15 Julho 2025
"Grande parte do mundo verá nisso a persistência de hierarquias coloniais nas quais se reflete o racismo, o Ocidente dos genocídios coloniais em nome da missão civilizadora, contra a intolerância dos bárbaros"
O artigo é de Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália, publicado por Il Manifesto, 12-07-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nunca mais permitiremos isso, mas continua acontecendo. As valas comuns já revelaram 8.372 corpos, de centenas de outros ainda falta a identificação. Isso foi Srebrenica: um bolsão desgovernado, inflado além da conta pelo desespero e pela resistência, nos complexos eventos de limpeza étnica ao longo do front bósnio.
Um enclave muçulmano sacrificado por estar fora da lógica territorial dos acordos de paz. Distante demais para ser conjugada por uma língua de terra a ser traçada em Dayton, Ohio, como, ao contrário, acabou acontecendo – tarde da noite a graças ao whisky – para o corredor de Gorazde.
Srebrenica foi abandonada por todos, incluindo a ONU, que a havia declarado área protegida. A guerra na Bósnia foi travada sobre as ajudas humanitárias: quem repassava o quê e para qual projeto político. Os sérvios-bósnios lançaram seus ataques com o apoio das armas, levando os muçulmanos à beira da fome e manipulando as ajudas de forma a deslocar a população. A maioria dos cercos, incluindo Sarajevo, tinha como alvo a água, o pão e o mercado negro, com atiradores e morteiros desempenhando um papel fundamental.
Matar de fome e aterrorizar para realocar para outros lugares. De Srebrenica, resta a imagem de Ratko Mladić oferecendo chocolate às crianças, dizendo-lhes que não têm nada a temer. Ou a do pai emaciado e exausto, forçado a chamar o filho aos gritos, pedido para sair da floresta onde se escondia. Nenhum dos dois sobreviveu.
A Assembleia Geral da ONU declarou 11 de julho o "Dia Internacional de Reflexão sobre o Genocídio de Srebrenica”. Entre os países que sempre defenderam que não se deve falar de um único ato de genocídio está Israel. A política é reduzir o evento à noção de crimes de guerra; o fator atenuante é a separação de mulheres e crianças antes das execuções em massa.
As relações entre Israel e a Sérvia são mais do que amigáveis, como evidenciado pela recente visita da porta-voz do Parlamento de Belgrado a Tel Aviv. Tel Aviv descreve o fornecimento de armas à Sérvia como episódios ocasionais.
Uma investigação do BIRN e do Haaretz descobriu que, no auge da ofensiva em Gaza, as vendas de armas sérvias para Israel aumentaram 30 vezes (de 1,6 para 42,3 milhões de dólares), graças, em parte, a um especialista em controle da apresentação de fatos israelense responsável pela imagem do contestado presidente Vučić.
Evidentemente, a natureza singular do Holocausto não admite exceções: o receio é que a gravidade do crime resulte diminuída. Igualmente evidente, contudo, é o receio de que a repercussão da violência sobre os civis possa criar precedentes, e não apenas porque Gaza é invocada pelos próprios sobreviventes de Srebrenica. O Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia de fato qualificaram como genocídio um massacre perpetrado enquanto a comunidade internacional estava empenhada em intervir no contexto mais amplo da guerra na Bósnia; para esta última não foi reconhecido o caráter de genocídio. Em suma, o genocídio pode ocorrer num local, à sombra de um mais amplo contexto bélico.
É preciso um grande esforço para não enxergar essa reverberação. Hoje, o governo israelense declara que os habitantes de Gaza deveriam ir embora se o quiserem e que está colaborando com os Estados Unidos para encontrar países dispostos a oferecer um futuro aos palestinos, garantindo-lhes a liberdade de escolha. Goste-se ou não, essas declarações ecoam de modo inquietante as palavras de Mladić, quando afirmava que os habitantes de Srebrenica poderiam ficar ou ir embora.
Ir embora ou morrer de fome num grande campo de concentração entre os escombros. Trinta anos depois, a retórica, a inércia e a capciosa ironia do debate soam estranhamente familiares, embora numa escala diferente. Na Itália, vimos Paolo Mieli aparecer na tela para nos dizer que a "cidade humanitária" sobre os escombros de Rafah — onde, segundo o Ministro da Defesa israelense, 600.000 palestinos deveriam ser encerrados — é uma ideia razoável, porque "uma ilha de reconstrução onde tudo esteja em ordem deve ser criada". Lemos Paolo Pombeni perguntar, citando dados de observadores internacionais não melhor identificados, "por que as crianças mortas em Kiev valem menos daquelas de Gaza?". Como se os números e a natureza da violência da guerra fossem comparáveis, tanto por quilo.
Como se o Ocidente não tivesse sancionado Putin e não estivesse armando Netanyahu. Do outro lado, ouvimos as invectivas de partidários do revisionismo mais sórdido sobre os crimes de Assad ou Putin — para não mencionar os uigures na China —, todos eles de repente doutos defensores do direito internacional.
Enzo Traverso argumentou que não podemos olhar para o século XX sem colocar o Holocausto no centro da imagem: memória pulsante que iluminou os direitos fundamentais nas nossas democracias. Ao mesmo tempo, devemos ver a metamorfose paradoxal que essa memória sofreu, tornando-se arma para sustentar — de maneira incondicional, ou de qualquer forma desproporcional — a ação de Israel, quase como se fosse um teste para aceitação entre as forças políticas respeitáveis. Isso não tem nada a ver com a tão frequentemente evocada banalização do "sentimento de culpa" pelo Holocausto, mas sim com relações de força e de dependência tecnológica e militar, em um mundo que repropõe contraposições entre blocos geopolíticos.
O fato é que, retoricamente, até o “nunca mais” enraizado na memória acaba por se dobrar à justificação de uma ação militar em que drones lançam granadas para deslocar os palestinos, enquanto os próprios soldados contar que alvejam os civis para que outros aprendam a não retornar. Dia após dia, Gaza revela cada vez mais características genocidas. Os efeitos perversos dessa metamorfose, de longo prazo, são devastadores: reforçam a ideia de que a memória do genocídio, mitificada para fins opressivos, contenha ela própria o mal, e que o antissemitismo deve ser relativizado.
O ataque em curso contra a relatora da ONU, Francesca Albanese, pode ser lido como o prenúncio de um mundo descaradamente sem regras, no qual alguns Estados, reivindicando o direito de cometer crimes sem ter que responder, não se sentem de forma alguma restringidos. Será ainda mais difícil levar a sério os nossos empenhos com o Estado de Direito, a democracia e os direitos humanos.
Grande parte do mundo verá nisso a persistência de hierarquias coloniais nas quais se reflete o racismo, o Ocidente dos genocídios coloniais em nome da missão civilizadora, contra a intolerância dos bárbaros.
O crime de Srebrenica não ficou impune. Continua sendo alvo de investigações, mandados de prisão e acusações ‘por genocídio’ pelo sistema judiciário bósnio. É impressionante ver soldados das Forças de Defesa de Israel tirando suas próprias fotos de identificação de costas, escondendo o rosto, talvez de forma provocativa, talvez para se protegerem de futuras acusações.
Há trinta anos, a Europa convive com essa ferida que nunca para de sangrar, alimentada por suas reverberações em um debate público instrumental.