11 Outubro 2025
Estudos reforçam como as periferias não são uma “falha” da urbanização, mas um cálculo seletivo. Para não legitimá-las, o Estado opta por gerenciar – e não solucionar – as desigualdades, por meio de exceções jurídicas e licenças precárias. É o pacto da “provisoriedade permanente”.
O artigo é de Rafael da Costa Gonçalves de Almeida, Marianna Fernandes Moreira e Matheus da Silveira Grandi, publicado por The Conversation Brasil, 08-10-2025.
Rafael da Costa Gonçalves de Almeida é professor adjunto do Departamento de Geografia Humana do Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Marianna Fernandes Moreira é professora adjunta do Departamento de Geografia Humana, do Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Matheus da Silveira Grandi é professor associado do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Eis o artigo.
Desde o início do século XX, quando o termo favela passou a designar genericamente áreas populares de ocupação no Rio de Janeiro, esses espaços, segundo Maurício Abreu, foram associados à ilegalidade e à marginalidade. O tema da “invasão” atravessa a história da cidade, das narrativas de fugitivos, soldados e libertos que subiram os morros até os relatos épicos da migração rural-urbana.
A partir da segunda metade do século XX, porém, estudiosas e estudiosos do espaço urbano passaram a questionar essa leitura. Argumentaram que a cidade autoconstruída não era uma anomalia, mas parte das origens do urbanismo ibero-americano.
No debate internacional, sobretudo sobre o Sul Global, é comum pesquisadores tratarem a informalidade como fenômeno espontâneo, reflexo da incapacidade histórica dos Estados em formalizar atividades e habitação de amplos segmentos da população. Essa visão supõe que a urbanização “incompleta” resultaria de falhas ou omissões estatais.
Contudo, a maioria dos estudiosos do século passado – independentemente de abordarem o tema a partir da teoria da modernização, da marginalidade ou da dependência – considerou a informalidade urbana como externalidade não intencional do desenvolvimento.
Informalidade, conflito social e responsabilidade estatal nas favelas
Nós, do Grupo de Pesquisas e Extensão sobre Culturas, Políticas e Geografias Marginais (MARGEAR) e do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Corpos e Espaços Periféricos (PERI), ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entendemos de outra forma: a informalidade não está fora das estruturas do Estado, mas integra suas práticas territoriais.
A pesquisa sobre o que é favela, de Maria Laís Pereira da Silva, publicada no Observatório de Favelas, reforça esse argumento. Cerca de 40% das favelas construídas antes de 1964 surgiram com algum tipo de autorização prévia: de proprietários, grileiros ou, no caso de terrenos públicos, de funcionários estatais.
Esse dado histórico revela que o Estado nunca esteve ausente, mas atuou de maneira seletiva, utilizando a informalidade como ferramenta de planejamento urbano. Com isso, ao mesmo tempo, desresponsabilizou-se de prover direitos plenos aos moradores das favelas.
A regulação das atividades
Com o crescimento das favelas, atividades públicas e privadas passaram a demandar regulação. O problema era que o estatuto jurídico desses territórios os mantinha na ilegalidade. Como o Estado poderia fiscalizar sem correr o risco de legitimar?
Segundo estudos, a resposta veio por meio de licenças precárias e pela institucionalização de associações de moradores como unidades de representação.
Um exemplo é o Decreto nº 1.668, de 8 de maio de 1963, que regulava o comércio em favelas. O texto reconhecia que lojas e serviços funcionavam “à revelia” das normas. Por isso, o Estado optava por não fiscalizar, temendo legitimar práticas irregulares – embora esses estabelecimentos atendessem a milhares de pessoas e competissem com o comércio formal sem pagar os mesmos impostos.
Esse quadro não é exclusivo do Brasil. No mundo inteiro, a informalidade não é um sinal de atraso ou um resquício de algum desenvolvimento inacabado, mas parte constitutiva da modernidade.
Ela não existe fora da regulação institucionalizada. Não é “extralegal” nem “paralegal”. Ao contrário: está no coração do Estado e constitui suas práticas territoriais.
Fronteiras maleáveis
Se a informalidade é parte do Estado, cabe a ele classificá-la, regulá-la e distribuí-la de forma seletiva e arbitrária. Como observaram os pesquisadores Rafael Gonçalves, Nicolas Bautès e Maria Maneiro, as fronteiras entre o formal e o informal são maleáveis e ligadas ao poder estatal e às disputas sociais que o atravessam.
Por isso, os espaços informais devem ser entendidos como efeito do Estado, como resultado de seu “fazer e refazer”. O planejamento urbano usa essa ambiguidade como uma ferramenta que lhe garante flexibilidade. Ao mesmo tempo que valoriza e regulariza certas formas de informalidade, marginaliza e criminaliza outras.
Nesse sentido, a urbanista indiana Ananya Roy, professora titular da Cátedra em Desigualdades e Democracia da Universidade da Califórnia, aponta que a informalidade urbana não é simples ausência de regras, mas um idioma da urbanização utilizado pelo Estado para governar a cidade. Trata-se de um verdadeiro modo de produção do espaço que permite ao Estado gerenciar – e não solucionar – as desigualdades.
A favela como exceção
A partir da década de 1930, a favela foi juridicamente integrada como exceção. Essa condição permitiu o funcionamento de mecanismos de controle específicos sobre territórios e moradores.
O resultado foi que parte significativa do Rio de Janeiro passou a ser considerada “cidade informal”. Isso decorreu de um complexo aparato normativo que tornou ilegal uma parcela inteira do tecido urbano.
Assim, estabeleceu-se um estatuto jurídico excepcional, que submeteu as favelas e seus habitantes a uma condição de “provisoriedade permanente”.
Essa incerteza jurídica é mantida como forma de governo, já que permite ao Estado atuar de forma específica sobre esses espaços. A favela, portanto, não é efeito indesejado de políticas insuficientes nem subproduto de um desenvolvimento incompleto, mas espaço historicamente construído para circunscrever um campo de governo.
O poder estatal deriva justamente de técnicas regulatórias que mantêm constante a negociabilidade dos direitos à terra, ao uso e ao reconhecimento formal da propriedade.
As ambiguidades e contradições normativas do Estado conferem flexibilidade às suas ações, frequentemente consideradas ao mesmo tempo legais e ilegais. Essa elasticidade permite configurar, de modo calculado, as fronteiras entre formalidade e informalidade.
Assim, o regime urbano se sustenta na instabilidade, precariedade, desigualdade e violência. A informalidade não é falha, ausência ou efeito colateral do desenvolvimento urbano. Também não está fora do planejamento, nem é mera consequência de sua falta.
Ela é, sim, elemento central do regime urbano nos países do Sul Global. Uma chave para compreender a responsabilidade estatal na produção e gestão das favelas.
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