29 Julho 2025
A desinformação e o discurso de ódio contra refugiados e solicitantes de asilo estão causando danos no mundo real; encontrar maneiras de lidar com isso é fundamental.
A informação é da assessoria de comunicação da ACNUR, 28-07-2025.
Em agosto de 2017, a violência generalizada contra a minoria Rohingya no estado de Rakhine, em Mianmar, causou milhares de mortes e a fuga de mais de 750 mil Rohingyas para a vizinha Bangladesh. Um ano depois, uma missão de apuração de fatos da ONU concluiu que o uso de plataformas de mídia social para disseminar desinformação e discurso de ódio contra os Rohingyas havia desempenhado um papel significativo na escalada da violência.
Passados oito anos, a desinformação e o discurso de ódio direcionado a refugiados e apátridas proliferaram em plataformas digitais em todo o mundo e estão cada vez mais ligados a incidentes reais de xenofobia, violência e até mesmo deslocamento forçado.
"Há uma crescente normalização da retórica prejudicial sobre os refugiados. Precisamos de mais proteções e políticas de segurança por parte das plataformas digitais", observa Gisella Lomax, consultora sênior de integridade de informações da Agência de Refugiados da ONU (ACNUR).
Ela acrescenta que o surgimento da inteligência artificial (IA) generativa turbinou o problema ao permitir que as pessoas inundem as plataformas digitais com conteúdo falso, manipulador ou explorador, como deep fakes. De forma anônima e com o clique de um mouse, narrativas tóxicas que caracterizam os refugiados como oportunistas, perigosos ou criminosos se espalharam pelos canais de mídia social, atingindo e influenciando milhões de pessoas e causando danos tanto aos refugiados quanto às organizações que tentam protegê-los e apoiá-los.
A enxurrada de desinformação nas plataformas digitais está levando a uma falta de confiança nas informações vitais de proteção que os trabalhadores humanitários compartilham durante uma crise. “Isso tem um impacto sobre a determinação de quais informações você pode confiar”, diz Lomax. "E o acesso a informações confiáveis é fundamental para os refugiados. Em situações de emergência, essas informações podem salvar vidas."
As eleições multiplicam os riscos
Os riscos são particularmente altos antes das eleições. No final de 2023, o período que antecedeu as eleições nacionais na Indonésia coincidiu com a chegada, de barco, de mais de 1.700 refugiados Rohingyas à província de Aceh e com um aumento acentuado do ódio on-line contra essa população. Além disso, houve a proliferação de contas falsas do ACNUR nas mídias sociais, espalhando desinformação.
Anteriormente, os refugiados Rohingya que fugiam da perseguição em Mianmar ou de campos superlotados em Bangladesh eram tratados com compaixão quando desembarcavam em Aceh após traiçoeiras viagens de barco. Porém, nos últimos dois meses de 2023, membros da comunidade local se reuniram para protestar contra o desembarque de barcos e até mesmo impedir que alguns deles atracassem. E em dezembro daquele ano, centenas de estudantes invadiram um prédio na cidade de Banda Aceh, na Indonésia, que abrigava refugiados Rohingya. Eles forçaram 137 refugiados a entrar em caminhões e exigiram que fossem retirados.
Em um comunicado, o ACNUR descreveu o ataque da multidão como “não um ato isolado, mas o resultado de uma campanha on-line coordenada de desinformação e discurso de ódio”.
Desenvolvendo proteções digitais para refugiados
As organizações humanitárias têm se esforçado para saber a melhor forma de proteger os refugiados e outras pessoas em situação de vulnerabilidade dos danos causados por discursos de ódio e informações falsas.
Com o apoio do ECHO, o departamento de ajuda humanitária da Comissão Europeia, em 2023 o ACNUR começou a desenvolver uma resposta global à desinformação e ao discurso de ódio em plataformas digitais. A estratégia se baseia em aprendizados de projetos-piloto em vários países e parcerias com diferentes setores.
Na África do Sul, o sentimento on-line contra pessoas refugiadas e migrantes alimentou um movimento de vigilância off-line que teve como alvo empresas, residências de refugiados e até mesmo escolas frequentadas por crianças refugiadas. É lá que um dos projetos-piloto está testando uma abordagem proativa de “pré-bunking”, com o apoio do fundo de inovação da Noruega. Como muitas escolas sul-africanas não têm dispositivos digitais ou conectividade com a Internet, o ACNUR fez uma parceria com o Departamento de Educação Básica e com o setor privado para desenvolver um jogo de tabuleiro analógico para os alunos da escola chamado “Mzansi Life” (Vida na África do Sul). Os jogadores são incentivados a se colocar no lugar de refugiados e solicitantes de asilo e a questionar as narrativas comuns contra essa população.
“Você cria anticorpos mentais contra a desinformação e o discurso de ódio, e consegue detectar quando está sendo manipulado on-line”, explica Katie Drew, consultora do ACNUR que está liderando o piloto.
Os resultados iniciais foram promissores, com a maioria dos participantes relatando uma mudança significativa em suas percepções sobre os não sul-africanos e sua conscientização sobre a manipulação on-line. A próxima etapa do projeto envolve o desenvolvimento de uma versão digital do jogo e o lançamento de uma competição no TikTok que incentiva os usuários a criar e publicar seu próprio conteúdo pré-bunking promovendo a solidariedade com os refugiados.
Desafiando narrativas tóxicas
Outro projeto piloto concentrou-se no desafio do discurso de ódio on-line direcionado aos refugiados Rohingya em seis países asiáticos. Além de monitorar as plataformas de mídia social, o projeto envolve parcerias com organizações locais da sociedade civil, governos, organizações lideradas por refugiados e mídia para fortalecer a conscientização sobre os impactos nocivos do discurso de ódio on-line e desenvolver conteúdo criativo que conteste as narrativas tóxicas.
No fim do ano passado, a Association for Progressive Communications (APC) - uma organização parceira do ACNUR - trabalhou com Yasmin Ullah e Hafsar Tameesuddin, ex-refugiadas Rohingya e cofundadoras da Rohingya Maiyafuinor Collaborative Network, para produzir um vídeo no qual as duas mulheres usam uma abordagem bem-humorada para confrontar informações falsas sobre sua comunidade que circulam amplamente nas mídias sociais.
“Sem muitos recursos, tivemos que ser seletivos no trabalho que realizamos”, explica Ullah. "Às vezes, tivemos que nos tornar audaciosos e responder ao discurso de ódio nós mesmos. Tentamos equilibrar diversão e leveza com mensagens contundentes."
Com base nas descobertas dos projetos pilotos e nas consultas aos parceiros, o ACNUR lançou recentemente um Kit de Ferramentas de Integridade da Informação, financiado pela ECHO, que fornece ferramentas práticas e orientação para compreender os riscos on-line e lidar com eles. “As ferramentas nele contidas são realmente transversais e podem ser aplicadas por outras organizações humanitárias”, diz Lomax, que vê o trabalho do ACNUR como parte dos esforços mais amplos do sistema da ONU para tornar os espaços digitais mais seguros para os refugiados e outros grupos vulneráveis, conforme descrito no Pacto Digital Global adotado pelos Estados Membros em setembro passado.
No contexto de cortes radicais de verbas e de profissionais humanitários mais sobrecarregados do que nunca, as parcerias são fundamentais para que o ACNUR possa ter um impacto sobre o enorme volume de desinformação on-line e discurso de ódio direcionado aos refugiados. Colaborar com organizações locais da sociedade civil, grupos de direitos digitais e governos também significa reconhecer que contextos diferentes exigem soluções diferentes. “Por um lado, o discurso de ódio e a desinformação podem ser globais e transnacionais, mas também são muito localizados, muitas vezes com raízes culturais profundas, e são os atores locais que têm o conhecimento contextual, histórico e linguístico para entender isso”, diz Lomax.
Um novo projeto financiado pelo governo da Suíça está apoiando os esforços do ACNUR para criar e fortalecer essas parcerias de “proteção digital”, juntamente com novas pesquisas e desenvolvimento de políticas públicas.
As parcerias com empresas de tecnologia e IA também são cruciais, não apenas para defender que essas empresas abordem o discurso de ódio e outros riscos de informação em suas próprias plataformas, mas também pelas habilidades e conhecimentos que elas podem trazer. Na preparação para o piloto sul-africano, o ACNUR aproveitou o treinamento e os insights do Google, que usou vídeos de pré-bunking em vários contextos, inclusive para combater falsas narrativas sobre refugiados ucranianos na Europa Central e Oriental.
No total, 23 empresas do setor privado, governos, parceiros da ONU, ONGs e organizações lideradas por refugiados se comprometeram a ampliar as ações para evitar os impactos prejudiciais do discurso de ódio e da desinformação sobre as pessoas deslocadas por meio de um compromisso multissetorial anunciado no Fórum Global de Refugiados em dezembro de 2023.
Desde então, embora tenha havido muitos avanços no setor, o envolvimento prático com esses atores essenciais continua.
“Um de nossos objetivos é incentivar as empresas de tecnologia a prestar mais atenção aos contextos humanitários”, diz Lomax.
No Brasil, diante das crescentes ameaças digitais enfrentadas por pessoas refugiadas, o ACNUR tem desenvolvido iniciativas concretas para fortalecer a integridade da informação e combater narrativas falsas que impactam diretamente a vida de quem foi forçado a se deslocar e busca proteção no país - informação íntegra é uma fonte protetiva, pois desta referência as pessoas refugiadas tomam decisões cruciais sobre suas vidas.
Entre as ações em curso, destaca-se a formação de pessoas refugiadas que atuam em organizações sociais com foco na integridade da informação e resposta a discursos de ódio nas redes. Em paralelo, parcerias estratégicas com agências de checagem de conteúdos têm permitido o monitoramento e a resposta a rumores e desinformação que circulam especialmente em ambientes digitais populares, como grupos de WhatsApp e Telegram.
Complementando esses esforços, estudantes de comunicação das universidades integrantes da Cátedra Sérgio Vieira de Mello também têm sido capacitados sobre os desafios da comunicação humanitária, com foco na responsabilidade ética e no papel do jornalismo no enfrentamento à xenofobia e à manipulação de dados sobre o deslocamento humano forçado.
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