05 Agosto 2025
"Combustível político dos nossos dias, nada resolve ou cura, mas anestesia; diante do mal-estar, sempre haverá quem se sirva dele para catapultar-se."
O artigo é de Mafalda Anjos, publicado por Folha de S. Paulo, 03-08-2025.
Mafalda Anjos é uma jornalista portuguesa, analista política na CNN Portugal e autora do livro Carta a um Jovem Decente (Contraponto).
Quando Machado de Assis inventou, para o livro "Quincas Borba", o "Humanitismo" como paródia filosófica, deu-lhe uma máxima lapidar: "Ao vencedor, as batatas!". Nada mais justo nem mais cruel, como lhe acrescentou, a tirada encerra uma certa noção de ressentimento que acompanha a humanidade.
O ressentimento está no meio de nós: é o combustível político dos nossos dias e uma das matérias-primas favoritas dos políticos populistas. Emoção poderosa que mistura decepção, amargura, raiva e uma certa percepção de injustiça, tem enormes impactos psicológicos, sociais e políticos.
Um sentimento provavelmente tão velho como o homem organizado em sociedade. A "arqueologia" da psicologia social ajuda a explicar a sua origem. A espécie humana existe na Terra há mais de 200 mil anos, e as reações a estímulos ajudaram o homem a sobreviver e a prevalecer como espécie. E, por isso, algumas emoções foram sendo afinadas e passadas de geração em geração, como incentivo evolutivo em relação a coisas que nos beneficiam —sobretudo como forma de proteção contra algo que nos faz mal. É o caso das injustiças, que geram mal-estar numa sociedade.
Friedrich Nietzsche, contemporâneo do genial Machado de Assis, foi o primeiro filósofo a analisar o "ressentiment" e a inscrevê-lo na história do pensamento ocidental. "O ressentimento a ninguém é mais prejudicial que ao próprio ressentido", concluiu em Ecce Homo. O filósofo acreditava que o ressentimento era uma característica de rebanho —uma força social que passava pela revolta, sede de vingança e intenção de domínio e preponderância em relação ao que era distinto ou superior.
Na verdade, ao longo dos tempos, essa emoção foi sempre um carburante de movimentos sociais disruptivos e de lutas políticas aguerridas. A velha ideia de luta de classes com que Karl Marx revolucionou a filosofia política está carregada de ressentimento —que alimenta o conflito, força motriz da história.
A reivindicação de dignidade por parte de grupos que se sentem ressentidos determinou, ao longo dos tempos, revoluções, mudanças, conquistas de direitos e avanços civilizacionais. Foi essa exigência que impulsionou movimentos tão distintos como independentistas, abolicionistas da escravatura, sufragistas, lutadores antirracismo, feministas, sindicalistas, resistência indígena, defensores da classe operária ou LGBTQIA+. Em comum, seja à esquerda ou à direita, esteve a mesma sensação de injustiça em relação a algo ou alguém.
Nos últimos anos, o ressentimento foi posto ao lume no caldeirão do caos que são as redes sociais. Com os algoritmos das plataformas a amplificar percepções, falsas narrativas e conteúdos emocionais, são a revolta, a indignação e a raiva que ganham mais tração. Através da lente do Facebook, X ou YouTube, o mundo parece ainda mais feio e injusto —propício a dolorosos ressentimentos.
Líderes populistas da direita radical, como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Marine Le Pen ou André Ventura, em Portugal, viram nele um filão carregado de potencial para angariar eleitores. Se algum tipo de mal-estar abunda numa sociedade, haverá sempre não só quem lhe dê voz, como também quem lhe dê gás e se sirva dele para catapultar-se.
A sua especialidade é identificar a dor do ressentimento, remexer nas feridas abertas e deixá-las infectar ainda mais —para depois apresentar curas milagrosas para o problema. Respostas fantasiosas, demasiadas simples para problemas muito complexos, mas que muitas vezes conseguem enganar os ressentidos.
Nada resolvem, nada curam, mas anestesiam, nem que seja temporariamente. Já vimos isso acontecer no passado e vamos continuar a ver no futuro —é da natureza humana do "homo sapiens ressentidus".
Como se sai daqui é a pergunta para a qual não se encontrou ainda uma resposta incontornável. Uma coisa é certa: alimentar a epidemia do ressentimento e acreditar nos curandeiros populistas não será o caminho. Como dizia Nelson Mandela, "o ressentimento é como beber veneno e esperar que ele mate os teus inimigos". Não vale a pena engolir essa peçonha.