27 Agosto 2025
- Após o desaparecimento do que eles consideravam uma "barragem" — o Papa Francisco — esses grupos tradicionalistas e ultradireitistas lançaram uma ofensiva para domesticar a religião e usá-la para servir à sua causa.
- Em contraste com a paz desarmada e desarmante de Leão XIV, ou com a insurgência profética de Francisco, eles propõem a ortodoxia do medo, o recolhimento da Igreja em si mesma e a "pureza" doutrinária explorada para seus próprios fins políticos.
- É urgente reafirmar a centralidade do Vaticano II, sua irreversibilidade e redobrar o compromisso evangélico com a abertura, o diálogo, a misericórdia e a defesa dos descartados.
- Leão XIV tem a tarefa de manter viva a chama da primavera conciliar, lembrando que a fé não é um bastião para defender privilégios, mas um dom a ser compartilhado com o mundo.
O artigo é de José Manuel Vidal, publicado por Religión Digital, 26-08-2025.
José Manuel Vidal é doutor em Ciências da Informação e licenciado em Sociologia e Teologia e diretor do Religión Digital.
Eis o artigo.
Os ventos da extrema-direita rigorista estão novamente soprando na Igreja Católica. Após a queda do que consideravam uma "barragem" — o Papa Francisco —, esses grupos tradicionalistas e extremistas, agora crescidos e desinibidos, lançaram uma ofensiva aberta para domesticar a religião e colocá-la a serviço de sua causa. Por isso, artigos e reportagens de seus principais teólogos contra o Vaticano II proliferam em suas mídias afiliadas.
Seu primeiro objetivo: ideologizar a fé e institucionalizar uma agenda política sob o disfarce da ortodoxia católica. O segundo: a tentativa sem precedentes de desacreditar e subestimar até mesmo o Concílio Vaticano II, aquele grande evento eclesial que conseguiu abrir as portas da Igreja, atualizá-la e colocá-la em diálogo com o mundo e a modernidade.
O que os defensores dessa apropriação estão fazendo e o que eles estão buscando?
Acima de tudo, eles querem uma Igreja forte como máquina de identidade e luta cultural. Não estão interessados no Evangelho como caminho de misericórdia, fraternidade e acolhimento, mas sim como bandeira de confronto civilizacional, arraigados na defesa de um "cristianismo" fechado e excludente. Sentem-se incomodados com uma Igreja em saída, que se abre, escuta, dialoga e acolhe os diferentes, os imigrantes, os pobres e os vulneráveis.
Em contraste com a paz desarmada e desarmante de Leão XIV, ou com a insurgência profética de Francisco, eles propõem a ortodoxia do medo, a retirada da Igreja sobre si mesma e a “pureza” doutrinária instrumentalizada para seus próprios fins políticos.
Para esses grupos (que Francisco chamou de "rigoristas"), a fé é um instrumento estratégico, não um encontro com o Deus vivo. Eles despojam o catolicismo de suas raízes evangélicas para transformá-lo em uma plataforma de identidade e um escudo político. Assim, constroem alianças internacionais e campanhas financeiras, espalham farsas e sonham em transformar a Igreja em uma fortaleza ideológica, esquecendo a universalidade e a compaixão do Concílio e do Evangelho.
Um retorno à Igreja pré-conciliar, apegada ao poder e casada com o sistema. Ou pior, a conversão da Igreja em uma seita, que apresenta a obediência cega como "vontade de Deus" e anula a liberdade e a primazia da consciência.
Táticas da extrema-direita eclesiástica
A extrema-direita eclesiástica emprega táticas precisas para avançar com seu projeto:
1. Reescrevendo a narrativa da Igreja: apresentam o Concílio Vaticano II como uma ruptura com a tradição, acusando-o de diluir a identidade católica. Ignoram o fato de que o Concílio não foi uma revolução, mas sim uma renovação em continuidade com a Tradição, e o caricaturam como a fonte de todos os males da Igreja moderna.
Eles contrastam a chamada "hermenêutica da continuidade" (de Bento XVI) com a "hermenêutica da ruptura", mas reinterpretam o Concílio de forma restritiva, negando ou relativizando qualquer desenvolvimento teológico, pastoral ou litúrgico que não se encaixe em sua visão pré-conciliar. Promovem a Missa Tridentina como um bastião da identidade e rejeitam, por exemplo, a participação laical ou o protagonismo da consciência.
2. Controle de posições de poder: buscam influenciar seminários, universidades católicas e a mídia eclesiástica para capacitar o clero e os fiéis em sua visão rigorista. A partir dessas posições, disseminam uma teologia que exalta a autoridade e minimiza a colegialidade e o papel dos leigos.
3. Uso de mídias sociais e mídias relacionadas: eles utilizam plataformas digitais e mídias ultraconservadoras para amplificar sua mensagem, atacar aqueles que defendem o espírito do Conselho e gerar polarização. Sua retórica carregada de emoção apela ao medo e à nostalgia.
4. Ataques ao Papa e ao Magistério recente: eles questionaram abertamente o Papa Francisco e fazem o mesmo, um pouco mais sutilmente, com a autoridade do Papa Leão XIV, apresentando-o como um seguidor "fraco" de Francisco, enquanto elogiam figuras históricas que se encaixam em sua visão, como Pio XII ou João Paulo II (interpretado seletivamente).
5. Reivindicação da liturgia tradicional: eles promovem a missa em latim e o rito tridentino como um símbolo de resistência contra a "mundanidade" da Igreja, usando a liturgia como uma bandeira ideológica.
O que a extrema-direita ganha ao se apropriar da linguagem religiosa?
A extrema-direita eclesiástica obtém inúmeras vantagens ao se apropriar da linguagem religiosa dentro e fora da Igreja:
1. Legitimidade moral e autoridade social
Ao inverter palavras, símbolos e argumentos religiosos — tradição, família, cruzada, pureza, "cristianismo" etc. — a extrema-direita assume uma autoridade moral difícil de contestar em comunidades profundamente católicas. Apresentar suas posições como "a verdadeira fé" confere peso e legitimidade, descartando qualquer posição divergente como heresia. É por isso que acusam de heresia qualquer pessoa que tenha uma opinião diferente e distribuem cartões de membro católico.
2. Mobilização e identidade de grupo
A linguagem religiosa reforça o senso de pertencimento e missão, estabelece limites claros ("nós, os fiéis, eles, os infiéis, os mornos ou os hereges") e mobiliza emoções coletivas por meio de apelos ao sagrado, à pátria e ao sacrifício. Dessa forma, transformam sua causa política em uma "batalha espiritual" e convocam a mobilização como um dever religioso, não apenas cívico.
3. Controle da narrativa e silenciamento dos críticos
Ao se apropriar do vocabulário católico, a extrema-direita pode rotular aqueles que se opõem a ela como "progressistas", "relativistas" ou "inimigos da fé", deslegitimando qualquer crítica sob suspeita de heterodoxia ou traição ao Evangelho. Eles controlam o acesso e a interpretação legítima do discurso católico, posicionando-se como o martelo dos hereges e rotulando vozes distintas ou minoritárias como tal. Fazem isso diariamente por meio da Infovaticana e da Infocatólica.
4. Influência política e alianças estratégicas
A linguagem religiosa, uma vez instrumentalizada, torna-se uma ponte para as esferas políticas: ela permite que a extrema-direita articule sua ideologia como uma defesa de valores "não negociáveis", conquiste votos em círculos conservadores e influencie a agenda pública (leis sobre imigração, família, educação) com um argumento moralista em seu cerne.
5. Redução da complexidade e polarização
Falar sobre religião em termos absolutos e apocalípticos simplifica o debate e polariza: divide o mundo em “bom” e “mau”, omite nuanças éticas ou pastorais e cria uma narrativa de “cristianismo sob ameaça” que é emocionalmente mobilizadora e fecha a porta para a autocrítica genuína ou qualquer diálogo verdadeiro.
Em suma, a extrema-direita ganha poder simbólico, capacidade de mobilização, controle de narrativas e influência política ao se apropriar da linguagem religiosa, mas ao preço de manipular a mensagem do Evangelho e reduzir a riqueza da fé a uma ferramenta de identidade e combate, em detrimento de sua universalidade, misericórdia e abertura ao diálogo.
O que a Igreja e o Papa Leão XIV podem — e devem — fazer para impedir essa ofensiva para desnaturalizar o catolicismo?
Em primeiro lugar, devemos deixar claro — sem ambiguidade — que a fé não pode ser instrumentalizada, que a Igreja não é e não será apêndice de nenhum partido ou laboratório de ideologias. É urgente reafirmar a centralidade do Vaticano II, sua irreversibilidade, e redobrar o compromisso evangélico com a abertura, o diálogo, a misericórdia e a defesa dos descartados.
Leão XIV, com seu estilo sóbrio e equilibrado, tem a tarefa de salvaguardar o legado conciliar contra as tentações restauracionistas e lembrar a todos que o que é verdadeiramente católico não é o retorno às trincheiras, mas sim a universalidade, a escuta e a caridade desarmada. Ele deve fortalecer os espaços de diálogo, os processos sinodais e a corresponsabilidade eclesial para que a primavera conciliar continue a florescer, confrontando o clericalismo e a tentação de uma Igreja autorreferencial.
Porque se a fé for privatizada e se tornar ideologia e bandeira de exclusão, ela deixa de ser Boa Nova e renuncia à sua missão profética. O Espírito, como nos tempos de João XXIII e Francisco, sopra sempre onde quer e não se deixa domar pelo medo ou pela nostalgia. É hora de defender a liberdade, a universalidade e a compaixão que fizeram do Vaticano II a maior esperança da Igreja contemporânea.
Mais especificamente, diante dessa tentativa rigorista de desnaturar a fé, a Igreja e o Papa Leão XIV enfrentam um grande desafio: defender o espírito do Concílio e manter viva a primavera eclesial que Francisco consolidou. Algumas estratégias para deter esse ataque poderiam incluir:
1. Fortalecer a sinodalidade: a colegialidade e a participação dos leigos, promovidas pelo Concílio, são antídotos ao autoritarismo. Leão XIV deve promover processos sinodais que deem voz às periferias e fortaleçam a comunhão eclesial.
2. Renovar a formação teológica: é crucial formar sacerdotes e leigos numa teologia fiel ao Concílio, combinando profundidade doutrinal com abertura ao mundo. Isso implica retomar o estudo dos documentos conciliares nos seminários e universidades.
3. Comunicar com ousadia: a Igreja deve combater a narrativa ultraconservadora com uma mensagem clara e esperançosa, usando a mídia digital para alcançar os fiéis e desmascarar as falsidades sobre o Concílio.
4. Promover o diálogo: Leão XIV pode dar continuidade ao legado de Francisco, dialogando com as sensibilidades tradicionalistas, mas sem comprometer os princípios conciliares. Isso significa ouvir suas preocupações e, ao mesmo tempo, reafirmar a autoridade do Magistério.
5. Defender a centralidade do Evangelho: a fé não pode ser reduzida a uma ideologia. O Papa deve insistir que o coração da Igreja é Cristo, não uma agenda política, e que a misericórdia e a justiça social são inseparáveis da mensagem cristã.
Um desafio do presente e do futuro
A extrema-direita eclesiástica, com sua tentativa de domesticar a fé, ameaça não apenas o legado do Concílio Vaticano II, mas também a própria essência do Evangelho. Seu projeto, longe de fortalecer a Igreja, a confina a uma visão excludente que aliena os fiéis e contradiz a universalidade da mensagem cristã.
O Papa Leão XIV, como pastor de uma Igreja em caminho, tem a tarefa de manter viva a chama da primavera conciliar, lembrando que a fé não é um bastião para defender privilégios, mas um dom a compartilhar com o mundo.
A Igreja, fiel à sua missão, deve permanecer um farol de esperança, não uma fortaleza de exclusão. Porque, como disse João XXIII: "Não somos guardiões de um museu, mas jardineiros de um jardim".
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