"É isso que eu escreveria aos Estados Unidos de Trump: é o massacre dos pobres." Entrevista com Margaret Atwood

Foto: Daniel Torok/The White House | Flickr

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29 Agosto 2025

É impossível observar um protesto contra Trump sem notar pelo menos uma dúzia de tocas brancas, ao estilo peregrinos puritanos, ou, para quem leu o livro ou assistiu à série, ao estilo "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.

A reportagem é de Elena Molinari, publicada por Avvenire, 27-08-2025.

Por meio de descrições de futuros distópicos, há 40 anos as obras da autora canadense têm suscitado debates sobre justiça social, direitos das mulheres e meio ambiente. Desde 2016, e ainda mais este ano, também se tornaram um símbolo de resistência à visão de sociedade promovida por Donald Trump, com cidadãos de primeira e segunda classe. Não é por acaso que "O Conto da Aia" foi proibido por muitos conselhos escolares no Texas, Flórida, Oregon e Utah. Atwood, de 85 anos, em sua Ontário natal, para apoiar a feira do livro de Kingston, que ajudou a lançar em 2009, considera isso uma honra.

Livro "O Conto da Aia", de Margaret Atwood

Eis a entrevista.

O que há de tão controverso em seu livro?

Acho que há pessoas, muitas das quais se dizem cristãs, mas não são verdadeiramente cristãs, que não gostam de ver suas opiniões e desejos refletidos em um livro.

Se fosse escrever um livro sobre o que acontecerá nos Estados Unidos nos próximos anos, o que escreveria?

Acho que escreveria que assistiremos a um "genocídio" dos pobres. Já começou.

De que forma?

É uma extremização da visão instrumental da sociedade capitalista que remonta a Henry Ford. O magnata entendeu que não podia automatizar suas fábricas porque, do contrário, não haveria operários suficientes para poder comprar seus carros. Hoje, porém, os EUA dos privilegiados decidiram que não precisam mais de mão de obra de baixo custo. Então, o que fazem? Cortam os serviços sociais e de saúde e a previdência, e muitas dessas pessoas morrerão. É uma decisão bastante consciente.

O chefe do Pentágono, Hegseth, promoveu um vídeo no qual alguns pastores evangélicos argumentam que as mulheres deveriam perder o direito de voto nos Estados Unidos. Os Estados Unidos estão se encaminhando para uma sociedade de República de Gilead, como em "O Conto da Aia"?

Este governo parece estar empenhado em um experimento social darwinista muito distorcido. Veja o que Robert Kennedy (atual Secretário de Saúde e Serviços Sociais) está fazendo: vamos acabar com a saúde pública, vamos tirar as vacinas. Os mais fortes, privilegiados e saudáveis ​​sobreviverão, e os outros, azar deles: significa que não eram aptos. O paradoxo é que, para algumas mulheres pobres estadunidenses, as três refeições diárias e os cuidados médicos garantidos por Gilead seriam melhores do que o que elas têm agora.

Nem todos os estadunidenses concordam com essa visão...

É por isso que odiar todos os estadunidenses é estúpido. E observar os Estados Unidos de fora pode levar a isso, e é errado, porque metade deles discorda de Trump e muitos dos que votaram nele se arrependeram. Pode-se detestar este governo sem dizer que todos os estadunidenses são horríveis.

Como canadense, tem medo da retórica do Canadá ser o "51º estado estadunidense"?

É um filme que já vimos antes: no tempo da Revolução Americana, houve tentativas de conquista de Quebec, com a ideia de que a região devia se unir aos Estados Unidos. Não acredito que Estados Unidos nos atacarão, mas arruinarão nossa economia, porque nos tornamos demasiado dependentes deles.

Acredita que as instituições liberais e democráticas dos Estados Unidos estão em risco?

Toda instituição passa por um ciclo: há seus fundadores que dão tudo por ela, os herdeiros que consideram um dever mantê-la, mas não são tão apaixonados, até chegar à geração que a toma como garantida, e é aí que as coisas começam a decair.

Como é possível que os estadunidenses estivessem preparados para as decisões extremas de Trump? Ele nunca escondeu suas intenções...

Nada te prepara para um momento como esse. Em momentos de crise e mudanças extremas, nunca estamos realmente preparados, porque muito do que acontece, olhando nos detalhes, é imprevisível. Mas isso não significa que possamos ignorar os problemas mais amplos que estão claramente surgindo no horizonte. Seria ingênuo.

Um exemplo concreto?

Um exemplo é o fornecimento de eletricidade. Se houver cada vez mais inteligência artificial e automação, precisaremos de um número enorme de servidores: mas o que os alimentará? O outro é a imigração, que não vai parar.

Teme um contágio das políticas de Trump em relação aos imigrantes e aos pobres em outros países ocidentais, como o Canadá?

O que protege outros países são seus cidadãos e sua cultura. Pelo menos no Canadá, somos muito diferentes dos estadunidenses e não elegeremos pessoas que acreditam em coisas semelhantes.

Que diferença entre outras democracias liberais e os Estados Unidos lhes permitirá, daqui a dez anos, dizer: aquele foi um período decisivo para nós?

Somos diferentes. Nenhum outro país é como os Estados Unidos. Mas devemos repensar todo o projeto de democracia liberal, à luz do que não queremos que aconteça. Não serve um neonacionalismo antiamericano para proteger as instituições liberais. Nem serve construir novas, mas rejuvenescer aquelas que temos e redescobrir um pouco da confiança nelas, especialmente à luz da polarização política e religiosa que estamos vivendo. Aumentou de modo alarmante na última década. Hoje, o mundo me parece mais semelhante às décadas de 1930 e 1940 do que em qualquer outro momento dos últimos 80 anos.

É otimista ou pessimista, considerando a situação do mundo?

Sou sempre otimista. É preciso ser para ser escritor. Também porque tive sorte: ao contrário de muitos escritores ou editores, tanto no passado quanto hoje, nunca fui presa pelo que escrevi. Talvez eu teria que reconsiderar essa afirmação se tentasse cruzar a fronteira para os Estados Unidos num futuro próximo.

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