identidade. Não se trata de ter ou não criptomoedas, de seguir Andrew Tate ou Milei. Trata-se de organizar o “eu” em torno do jogo, do risco, da violência. Nesse contexto, a empatia é fraqueza, o cuidado é coisa de pobre e a solidariedade é uma armadilha. A verdadeira liberdade é enfrentar o mundo sozinho. Qualquer outra coisa é fracasso. Essa é a gramática que circula hoje no TikTok, nos grupos de WhatsApp e na arena política”. A reflexão é de Agustina Kupsch e Nicolás Pontaquarto, em artigo publicado por Tiempo Argentino, 07-10-2025. A tradução é do Cepat.
Agustina Kupsch, antropóloga e fundadora do Panóptico Cultural.
Nicolás Pontaquarto, membro do Instituto de Masculinidades e Mudança Social.
Eis o artigo.
O triplo feminicídio de Florencio Varela nos mostra, mais uma vez, que a violência não se esconde: se exibe. Brenda, Morena e Lara não foram apenas vítimas de uma quadrilha de narcotraficantes; foram exibidas, usadas como símbolo de uma masculinidade que precisa demonstrar sua força por meio através da dor alheia. Não basta matar: é preciso mostrar, fazer circular e garantir que a mensagem seja compreendida. Como se um feminicídio fosse também stremeável, um conteúdo mais para um feed saturado de ódio. Isso é o mais sinistro: a violência não é mais um acidente ou um desvio, é gramática. Uma forma de narrar a existência quando todo o resto falha.
Não é por acaso que, paralelamente, proliferam as vozes de jovens, filmando-se de quartos úmidos e paredes não rebocadas, falando sobre liberdade financeira, criptomoedas e como vão “dar um jeito” de sair da lama. Não são influenciadores em Dubai. São jovens do subúrbio, usando tênis surrados, que repetem quase palavra por palavra o mesmo roteiro de um milionário em Miami. A promessa viaja pelo TikTok e pelo Discord: se você não progride, é porque não quer. Um trabalho de oito horas por dia é para os pobres. O ensino superior é para os perdedores. A salvação está na aposta, no risco, em ousar apostar tudo ou nada.
Os “criptobros” e “traders” não são mais privilégio da classe média alta. Nos subúrbios, também há jovens que investem suas verbas rescisórias em criptomoedas, que se inscrevem em cursos de trading pelo WhatsApp, que madrugam para se filmar fazendo flexões e repetindo mantras de superação pessoal. A precariedade material coexiste com a fantasia da abundância. Não é uma contradição: é um sintoma. O que antes parecia exclusivo dos lofts com fachada de vidro agora circula em casas com telhados de zinco.
A masculinidade especulativa também é o sonho possível de uma geração falida. Com um investimento mínimo, você pode se sentir um operador de mercado. Exige menos esforço do que a obrigação de ser um fornecedor. As fintechs permitem que você se torne um trader da noite para o dia e com apenas 1.000 pesos, o que hoje não paga nem duas passagens de ônibus. O governo permitiu que crianças a partir dos 13 anos criem uma corretora para comprar e vender títulos, ações e outros instrumentos. Gerar empregos? Não precisamos de empregos para onde estamos indo.
“Soldadinhos do narcotráfico” ou “soldadinhos do capital financeiro”. Morrer em benefício dos outros. Num caso, arrisca-se o corpo na esquina; no outro, arrisca-se o salário diante da tela. Em ambos os casos, o risco se torna uma virtude, a vida uma aposta, a adrenalina sua única bússola. Não importa o quanto se tem, mas o quanto se ousa perder. E essa pedagogia do risco é exatamente o que Milei soube capitalizar.
Porque não é por acaso que tantos desses jovens são libertários. A narrativa especulativa se encaixa na narrativa política das novas direitas como duas peças projetadas para se encaixar. Milei repete a mesma coisa que os influenciadores digitais: sair da matriz, romper os laços que os prendem, comprometer-se com a liberdade individual, desprezar o Estado como se fosse um parasita. O Google Ads e os algoritmos fazem o resto: segmentam, multiplicam e convertem essa gramática em senso comum.
O triplo feminicídio em Varela, lido dessa perspectiva, não é apenas um ato individual monstruoso: faz parte da mesma trama. É a versão mais crua dessa masculinidade especulativa onde se arrisca tudo, se nega o outro, se desumaniza e a violência se transforma em espetáculo. O vencedor é aquele que é visto, o perdedor desaparece.
[Erich] Fromm já havia dito: a destrutividade não é instinto, é resposta ao vazio. Quando não há projeto, quando não há horizonte, a violência aparece como uma bússola distorcida. É essa bússola que guia milhares de jovens hoje: os fóruns incel, os traders e os discursos libertários oferecem-lhes uma direção clara, mesmo que isso os leve ao abismo. Ódio ao Estado, ódio às mulheres, ódio aos pobres que não merecem. Mais do que ideias, são pertencimentos. Mais do que debates, são comunidades de significado. A tribalização do ódio.
E o ódio vicia e também pode ser um negócio. Odiar é mais fácil do que pensar, e muito mais lucrativo em curtidas. Os jovens sabem disso. É mais fácil culpar o planero [pessoa que recebe algum benefício social ou eleitor do kirnechismo], a feminazi, o esquerdista, do que assumir o próprio vazio. É mais fácil militar contra a violência do que habitar a incerteza. É por isso que celebram a repressão, pedem balas, aplaudem a polícia quando espanca médicos e aposentados. Não é ignorância: é desejo. Eles não viveram a ditadura, mas celebram o coturno. Não buscam um futuro, buscam a demolição. Não votam pela esperança, votam pela vingança.
A masculinidade especulativa tornou-se uma identidade. Não se trata de ter ou não criptomoedas, de seguir Andrew Tate ou Milei. Trata-se de organizar o “eu” em torno do jogo, do risco, da violência. Nesse contexto, a empatia é fraqueza, o cuidado é coisa de pobre e a solidariedade é uma armadilha. A verdadeira liberdade é enfrentar o mundo sozinho. Qualquer outra coisa é fracasso. Essa é a gramática que circula hoje no TikTok, nos grupos de WhatsApp e na arena política.
Enquanto isso, nos bairros, a oferta é limitada: ser um soldadinho do narcotráfico ou um soldadinho do capital financeiro. Que outra alternativa existe? Não há educação sexual integral, há poucos espaços de escuta para homens e, nesse número limitado, as pessoas fazem o que podem com o que têm, diante de um Estado nacional que ataca a comunidade. Não há futuro previsível. No entanto, há autorização estatal para que os adolescentes abram contas de investimento: não há rede de segurança, mas há roleta. A mensagem é clara: jogue sozinho e, se perder, a culpa é sua.
Não basta denunciar ou expor. Não basta dizer: “Que ridículo esse garoto filmando suas operações de uma casa sem reboco”. Os ridículos somos nós se achamos que rir basta. Nem bastam as oficinas de desconstrução (que nunca se generalizam), nem bastam discursos morais que condenam, mas não oferecem nada em troca. A direita já entendeu algo básico: os jovens não querem apenas críticas, querem certeza.
O triplo feminicídio nos lembra da urgência de uma narrativa diferente. Uma que não se concentre na exclusão, punição ou vingança. Uma que coloque o comum novamente no centro; uma que entenda a empatia como uma tecnologia política, não como uma fraqueza. Uma narrativa que nos convide a resgatar a conversa como pilar de outra comunidade possível que possibilite o encontro, a abertura e a troca real, algo que requer escuta ativa e compreensão. Porque, embora prometam liberdade financeira na solidão, a única liberdade real permanece sendo possível no coletivo.
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