05 Setembro 2025
Pela primeira vez, uma Conferência do Clima terá como regra que alimentos venham da agroecologia. Cota de 30% beneficiará oito mil famílias. Iniciativa vai além do ineditismo e do cardápio: mostrar ao países que a agenda climática e alimentação caminham juntas.
O artigo é de Maurício Alcântara, antropólogo urbano, pesquisador e cofundador do Instituto Regenera, publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 04-09-2025.
Eis o artigo.
A forma como produzimos e consumimos alimentos está no centro da crise climática e social que o mundo atravessa. Durante décadas, esse vínculo foi tratado como secundário nos grandes fóruns internacionais: nos debates climáticos, discutiam-se principalmente combustíveis fósseis; no campo da alimentação, discutia-se como alimentar o máximo de pessoas, com pouca reflexão sobre a produção desses alimentos. A preparação da COP30, em Belém, aponta para uma mudança de paradigma: a comida deixa de ser detalhe operacional e passa a ser parte da própria agenda climática, e o clima passa a ser uma agenda prioritária na agenda da alimentação.
O ineditismo não está apenas no cardápio que será oferecido na COP, mas no que ele simboliza. Pela primeira vez, uma conferência da ONU sobre mudanças climáticas terá como regra que parte significativa dos alimentos (pelo menos 30%) servidos venha da agricultura familiar, da agroecologia e da produção de povos e comunidades tradicionais. É um gesto político inspirado na reconhecida tradição brasileira de inclusão destes produtores nas políticas públicas alimentares, e que reconhece esses sujeitos não apenas como fornecedores eventuais, mas como protagonistas de outro modelo possível de sociedade.
Um levantamento conduzido pelos institutos Regenera e Fronteiras do Desenvolvimento identificou pelo menos 80 grupos organizados e cerca de 8 mil famílias aptas a fornecer alimentos para o evento. Estima-se que essa compra injete R$3,3 milhões na economia local, o equivalente a quase 80% do orçamento anual do Programa Nacional de Alimentação Escolar destinado ao município de Belém. Mais do que números, trata-se de dignidade para famílias rurais, fortalecimento de práticas sustentáveis e valorização de saberes ancestrais.
O país, que busca conciliar crescimento econômico com responsabilidade ambiental, oferece por meio dessa medida uma oportunidade concreta de transformar a relação entre campo, cidade e clima. Ao vincular a alimentação da conferência a práticas de base comunitária, a COP30 explicita que o futuro da floresta e o futuro da mesa são indissociáveis.
No Brasil, 74% das emissões de gases de efeito estufa estão ligadas ao desmatamento e à agropecuária. Globalmente, esse percentual gira em torno de 30%. Esses números mostram que não há política climática eficaz sem enfrentar o modelo dominante de produção de alimentos. A insistência em monoculturas voltadas à exportação, em cadeias dependentes de agrotóxicos e em processos que degradam a biodiversidade é incompatível com qualquer cenário de justiça climática.
Ao priorizar alimentos agroecológicos, cultivados sem veneno e com base em práticas de preservação e nos saberes de povos e comunidades tradicionais, a COP30 inaugura uma experiência concreta de transição. A escolha de quem vai abastecer a conferência se converte em sinalização de outro projeto: menos centrado em commodities globais e mais enraizado em sistemas alimentares diversos, resilientes e culturalmente situados.
O gesto tem ainda outra dimensão. No Brasil, milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, enquanto extensas áreas são dedicadas à produção de grãos para exportação. Colocar a agricultura familiar no centro de um evento mundial é também afirmar que combater a fome e enfrentar a emergência climática fazem parte da mesma luta.
A coalizão “Na Mesa da COP30”, formada por dezenas de organizações da sociedade civil, apoiada por conselhos nacionais e organismos internacionais e coordenada pelos institutos Regenera e Comida do Amanhã, tem defendido que a conferência seja vitrine de outro modelo alimentar. Não se trata apenas de oferecer pratos saudáveis aos negociadores, mas de mostrar que soberania alimentar e justiça climática são inseparáveis.
O grande desafio está no pós-evento. Conferências são, por natureza, temporárias. O que fará diferença é transformar essa experiência em referência para políticas permanentes de compras públicas, cadeias logísticas solidárias e programas de segurança alimentar. A expectativa é que o abastecimento da COP30, orientado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira e pela valorização da cultura amazônica, sirva de inspiração para políticas que garantam o abastecimento de escolas, hospitais, centros de distribuição e restaurantes populares em todo o país.
Se esse movimento se consolidar, a conferência terá cumprido um papel histórico: não apenas reunir países para negociar metas climáticas, mas mostrar que a mesa pode ser espaço de política, de disputa de projetos e de futuro.
O que será servido em Belém não é um detalhe protocolar. É símbolo de um país que pode escolher entre manter um modelo que devasta para produzir ou apostar em práticas que preservam, distribuem e alimentam. A COP30 tem a chance de demonstrar que enfrentar a crise climática exige repensar a forma como cultivamos e partilhamos os alimentos. E que a luta pelo clima passa, inevitavelmente, pelo prato de cada um de nós.
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