07 Outubro 2025
"A circulação de bebidas destiladas falsificadas é um problema que mistura crime organizado, economia informal e risco sanitário grave, com vítimas que pagam com a saúde e, por vezes, a vida", escreve Frei Betto, escritor, autor do romance histórico “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.
Eis artigo.
Nas últimas semanas, o Brasil voltou a conviver com um problema antigo e mortal: a circulação de bebidas destiladas falsificadas que contêm metanol e outras substâncias tóxicas. Embora a prática de adulterar bebidas alcoólicas exista há décadas, o surto recente de intoxicações e apreensões coloca o tema em destaque e mostra que os riscos continuam altos para quem as consome.
A falsificação de bebidas no país não é novidade. Desde a produção artesanal não regulamentada até cópias de rótulos e envase em embalagens recuperadas, o fenômeno acompanha fatores como tributação, demanda por produtos baratos, atuação de quadrilhas e lacunas na fiscalização. Relatórios de setores produtivos e órgãos de controle sinalizam aumento das ocorrências nos últimos anos.
Nos casos mais graves, o que diferencia a falsificação “econômica” (venda de produto de baixa qualidade) da adulteração tóxica é o uso deliberado de substâncias perigosas, principalmente metanol, para elevar a graduação alcoólica de forma barata ou “corrigir” falhas de processo. Isso gera surtos de intoxicação e provoca mortes.
Os casos recentes no Brasil atingem sobretudo adultos jovens e pessoas que consomem bebidas em bares, festas ou compram garrafas de procedência duvidosa. As notificações estaduais somadas pelo Ministério da Saúde indicam dezenas de registros entre suspeitos e confirmados, com óbitos já associados à ingestão de bebida adulterada. Além do dano humano direto — mortes, perda parcial ou total da visão, lesões neurológicas e insuficiências orgânicas — há impacto social e econômico sobre famílias e o comércio formal.
As substâncias que aparecem nas bebidas falsificadas variam conforme o objetivo do fraudador. As mais perigosas e recorrentes são metanol (álcool metílico): altamente tóxico. Em vez de etanol (álcool de bebida), o metanol é usado por algumas quadrilhas para aumentar a "força" do produto barato. Sua ingestão causa náusea, dor abdominal, prejuízo visual irreversível e morte por depressão respiratória ou falência múltipla de órgãos. É a principal substância associada ao surto atual.
Outras substâncias são os solventes industriais, tóxicos, usados para baratear processos ou "corrigir" aromas, e a contaminação por metais pesados ou microrganismos que ocorre quando o envase é feito em condições insalubres ou recipientes reutilizados.
A vigilância sanitária (em níveis municipal, estadual e federal — com a Anvisa à frente da articulação nacional) tem várias frentes de atuação, como fiscalização e apreensão, inspeções em bares, adegas, distribuidoras e pontos de venda para recolher lotes suspeitos e coibir comércio irregular; análises laboratoriais, encaminhamento de amostras para laboratórios de referência que podem identificar metanol e outras contaminações; coordenação com saúde pública, informe de casos suspeitos, definição de protocolos clínicos e mobilização de antídotos.
Para desmantelar redes de produção e distribuição é preciso que as autoridades públicas ampliem a comunicação de risco e as orientações para profissionais de saúde, e promovam campanhas, para que estabelecimentos examinem seus fornecedores e os consumidores saibam reconhecer sinais de bebidas adulteradas.
Para o consumidor, a melhor prevenção é reduzir a exposição ao risco. Ou eliminá-lo, deixando de beber destilados. Caso insista no risco, adotar cuidados como preferir lojas e distribuidores autorizados; evitar garrafas “recuperadas” ou pontos de venda de procedência duvidosa; desconfiar do preço muito baixo; verificar lacres e rótulos: selo de segurança rompido, rótulo desalinhado, etiqueta borrada ou ausência de informações fiscais (CNPJ, lote, data) são sinais de alerta.
Muito cuidado em festas e bares! Evite aceitar bebidas cujo conteúdo foi transferido para outra garrafa e recuse bebida oferecida por terceiros. Ao sentir sintomas após a ingestão - vômitos, dor abdominal intensa, visão turva, cefaleia forte, hipotensão -, procure a emergência imediatamente e informe que ingeriu bebida alcoólica — o tratamento precoce faz diferença entre recuperação e sequelas irreversíveis. Leve a embalagem se possível. Nunca tome “remédio caseiro” ou aguardente para “desintoxicar”.
A circulação de bebidas destiladas falsificadas é um problema que mistura crime organizado, economia informal e risco sanitário grave, com vítimas que pagam com a saúde e, por vezes, a vida. A resposta exige atuação integrada da vigilância sanitária e dos serviços de saúde pública, polícia investigativa, controle das cadeias de comercialização. E, igualmente importante, intensa informação aos consumidores.
Enquanto as investigações prosseguem e medidas de contenção são ampliadas, o melhor é não beber enquanto houver dúvida sobre a procedência de bebida.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, virtual candidato ao Planalto, veio a público descartar a atuação do PCC na adulteração de bebidas. É estranho uma autoridade pública isentar de crime uma facção criminosa, antes de serem concluídas as investigações feitas em todo o país.
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