30 Setembro 2025
"Sua concepção da relação entre ciência e fé era bastante circunspecta, mapeando cuidadosamente seus respectivos domínios como caminhos de conhecimento", escreve James T. Keane, editor sênior da America, em artigo publicado por America e reproduzido por Settimana News, 29-09-2025.
Eis o artigo.
"O Big Bang, que hoje é considerado a origem do mundo, não contradiz a intervenção criativa divina, mas a exige. A evolução na natureza não entra em conflito com a noção de Criação, porque a evolução pressupõe a criação de seres que evoluem."
Quem disse isso? O Papa Francisco, em 2014 (veja aqui no site da Santa Sé). Se você se surpreende com o fato de o líder da maior denominação religiosa do mundo ser um defensor tão ferrenho de uma explicação materialista da origem do cosmos, talvez se interesse por dois outros fatos. A ideia do Big Bang foi concebida por um padre católico em 1927 — e quando o Papa Pio XII pareceu endossar suas teorias... o mesmo padre disse ao papa para parar.
O Reverendo Georges Lemaître era um padre belga, mas também físico teórico e matemático. Nascido em 1894, começou a estudar para o sacerdócio em 1911, mas alistou-se no exército belga em 1914, servindo na Primeira Guerra Mundial como oficial de artilharia. Foi ordenado sacerdote pela Arquidiocese de Malines-Bruxelas em 1923, obtendo o doutorado no processo. Como muitos outros padres-eruditos antes e depois dele, foi frequentemente confundido com um jesuíta, mas sempre permaneceu sacerdote diocesano e membro da "Fraternidade Sacerdotal dos Amigos de Jesus".
Professor de física na Universidade Católica de Louvain de 1927 até sua aposentadoria em 1964, Lemaître obteve seu segundo doutorado no MIT no mesmo ano. Durante esse período, manteve diálogo constante com outros físicos eminentes, incluindo Albert Einstein (com quem aparece na famosa foto), cujas equações para o universo foram um de seus primeiros objetos de pesquisa.
Entre 1927 e 1931, Lemaître desenvolveu e propôs sua “hipótese do átomo primordial”, o que hoje conhecemos como Big Bang (que foi inicialmente usado como um termo pejorativo): a ideia de que todo o universo se originou de um único átomo incrivelmente denso, cuja explosão bilhões de anos atrás — e contínua desintegração — formou toda a matéria do universo e a própria estrutura do espaço-tempo.
Como até então a maioria dos físicos — incluindo Einstein — considerava o universo um fenômeno estático, a ideia de Lemaître foi revolucionária, mas acabou ganhando reconhecimento da comunidade científica. Nos anos seguintes, seu trabalho também abordou o uso dos primeiros computadores para abordar as crescentes complexidades da física teórica.
O Padre Lemaître ficou surpreso quando o Papa Pio XII abordou o tema do Big Bang em um discurso de 1951 na Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano (onde Lemaître estava presente).
"Parece realmente que a ciência contemporânea, recuando repentinamente milhões de séculos, conseguiu dar testemunho daquele Fiat lux primordial, quando do nada um mar de luz e radiação irrompeu com matéria, enquanto as partículas dos elementos químicos se dividiram e se reuniram em milhões de galáxias", disse o Papa, acrescentando que a ciência "apontou para o seu início em um momento de cerca de 5 bilhões de anos atrás, confirmando com a concretude da evidência física a contingência do universo e a dedução bem fundamentada de que por volta dessa época o cosmos emergiu das mãos do Criador. Criação no tempo, portanto; e, portanto, um Criador; portanto, Deus!"

Albert Einstein e Georges Lemaître, juntos na Califórnia, em 1933 (Foto: Creative Commons)
"Espere um minuto", respondeu o Padre Lemaître, juntamente com outros. Por um lado, a abertura da Igreja Católica à ciência era quase inteiramente positiva; por outro, ele acreditava que o Papa tinha ido longe demais e lhe apontou isso. Por quê?
Tivemos a sorte de receber Guy Consolmagno, jesuíta e diretor cessante do Observatório do Vaticano, nos Estados Unidos. Perguntamos a ele por que Lemaître estava incomodado com as palavras do papa. Havia várias razões, mas a principal era que o Big Bang é uma hipótese, não um fato — e, como grande parte da ciência, seria revisado e talvez superado no futuro; portanto, não poderia ser equiparado a uma verdade eterna expressa poeticamente nas Escrituras. (O que, aliás, já aconteceu: os "cinco bilhões de anos atrás" de Pio XII agora correspondem a mais de 14 bilhões de anos.)
Além disso, teologia e ciência funcionam melhor como parceiras no diálogo na busca pela verdade; assim como não devem ser antagônicas, também não devem existir para justificar as afirmações uma da outra. Lemaître argumentou que um cientista católico deveria manter sua fé separada de seu trabalho científico, escrevendo certa vez: "Não porque sua fé possa lhe criar dificuldades, mas porque não tem nada diretamente em comum com seu trabalho científico. Em última análise, um cristão não age de maneira diferente de um não crente quando se trata de caminhar, correr ou nadar."
"Sua concepção da relação entre ciência e fé era bastante circunspecta, mapeando cuidadosamente seus respectivos domínios como caminhos de conhecimento", afirmou Karl van Bibber, então professor e chefe do Departamento de Engenharia Nuclear da Universidade da Califórnia, Berkeley, em 2016. "Para ele, a ciência era a metodologia para a compreensão do cosmos físico; a religião revelada ensinava verdades fundamentais para a salvação. Ele estava perfeitamente convencido de que as descobertas científicas não eram de forma alguma discordantes da revelação bíblica, e vice-versa, mas nenhuma delas deveria ultrapassar seus limites."
Pio XII parece ter aceitado as observações de Lemaître — embora isso não tenha impedido papas subsequentes, incluindo São João Paulo II e o próprio Papa Francisco, de dar crédito, se não o aval papal, à teoria do Big Bang.
Em 1959, Lemaître foi nomeado segundo presidente da Pontifícia Academia de Ciências. Aposentou-se do ensino em Louvain em 1964.
Na década de 1960, o Padre Lemaître conseguiu evitar outra intersecção difícil entre ciência e fé quando Paulo VI o convidou para integrar a Pontifícia Comissão de Contracepção. Sua saúde precária — e a sugestão de que matemáticos não deveriam se dedicar à teologia moral — o levaram a recusar a participação em um processo que culminou na encíclica Humanae Vitae, de 1968.
O Padre Lemaître faleceu em 1966, aos 71 anos. No 50º aniversário de sua morte, em 2016, a Pontifícia Academia das Ciências organizou uma "Sessão Especial sobre Cosmologia" para homenagear suas contribuições. O resumo da sessão observou que, três dias antes da morte de Lemaître, amigos lhe trouxeram a notícia da descoberta da radiação cósmica de fundo em micro-ondas. Se essas ondas fossem de fato radiação residual da origem do universo, isso teria fornecido um forte apoio à hipótese do Big Bang. "Je suis content", teria respondido Lemaître. "Maintenant on a la preuve" (Estou feliz. Agora temos a prova).
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