02 Agosto 2025
“O legado de Frantz Fanon é uma farmácia atual e necessária para curar o determinismo biológico que estratifica e fixa as pessoas em função da sua cor de pele ou cultura mas, sobretudo, para derrotar o supremacismo branco que estruturou todos os seus privilégios acumulados ao longo da história a partir da ideia da superioridade racial”. A reflexão é de Mamadou Baila Ba, em artigo publicado por Viento Sur, 29-07-2025. A tradução é do Cepat.
Mamadou Ba é um intelectual negro luso-senegalês e uma das mais proeminentes vozes antirracistas em Portugal.
Sim à vida. Sim ao amor. Sim à generosidade. Mas o homem também é não. Não ao desprezo do homem. Não à indignidade do homem. À exploração do homem. Ao assassinato daquilo que há de mais humano no homem: a liberdade. […] Eu sou um homem, e é todo o passado do mundo que preciso retomar. Cada vez que um homem fez triunfar a dignidade do espírito, cada vez que um homem disse não a uma tentativa de escravização do seu semelhante, senti-me solidário com a sua atitude. (...) Eu, homem de cor, quero apenas uma coisa: que nunca o instrumento domine o homem. Frantz Fanon, in Pele negra, máscaras brancas
No dia 20 de julho, Frantz Fanon faria 100 anos. Nasceu martinicano e morreu argelino, muito jovem, a 6 de dezembro de 1961. Cumpriu à risca seu compromisso com o humanismo revolucionário, que recusa transigir com a defesa da inviolabilidade da dignidade humana de todos os povos e em qualquer contexto. Em 1943, aos 17 anos, diante da ameaça nazista, Fanon entrou para a Resistência.
Autor de uma vasta obra que inclui ensaios em revistas científicas, peças de teatro, textos literários e políticos, foi teórico e ator da luta contra a dominação colonial, a fundação da subjugação racial e a sua perpetuação política e cultural. Enquanto trabalhava como médico no hospital psiquiátrico de Blida-Joinville – consciente do impacto da alienação nos pacientes, provocada pela desumanização – Fanon empenha-se em revolucionar a prática médica através da socioterapia, colocando a pessoa no centro das preocupações. O confronto com essa violência reforça as suas convicções anticoloniais e leva-o a tomar partido pela luta pela independência da Argélia, motivo pelo qual é expulso do país, e o faz juntar-se à Frente de Libertação Nacional.
Não se limitou a dissecar no divã, na produção teórica e na prática política, a patologia colonial em todas as suas expressões materiais e subjetivas: juntou-se à luta armada; tornou-se embaixador do governo provisório da República da Argélia, em Gana (liderado por Kwamé N’krumah), um dos primeiros países africanos a conquistar a independência. Portanto, à imagem do que fez aos 17 anos contra o nazismo, Fanon mobilizou-se física e intelectualmente na luta pela libertação total do jugo colonial, tanto na frente armada como diplomática. Mobilizou todos os campos das ciências para estudar e desmantelar os fundamentos da psicose coletiva que mobiliza a raça como elemento estruturante das relações de poder construídas pela ordem colonial.
A obra de Fanon marcou todos os movimentos de libertação colonial e racial, influenciando de maneira decisiva a análise das raízes da produção, manutenção e mecanismos de sobrevivência do racismo como forma sofisticada de desumanização e alavanca do supremacismo e da “neurose racial coletiva”, constitutiva da ordem colonial e instrumento da subjugação racial. A supremacia branca é, na sua perspectiva, uma alienação que sedimenta a hierarquização humana, uma patologia sistêmica que constitui uma falência da própria ideia de humanidade. Está fora de questão conciliar a dignidade humana com a manutenção do projeto colonial e a doutrina racial, porque, como escreve em Pele negra, máscaras brancas (Salvador: EDUFBA, 2008), “a desgraça do homem de cor é ter sido escravizado. A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o ser humano em algum lugar” (p. 190).
Sua luta foi, e continua a ser, por um projeto de humanidade despojado do fantasma da categorização racial como definidora do valor da condição humana. É a isso que se refere em Pele negra, máscaras brancas: “Eu, homem de cor, só quero uma coisa: Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a subjugação do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer o ser humano onde quer que ele se encontre. O preto não existe. Não mais do que o branco” (p. 190s).
Contra as acusações infundadas de fechamento identitário e de exaltação revanchista do seu pensamento, Fanon alertou contra qualquer pretensão de isolacionismo ou monolitismo cultural. Advertiu as novas lideranças dos países outrora colonizados que, muito mais do que cristalizar o problema da libertação colonial sobre a dimensão epidérmica dos sujeitos políticos, o problema seria saber o lugar reservado ao povo: “O tipo de relações sociais que decidem instaurar, a concepção que têm do futuro da humanidade. É isso que conta. Todo o resto é literatura e mistificação”. É um pensamento luminoso contra as trevas da mentira colonial: “A tarefa da descolonização é também destruir a mentira colonial, liquidar as falsidades inscritas no corpo [do colonizado] pela opressão”, como escreve em O ano V da Revolução Argelina. O fim do colonialismo (Zahar, 2025).
Fanon propõe a saída da “zona do não-ser”, onde o colonialismo e o racismo inscreveram o negro, e recusa o determinismo biológico e político que quer transformar o negro no “escravo da escravidão que desumanizou os seus antepassados”. Sabia que não há salvação sem romper com o humanismo eurocêntrico ocidental à luz das suas sombras quando afirma: “Mas se queremos que a humanidade avance com audácia, se queremos levá-la a um nível diferente daquele em que a Europa a manifestou, então é preciso inventar, é preciso descobrir. (…) Pela Europa, para nós mesmos e pela humanidade, camaradas, é preciso mudar de pele, desenvolver um pensamento novo, tentar criar um homem novo” (Os condenados da terra, Zahar, 2022).
No centro das suas preocupações está a salvação da humanidade, só possível com a superação de um modelo de sociedade que se assentou sobre a violência exercida sobre aqueles que foram construídos como outros, despojados de dignidade humana e a quem se nega qualquer sentimento de consciência ética sobre a inaceitabilidade da violência colonial e racial. O fatalismo biológico e maniqueísta que situa brancos e negros entre a “zona do ser” e a “zona do não-ser” é da exclusiva responsabilidade da doutrina colonial que investiu na “racialização do pensamento” e da prática política e fez do colonizador branco o instrumento de perpetuação deste imaginário letal do humanismo iluminista europeu.
Ciente da necessidade de sair da ordem colonial e substituí-la por um novo humanismo, Fanon declarou que “o homem colonizado quando escreve para seu povo [para todos os povos, acrescento] deve, quando utiliza o passado, fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar à ação, fundar a esperança” (Os condenados da terra). Em toda a sua obra, Fanon mostra como o colonialismo precisou fabricar o sujeito negro sem subjetividade, conteúdo ético ou moral, em oposição à branquitude (baseada no humanismo eurocêntrico exclusivo), para “definir os seus próprios limites, para designar a humanidade como uma conquista [exclusiva sua] e ainda para dar forma à categoria de animal”, como salienta a pesquisadora Zakiyyah Iman Jackson. Ou seja, como o colonialismo, a partir do racismo, definiu quem faz ou não parte da humanidade.
O colonialismo é um aparato da morte simbólica e física da humanidade do sujeito colonizado. A descolonização dos espíritos e das práticas, ontem e hoje, é a assunção de que a permanência da colonialidade é irreconciliável com a vida daqueles que saqueou, subjugou e matou. A morte do colonialismo é, portanto, indispensável à refundação do projeto humano para salvar a Humanidade, restituí-la onde ela foi negada e defendê-la intransigentemente onde e quando que estiver ameaçada. É disso que fala Fanon quando diz: “a descolonização é tão simplesmente a substituição de uma ‘espécie’ de homens por outra ‘espécie’ de homens”. A descolonização é a substituição do sujeito colonizado e colonizador da ideologia da desumanização e da subjugação por um sujeito humano livre. Em suma, a tarefa é “tentar criar um homem novo”.
O pensamento de Fanon, por ser uma negação da negação da humanidade do sujeito colonial, é a antítese da resignação ao jugo colonial e seu corolário, a racialização. Há pouco tempo, uma declaração minha ativou um sentimento de filiação ao “homem branco colonialista, racista e assassino” ao ponto de suscitar grande comoção coletiva no espaço público, o que demonstra que o imaginário colonial persiste nas nossas sociedades e que o fantasma da hierarquia racial o ensombra. Demonstra também que está por se cumprir a visão de Fanon: “A morte do colonialismo é ao mesmo tempo a morte do colonizado e a morte do colonizador”.
O colonialismo não morre tão somente pela libertação política e subjetiva do colonizado se o colonizador não o matar em si mesmo, política e subjetivamente. O pensamento de Fanon recusa as facilidades e confronta-nos a nunca se resignar sempre que a dignidade esteja ameaçada. Era resolutamente contrário ao status quo. A vontade de questionar e desafiar permanentemente a realidade está bem plasmada na última frase de Pele negra, máscaras brancas: “A minha última prece: ó meu corpo, faça de mim sempre um homem que questiona!” (p. 191). Ele sabia que só assim a rebeldia do espírito de liberdade contra a pobreza da certeza da servidão poderia triunfar.
O legado de Fanon é uma farmácia atual e necessária para curar o determinismo biológico que estratifica e fixa as pessoas em função da sua cor de pele ou cultura mas, sobretudo, para derrotar o supremacismo branco que estruturou todos os seus privilégios acumulados ao longo da história a partir da ideia da superioridade racial.