Pandemia de Covid-19: o julgamento que Jair Bolsonaro não enfrentou

Foto: Jeso Carneiro | Flickr CC

05 Setembro 2025

Réu no STF, ex-presidente segue impune por crimes da pandemia graças a ‘blindagem’ de ex-procurador-geral da República.

A reportagem é de Rafael Oliveira, publicada por Agência Pública, 05-09-2025.

Foram 693.853 mortos. Esse era o número de vítimas fatais da pandemia de Covid-19 no Brasil em 31 de dezembro de 2022, último dia do governo de Jair Bolsonaro (PL). Se os planos golpistas do ex-presidente o levaram para o banco dos réus do Supremo Tribunal Federal (STF), o mesmo não pode se dizer de seu comportamento negacionista durante a maior tragédia sanitária do século.

Nenhum dos crimes pelos quais o ex-presidente é acusado no julgamento iniciado na última terça-feira, 2 de setembro, tem relação com as quase 700 mil mortes por Covid-19 que ocorreram ao longo de seu governo, e nenhuma das decisões adotadas pelo ex-mandatário na pandemia foi alvo de processo judicial, mesmo após especialistas e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) apontarem uma série de crimes.

Para quem foi diretamente impactado pela condução de Bolsonaro durante a emergência sanitária, o julgamento por tentativa de golpe não aplaca a frustração pela impunidade ainda vigente em relação ao negacionismo pandêmico, não somente do político de extrema direita, mas de seus aliados e de outros atores públicos e privados.

“O ex-presidente está sendo acusado agora de outras questões, mas ele tem uma responsabilidade direta e decisória na condução da pandemia. Eu acho de suma importância que aqueles que foram negligentes, que muitas vezes zombaram da população, sejam responsabilizados”, afirma Rosângela Silva, presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil), que destaca a permanência da inação do Estado brasileiro em relação às vítimas fatais e com sequelas, mesmo após a troca de governo.

Servidora pública da área de saúde, Silva foi infectada pelo vírus em 2020, mesmo ano em que perdeu o pai, em decorrência da doença.

Do início da pandemia até o final da gestão Bolsonaro, o Brasil registrou quase 3,3 mil mortes a cada um milhão de habitantes, a 16ª pior taxa do mundo entre países com mais de 1 milhão de habitantes, segundo a organização Our World in Data. Se o Brasil tivesse se mantido na média mundial, o número de mortos no país teria sido quase quatro vezes menor, com mais de 500 mil vidas poupadas.

“Houve uma estratégia sistemática e coordenada de disseminação da doença no Brasil”, afirma Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e pesquisadora do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, que ainda em 2021 traçou uma linha do tempo do comportamento do governo federal na pandemia.

“Se existisse uma investigação, tenho certeza que nós chegaríamos a centenas de pessoas envolvidas nessa estratégia federal de disseminação da Covid-19”, diz a pesquisadora, que ressalta a permanência do impacto na área saúde do comportamento negacionista do governo Bolsonaro, inclusive em relação às vacinas.

CPI pediu indiciamento de Bolsonaro e mais 77, mas PGR arquivou

A falta de responsabilização de Jair Bolsonaro e seus aliados não foi por falta de tentativa. A CPI da Covid-19, que durou entre março e outubro de 2021, justamente no auge da pandemia, imputou ao ex-presidente uma extensa lista de crimes. Epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, crimes contra a humanidade, violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

O relatório do senador Renan Calheiros (MDB/AL), com quase 1.300 páginas, implicou Bolsonaro e outras 77 pessoas, além de duas empresas. A lista inclui os ex-ministros da Saúde Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga e servidores do alto escalão da pasta, além de outros ministros, parlamentares, médicos, empresários e jornalistas bolsonaristas.

O material foi entregue no final de outubro de 2021 ao chefe da Procuradoria-Geral da República (PGR), à época, Antônio Augusto Brandão de Aras. Parte dos apontamentos foi encaminhada para o Ministério Público Federal (MPF) nos estados e outra parte resultou em 10 petições apresentadas ao STF, envolvendo 35 dos implicados pela CPI, a maioria deles com foro privilegiado.

Augusto Aras, no entanto, afirmou que a CPI não havia entregado provas e as petições foram ignoradas. A vice-procuradora-geral naquele momento, Lindôra Araújo, requereu o arquivamento de nove das petições, alegando “ausência de justa causa para a deflagração de ação penal”. A outra petição segue sob sigilo no STF. Também não ocorreram condenações nas ações movidas nos estados.

Parte dos delitos apontados pela CPI contra Bolsonaro se enquadra como crimes contra a humanidade, e a própria PGR apontou que seria da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, corte sediada em Haia, nos Países Baixos. Outras dez pessoas também foram implicadas pela CPI por crimes contra a humanidade, incluindo ex-ministros bolsonaristas e médicos da Prevent Senior. Houve denúncia ao órgão apenas em relação a Bolsonaro, mas o caso não avançou.

Outras ações apresentadas perante o STF contra agentes com foro privilegiado também não resultaram em processo judicial. Segundo um estudo do Cepedisa/USP, com dados de dezembro de 2023, das 58 petições do universo amostral, a PGR havia requerido arquivamento em 46. Ninguém foi condenado por nenhuma delas.

Para Calheiros, relator da Comissão, “as conclusões foram alicerçadas em provas irrefutáveis, que reuniram, nada mais, nada menos, que 9,4 terabytes de documentos”, mas Aras agiu para blindar Bolsonaro. “Tínhamos, à época, um procurador que é um prevaricador e sabotou o relatório final da CPI de olho em uma vaga do STF que nunca veio. A promiscuidade de Aras com o governo anterior era tanta que o delator Mauro Cid informou que ele tinha agendas secretas com o ex-presidente e passava dados sigilosos aos investigados”, afirma o senador alagoano.

Em março do ano passado, ele e outros senadores que participaram da CPI solicitaram ao atual procurador-geral da República, Paulo Gonet, o desarquivamento dos pedidos de indiciamento contra o ex-presidente Bolsonaro e outros agentes públicos e privados que foram implicados pelo relatório. “Nenhum crime contra a humanidade prescreve e, a todo momento, surgem fatos novos que podem reabrir as investigações e eliminar este cenário de impunidade”, diz o senador.

Até o momento, no entanto, não houve movimentação da PGR para desarquivar as petições. A Agência Pública questionou o órgão sobre o assunto, mas não houve resposta até a publicação.

O ex-procurador-geral da República também foi procurado pela reportagem por e-mail, mas não respondeu ao contato.

Para Deisy Ventura, do Cepedisa/USP, é difícil compreender “que não tenha havido a investigação desses crimes”. “Do ponto de vista técnico – não vou nem entrar na questão política –, os pedidos de arquivamento são absolutamente falhos, não se filiam às teses majoritárias do direito penal, não levam em consideração a legislação sanitária. Se prevalecer a técnica, a atual PGR vai tomar providência”, afirma.

Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS), ligados aos ministérios de Direitos Humanos e da Saúde, respectivamente, apresentaram à PGR uma nova representação criminal sobre o tema, ressaltando não haver nenhuma iniciativa de responsabilização criminal pelos crimes cometidos durante a pandemia em andamento na PGR.

“O número exorbitante de casos e óbitos por Covid-19 notificados, sem contar aqueles que não o foram, é notoriamente o resultado da política sanitária adotada pelo governo do ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro, que se posicionou na contramão das orientações da comunidade científica [e] da OMS [Organização Mundial da Saúde]”, afirma a peça.

A representação demanda que o órgão denuncie Bolsonaro, seu ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto (atualmente preso por conta da tentativa de golpe) e os ex-ministros da Saúde Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello.

Segundo a assessoria de imprensa do CNS, a representação está em segredo de Justiça e não há informações sobre avanços. A Pública também questionou a PGR sobre a representação, mas não obteve resposta até a publicação.

De gripezinha a antivacina

“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.

A frase dita por Jair Bolsonaro em pronunciamento transmitido em rede nacional, em 24 de março de 2020, minimizando os riscos da Covid-19, foi apenas uma entre as muitas manifestações negacionistas do então presidente. Ele também acumulou declarações “polêmicas”, chegando a afirmar que ‘não era coveiro’ e que o Brasil era ‘um país de maricas’.

Quando os casos e as mortes em decorrência da doença começaram a se acumular e as orientações de especialistas passaram a se centrar no isolamento social e no uso de máscara, Bolsonaro dobrou a aposta, se posicionou contra as medidas e defendeu que “a economia não pode parar”.

“Tivemos a propagação da ideia de imunidade de rebanho, como se a Covid-19 fosse uma doença muito branda, que não mataria pessoas e, por isso, elas poderiam se imunizar se expondo ao vírus – e quando se falava em imunidade de rebanho já se tinha evidência suficiente para saber que poderíamos ter reinfecções”, relembra Letícia Sarturi, pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Estudos SoU_Ciência, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Além de criticar o isolamento social e praticamente todas as medidas de contenção preconizadas por especialistas, Bolsonaro e seu grupo político apostaram no “tratamento precoce”, um kit de medicamentos sem eficácia comprovada, que incluía cloroquina, ivermectina e azitromicina. Movimentos como o “Médicos pela Vida” e outros atores políticos, posteriormente implicados pela CPI da Covid, também se engajaram na defesa do “kit covid”.

Quando o desenvolvimento de vacinas se consolidou, o ex-presidente se aliou a movimentos antivacina, atrasando a compra e, depois, desincentivando a aplicação. Bolsonaro chegou a associar o uso da vacina à Aids e a “virar jacaré”. 

O vasto material negacionista produzido por Jair Bolsonaro e seus aliados está reunido no Acervo da Pandemia de Covid-19, uma iniciativa do SoU_Ciência/Unifesp em parceria com a Avico Brasil, o Cepedisa/USP e os grupos de mídia independentes Medo e Delírio em Brasília e Camarote da República.

“O Acervo cumpre o papel de preservar a memória. Mas o mais importante é que haja responsabilização, porque só assim vamos conseguir prevenir que, em novas pandemias, o Estado ou agentes privados abusem do seu poder para criar uma estrutura de desinformação que acaba gerando a morte das pessoas, como a gente viu na pandemia de Covid-19”, afirma Sarturi.

Principais personagens do negacionismo passaram ilesos

Jair Bolsonaro não é a única figura que escapou de qualquer responsabilização pelas ilegalidades cometidas durante a pandemia. Vários dos implicados pela CPI não só saíram ilesos, como ingressaram na carreira política ou fortaleceram seu capital político.

O ex-ministro da Saúde, general da reserva Ricardo Pazuello se safou de encarar o Judiciário por sua atuação durante a pandemia, e se tornou o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro em 2022. Concorrendo pelo PL de Bolsonaro, foi eleito com mais de 117 mil votos.

Na oposição do governo Lula, Pazuello fez poucos discursos no plenário da Câmara (nenhum em 2025) e aprovou somente um projeto, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada em conjunto por deputados da situação e da oposição, que permite destinar emendas para catástrofes e emergências naturais. Boa parte de suas emendas não impositivas e proposições legislativas são relacionadas às Forças Armadas e à Segurança Pública.

A presença de Pazuello na Câmara passaria quase despercebida se até março do ano passado, seu gabinete não abrigasse um outro general da reserva, esse sim prestes a enfrentar a Justiça. Trata-se do ex-assessor de Bolsonaro e integrante dos “kids pretos” Mário Fernandes, que admitiu ter arquitetado plano para matar Lula (PT), o seu vice Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro do STF Alexandre de Moraes. Preso preventivamente, ele é parte do “núcleo 2” da trama golpista que está sendo julgada pelo STF. Até a investigação da tentativa de golpe vir à tona, Fernandes ocupava “cargo de natureza especial” no gabinete.

Outro ministro da Saúde de Bolsonaro também escapou de responsabilização por sua conduta na pandemia e tentou alçar voos políticos, mas obteve menos sucesso. Marcelo Queiroga se candidatou a prefeito de João Pessoa (PB) no ano passado, mas acabou derrotado no segundo turno. Pré-candidato a senador na Paraíba, ele é presidente estadual do PL.

Wilson Lima (União), governador do Amazonas durante a crise em Manaus, quando pessoas morreram por falta de oxigênio, chegou a ser denunciado, mas uma das ações foi rejeitada, enquanto a outra ainda aguarda julgamento de mérito, quatro anos depois do caso. Lima foi reeleito com mais de 56,6% dos votos no segundo turno.

Uma ação civil pública movida pelo MPF no Amazonas, por outro lado, conseguiu decisão parcialmente favorável. Em junho, a Justiça Federal determinou que a União, o estado do Amazonas e a prefeitura de Manaus investiguem as violações de direitos humanos ocorridas durante a crise e garantam, entre outras medidas, atenção médica e psicológica para as vítimas. O pedido de indenização de R$ 4 bilhões ainda aguarda julgamento.

Também buscaram carreira política as médicas Nise Yamaguchi, que fazia parte do “gabinete paralelo” que assessorava o governo Bolsonaro durante a pandemia, e Mayra Pinheiro (a “capitã Cloroquina”), que teve cargo no Ministério da Saúde e era uma das mentes por trás do TrateCov, aplicativo que o governo desenvolveu para estimular o uso do “tratamento precoce”. Ambas foram implicadas pela CPI.

Yamaguchi tentou se eleger deputada federal por São Paulo em 2022 pelo PROS e vereadora pelo União Brasil em 2024, mas não conseguiu se eleger.

Pinheiro, que havia tentado ser deputada federal e senadora no Ceará pelo PSDB em 2014 e 2018, buscou uma cadeira na Câmara dos Deputados pelo PL em 2022. Recebeu mais de 71 mil votos e ficou com uma suplência, chegando a assumir o cargo por quatro meses, durante a licença do bolsonarista André Fernandes (PL).

Um dos mais destacados membros do “gabinete paralelo” e disseminadores de desinformação durante a pandemia, o deputado federal gaúcho Osmar Terra (PL) não apenas escapou de qualquer responsabilização como também conseguiu a reeleição para seu sexto mandato na Câmara, com mais de 103 mil votos.

Outro deputado federal implicado pela CPI, Ricardo Barros (PP/PR) saiu ileso e conseguiu a reeleição para a Câmara, com 107 mil votos. Barros foi citado no caso da vacina indiana Covaxin, alvo da CPI por conta de denúncias sobre pressões para liberar a transação, que não se efetivou.

“Kit-covid” e fraudes só geraram punições na esfera cível

Se Barros escapou de responsabilização, a empresa e alguns dos envolvidos na negociação de 20 milhões de doses da vacina indiana receberam punições cíveis ou administrativas.

A Precisa Medicamentos foi multada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em R$ 3,8 milhões por fraude (depois reduzida para R$ 2,5 milhões). Dois servidores da alta gestão do Ministério da Saúde envolvidos no caso, Antônio Élcio e Roberto Ferreira Dias, foram destituídos de seus cargos pela CGU, mas escaparam de responsabilização criminal.

Os 11 empresários e médicos ligados ao plano de saúde Prevent Senior também não sofreram condenações até o momento. Segundo um dossiê, o plano teria forçado profissionais de saúde a utilizar o “kit covid” e feito testes sem autorização. A Prevent também foi alvo de CPI na cidade de São Paulo e de denúncia do MPF-SP, mas os processos não avançaram.

Não foram processados criminalmente os médicos e cientistas implicados pela CPI da Covid como disseminadores do “tratamento precoce”. A lista inclui o virologista Paolo Zanotto, o anestesista Luciano Dias Azevedo e o oftalmologista Antônio Jordão, do “Médicos pela Vida”. O movimento pró-”kit covid” coordenado por Jordão, porém, foi condenado em primeira instância a pagar indenização de R$ 55 milhões por danos coletivos.

O presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) à época da pandemia, Mauro Ribeiro, implicado pela CPI por conta da postura do órgão na pandemia, não foi levado à Justiça e se elegeu novamente para a diretoria do CFM, desta vez como tesoureiro.

O relatório da CPI também cita o nome de outro médico, Anthony Wong, como um dos membros do “gabinete paralelo”. Wong, no entanto, não foi implicado pela CPI oficialmente porque morreu em janeiro de 2021. A causa da morte, ocultada por meses, até ser revelada pela revista piauí, foi Covid-19.

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