05 Julho 2025
"A colonização não apenas impôs fronteiras políticas, mas também moralidades importadas, que apagaram ou reprimiram expressões culturais autênticas. Quando o cardeal afirma que a homossexualidade é uma questão europeia, ele talvez esteja, sem perceber, ecoando uma moralidade colonial que ainda marca profundamente o imaginário africano", escreve João Melo, licenciado em Filosofia e Matemática, bacharel em Teologia e mestrando em Educação na UERJ.
A recente declaração do cardeal Fridolin Ambongo, segundo a qual a homossexualidade “não é uma questão para a África, mas para a Europa”, merece uma reflexão mais cuidadosa. Há uma diferença fundamental entre afirmar que algo “não é uma questão” e reconhecer que, embora não debatido publicamente, o tema existe, pulsa e clama por escuta.
Dizer que a homossexualidade não é uma questão em África pode significar, como parece indicar o cardeal, que não há um debate público em curso sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ em muitos países africanos. Mas isso não equivale a dizer que tais pessoas não existem. Elas existem e sofrem. A diversidade sexual e de gênero é uma característica da espécie humana, presente em todas as culturas, com os nomes e significados que cada sociedade lhes atribui. O silêncio institucional e social não apaga a realidade vivida por milhões de pessoas.
Quando o cardeal afirma que “não é uma questão”, ele parece reconhecer, ainda que indiretamente, que não há espaço para o diálogo, para a escuta, para a dúvida: elementos essenciais de qualquer questão ética ou pastoral. O que há, em muitos contextos africanos, é a condenação imediata, a exclusão e o silenciamento. E onde não há questão, não há possibilidade de conversão, de crescimento, de discernimento. Há apenas sofrimento invisível.
A ausência de debate público sobre os direitos LGBTQIA+ em muitos países africanos não é sinal de consenso, mas de repressão. Em pelo menos 30 países do continente, relações entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas. Em lugares como Uganda, Gâmbia, Tanzânia e Zâmbia, a pena pode chegar à prisão perpétua. Na Mauritânia, Nigéria do Norte, Somália do Sul e Sudão, a homossexualidade pode ser punida com a pena de morte. Como discutir publicamente uma realidade cuja simples menção pode levar à prisão ou à morte?
O Papa Francisco, em uma coletiva de imprensa durante o voo de retorno de sua viagem à África em fevereiro de 2023, foi enfático: “Criminalizar pessoas com tendências homossexuais é uma injustiça. Condenar uma pessoa assim é um pecado”. Ele afirmou ainda que “a criminalização da homossexualidade é um problema que não pode ser ignorado” e que “pessoas com tendências homossexuais são filhos de Deus. Deus as ama. Deus as acompanha”. Essa condenação explícita por parte do pontífice reforça que a repressão legal não apenas impede o debate, mas fere a dignidade humana e contradiz o Evangelho.
Apesar da repressão, as pessoas LGBTQIA+ existem em todos os países africanos. E resistem. Organizações como a Global Interfaith Network (GIN), que reúne lideranças religiosas LGBTQIA+ de diversas tradições, têm promovido espaços de escuta, espiritualidade e acolhimento no continente. Há também grupos cristãos como o Inclusive and Affirming Ministries (IAM), com atuação na África do Sul, e redes ecumênicas como a Other Sheep Africa, que trabalham com teologia inclusiva e pastoral de acolhida. Em países como Quênia, Uganda e Nigéria, jovens ativistas LGBTQIA+ têm se organizado em redes de apoio, mesmo sob risco de perseguição.
É importante destacar que a posição do cardeal Ambongo não representa uma unanimidade entre os bispos africanos. Embora muitos episcopados tenham expressado reservas à aplicação da declaração Fiducia Supplicans, o próprio texto divulgado pelo SECAM reconhece que cada bispo é livre para discernir em sua diocese. Há, portanto, espaço para interpretações pastorais mais abertas.
Na África do Sul, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal desde 2006, e há bispos católicos que têm se mostrado abertos ao acolhimento pastoral de casais homoafetivos. Em Cabo Verde, o bispo Ildo Fortes afirmou que “até para quem está no pecado, é preciso uma bênção, uma luz”. Essas vozes mostram que há diversidade de posições dentro da própria Igreja africana.
Em janeiro de 2024, o arcebispo Andrew Nkea Fuanya, de Bamenda (Camarões), presidente da Conferência Episcopal de Camarões, afirmou em entrevista que a declaração do Vaticano “não deve ser descartada automaticamente” e que “cada bispo deve discernir pastoralmente como aplicá-la em sua realidade local”. Ele destacou que a Igreja deve “acompanhar com misericórdia todos os seus filhos, mesmo os que vivem em situações irregulares”.
Em contraste com a postura de fechamento, o Papa Francisco insistiu na necessidade de uma Igreja que escute, acolha e acompanhe. Em sua resposta às resistências à aplicação da Fiducia Supplicans em África, o Papa pediu para que se cresça na compreensão mais ampla das bênçãos pastorais, e propôs que se pense um modo de abençoar que não implique tantas condições para realizar este gesto simples de proximidade pastoral, que é um meio para promover a abertura a Deus em meio às mais diversas circunstâncias. Essa fala não é uma imposição cultural, mas um convite à conversão evangélica, que reconhece a dignidade de todas as pessoas e a necessidade de purificar tradições que ferem essa dignidade.
Essa mesma tensão entre tradição e Evangelho já havia sido abordada por São João Paulo II na exortação apostólica Ecclesia in Africa (1995). Ali, o Papa reconhece a riqueza das culturas africanas, mas também afirma que a inculturação do Evangelho exige o discernimento crítico das tradições culturais, à luz da fé cristã. A missão evangelizadora, portanto, não é uma reafirmação acrítica do que é “originalmente africano”, mas um processo de purificação e elevação das culturas à luz do Reino.
Na exortação Querida Amazônia (2020), o Papa Francisco aplica o mesmo princípio ao contexto amazônico. Ele sonha com uma Igreja “com rosto amazônico”, mas que não se limite a repetir práticas culturais que contradigam o Evangelho. Ao contrário, ele propõe uma inculturação que preserve o que há de belo e verdadeiro, e que transforme o que oprime e exclui. Repetindo São João Paulo II ele diz: “Quando, no entanto, uma cultura se fecha em si própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem, então ela torna-se estéril e entra em decadência” (QA n.37).
É importante lembrar que a ideia de que a homossexualidade é “não africana” é, em si, um produto da colonização. Antes da imposição dos códigos morais europeus, muitas culturas africanas reconheciam formas diversas de afetividade e identidade de gênero. Entre os povos igbo, por exemplo, havia mulheres que assumiam papéis sociais masculinos e se casavam com outras mulheres. Entre os dagomba, no atual Gana, havia sacerdotes com expressões de gênero não conformes. A presença de figuras “terceiras” ou “duais” de gênero é documentada em diversas mitologias e práticas rituais africanas.
A colonização não apenas impôs fronteiras políticas, mas também moralidades importadas, que apagaram ou reprimiram expressões culturais autênticas. Quando o cardeal afirma que a homossexualidade é uma questão europeia, ele talvez esteja, sem perceber, ecoando uma moralidade colonial que ainda marca profundamente o imaginário africano.
Por fim, é preciso afirmar com clareza: ninguém está proibido de mudar para melhor, nem mesmo as instituições. A Igreja, como corpo vivo, é chamada à conversão constante. O Evangelho não é um código fechado, mas uma Palavra viva que interpela cada cultura, cada tempo, cada coração. E onde há sofrimento silenciado, há uma questão. Que a Igreja em África tenha a coragem de escutar.