11 Julho 2025
Enquanto o agente laranja do passado ainda envenena rios e memórias, o novo fascismo alastra-se como um câncer político, corroendo democracias. Mas na resistência de Lula, ecoa Drummond: mesmo na esquina sombria do tempo, há quem insista em semear esperança.
O artigo é de Tarso Genro publicado por A Terra é Redonda, 10-07-2025.
Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
“Na década de 60, o Agente Laranja foi um herbicida e desfolhante químico usado pelos militares dos EUA durante a Guerra do Vietnã, como parte da Operação Ranch Hand, por mais de 10 anos. Até hoje, esse veneno ainda chega aos humanos a partir de sedimentos de rios e lagos”.
Um agente laranja presidencial jamais poderia ser previsto, há mais de sessenta anos, como mais tóxico do que os milhões de litros do agente químico derramado sobre as florestas e os verdes arrozais do Vietnã, numa humanidade à beira do desastre e sobre um mundo assediado pelas guerras e pela fome. Gaza que o diga pelo testemunho das suas crianças mortas sem piedade na guerra genocida, que tem pela frente e por trás, os mesmos bandidos e as mesmas ideias de antigamente.
Os raios “trompistas” caem sobre o os BRICS como uma tempestade de granizo alaranjado e bicudo. Lula devolve-os, ao novo esteta alaranjado do fascismo, com a categoria suprema de um Chefe de Estado. Pode doer, nos que dizem que Lula é um populista, mas – se assim for – o populismo será glorificado pela vida eterna, por redimir a dignidade de uma nação brutalizada pelo delírio do elitismo, ao mesmo tempo golpista e odioso, que repõe na cena em andamento os vira-latas do complexo de menoridade nacional.
Lula está indo para cima do Trump. Um baita acerto. Parcela da burguesia nacional também está em desespero e precisa do governo para sobreviver. Pela primeira vez o governo tem muita força. Há oportunidade de aproveitar o momento para alterar a meta de resultado primário desse…
— David Deccache (@deccache) July 10, 2025
É visível que o governo federal melhorou na maneira de informar a sociedade para propagar os seus feitos na área social e para conferir importância aos seus investimentos em obras e serviços. E agora, quando passa a modernizar a sua linguagem aos novos tempos – nos quais a formação da subjetividade coletiva não se dá principalmente através de sinais quantitativos – Lula pode de novo falar de esperança e grandeza nacional.
As esperanças abertas pelas longas narrativas, como dizia Carlos Drummond de Andrade, não são mais repartidas entre o povo quando os homens deixam de pedir somente “carne, fogo, sapatos”. Quando o fazem, as leis não bastam” – pedem mais – acrescidas as esperanças – pelos impactos das necessidades não respondidas, que mudam o cotidiano sem a virtude de mudar os rumos da história.
Penso que a comunicação do governo Lula deve ser mais do que uma prestação de contas dos seus “feitos”, para passar a interferir no sentido da vida comum, ajudando as pessoas a conceberem um modo de vida conscientemente orientado, para buscar também as suas realizações individuais integradas numa ideia especial de nação solidária.
A força do mercado petrificou os corações das pessoas no altar do mercado perfeito e subtraiu delas o mínimo senso do que é a solidariedade, como essência da utopia democrática e social. Esta, hoje, está subjugada pelo minimalismo das reformas realistas, aliás – mesmo mínimas – sempre rejeitadas pelos muitos ricos donos perfeitos do “mercado”.
Um primeiro fator a ser considerado nessa mudança de rumo: toda a política de comunicação e agregação de Donald Trump busca acomodar os EUA num caminho que vai no sentido inverso da democracia, enquanto o nosso sentido reformista-democrático (ainda que mínimo) se choca com a maré montante do mercado universal, que gera tanto desorientação no consumo, como obstrui uma ideia de nação integrada voltada para a paz e a democracia.
O discurso de comunicação do governo Lula, portanto, começa a orientar o senso comum sobre as alternativas ao modelo global de exploração capitalista selvagem, com uma compreensão que começa dentro do governo, para então enfrentar um segundo fator complicador: o equilíbrio das nossas relações com os Estados Unidos.
Se presidente Lula chamar uma grande concentração em São Paulo, no dia 20 de julho, em defesa da soberania brasileira, convidando as pessoas a se vestirem com a camiseta verde-amarelo, mais de um milhão irá às ruas e acaba o sequestro dos símbolos nacionais pela extrema direita.
— Breno Altman (@brealt) July 10, 2025
Elas desnudam as contradições que expressam os interesses econômicos e políticos diversos, pelos quais podemos afirmar a nossa liderança democrática. Esta questão será sempre negociada e, ao mesmo tempo, disputada com os Estados Unidos, pois ambos países almejam “sentidos” opostos para o futuro do continente. O Brasil almeja paz, democracia, integração e os Estados Unidos almejam dominação, pelos mercados ou pela guerra.
O arcabouço fiscal é a iniciativa estrutural inovadora do atual governo, proposto como mediação entre o neoliberalismo decadente – nacional-fascista dos EUA – e o reformismo possível, liberal-democrático do país, que visa uma desconcentração parcial da renda na pirâmide social do país. O “arcabouço” é uma travessia, todavia, que está em perigo de “congelamento”, pois a direita golpista coloca sua aprovação como moeda de troca, para comprar a inconstitucional anistia ao golpismo.
O terceiro fator a ser enfrentado é o desafio, tanto no terreno da segurança nacional, como na questão objetiva da segurança pública: buscar novos contornos democráticos negociados para a sensação de segurança nacional, bem como protocolos concretos para a questão da sensação de segurança pública continental.
As democracias – em geral – estão inseguras, face aos assédios universais do fascismo, tanto no plano da segurança do Estado, para o cumprimento das suas funções públicas nas questões gerais de segurança na vida comum, porque os grupos operacionais do fascismo estão ligados ao sistema miliciano de poder territorial, e não raro no terreno da ação política do extremismo de direita.
Lula diz que 'Trump poderia ser preso' se invasão do Capitólio tivesse acontecido no Brasilhttps://t.co/56ujUdqMWf pic.twitter.com/FTGvUx1w2e
— exame (@exame) July 10, 2025
Esta situação se reflete especialmente no mundo político do Rio de Janeiro, que é um dos palcos decisivos das eleições de 2026. “Conheço bem esta casa”, prossegue Carlos Drummond, no mesmo poema e conclui: “Na esquina do tempo de cinco sentidos (…) o espião janta conosco.”
Permanentemente traído pela sua frágil base parlamentar, o governo Lula é bombardeado por raios de ódio e navega em direção à reeleição, processo no qual seu talento de negociador pode ser bloqueado pelos próprios parceiros, que “jantam conosco”?