A silenciosa e constante contaminação dos oceanos fragiliza sua capacidade de absorver calor atmosférico. Entrevista especial com Alexander Turra

Para o pesquisador, o sutil equilíbrio climático dos oceanos também está cada dia mais sob o risco de colapso

Arte: Mateus Dias | IHU

03 Julho 2025

Os oceanos cumprem diferentes papéis na atmosfera. Sua mais importante função está associada à regulação do clima. Os mares capturam cerca de 25% do CO2 que está na atmosfera e estocam o calor, amenizando as temperaturas. “O gás carbônico que aumenta na atmosfera, por causa das ações humanas, é dissolvido no oceano, ele penetra na água e o oceano acaba retirando esse gás da atmosfera”, explica o pesquisador e professor Alexander Turra.

No entanto, adverte o biólogo, o excesso de monóxido de carbono está desestabilizando o equilíbrio do oceano. “Parte do gás carbônico é assimilado pelos fitoplânctons e por produtores primários, vira matéria orgânica e é estocado no fundo do mar. Parte desse CO2 passa por uma série de reações químicas e acaba levando a uma acidificação da água do mar, o que é um grande problema – silencioso – que tem aumentado no mundo”, pontua.

A acidificação e as temperaturas recordes que os oceanos atingiram são uma parte das preocupações dos cientistas, pois há outra ameaça aos ecossistemas aquáticos: a contaminação dos cursos d’água por fármacos. Antibióticos, anticoncepcionais e antidepressivos estão entre os principais contaminantes e podem “interferir no comportamento e no metabolismo, no funcionamento do organismo, trazendo problemas no crescimento, na reprodução e mesmo na localização no ambiente”.

Sobre a ausência da assinatura oficial do Brasil ao Apelo de Nice, objeto de críticas por parte de ambientalistas, Turra é enfático ao afirmar que se trata mais da falta de tramitação do que não adesão. “O assunto foi colocado de forma equivocada na mídia, parecendo que o Brasil não está preocupado com a agenda do lixo no mar, sendo que o Brasil é um dos principais países que trabalha na questão da pesquisa, da educação ambiental e da cultura oceânica, com instrumentos bastante claros e robustos para combater a poluição ambiental por plástico”, elucida.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano destaca a função dos oceanos na transição energética. “O oceano nos ajuda a fazer a transição para uma economia de baixo carbono na medida em que temos fontes de energia renovável no oceano, sendo as energias solar e eólica, mas também marés, ondas e gradientes de salinidade e temperatura”, sinaliza.

Alexander Turra (Foto: Divulgação)

Alexander Turra é professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. É biólogo com mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi agraciado com o Kirby Laing Fellowship na School of Ocean Sciences, Bangor University, no Reino Unido, e com a medalha Mérito de Tamandaré da Marinha do Brasil. É editor associado das revistas Ocean and Coastal Research (Brazilian Journal of Oceanography) e Ambiente e Sociedade. Editor da série Brazilian Marine Biodiversity (Springer Nature). Atua na divulgação científica em veículos como Scientific American Brasil, Ciência Hoje, Ciência Hoje das Crianças e Jornal da USP.

Confira a entrevista.

IHU – O que se sabe sobre a poluição por fármacos nos rios e cursos d’água? O que as pesquisas apontam?

Alexander Turra – A presença de fármacos nos rios e oceanos é um fenômeno crescente, denominado poluentes emergentes ou novas entidades – do inglês new entities – que se configuram como uma fronteira planetária que temos o risco de ultrapassar em breve. Essa fronteira planetária inclui também os microplásticos, que são bem comuns nos cursos d’água e têm uma tendência de aumento. Entre os fármacos, temos antibióticos, anticoncepcionais e outros tipos de moléculas que acabam mantendo a atividade nos organismos aquáticos de forma geral. Estes podem interferir no comportamento e no metabolismo, no funcionamento do organismo, trazendo problemas no crescimento, na reprodução e mesmo na localização no ambiente.

IHU – Como é possível verificar e medir a incidência de medicamentos, drogas e psicoativos nos cursos d’água?

Alexander Turra – A ciência tem mecanismos, métodos e instrumentos para avaliar a presença dessas substâncias, como medicamentos, entorpecentes e outros tipos de moléculas nos cursos d’água e na biodiversidade. As técnicas envolvem a coleta do material – água, sedimentos ou mesmo organismos marinhos –, o processamento desse material, a concentração dos eventuais poluentes e uma análise em equipamentos de altíssima tecnologia, como cromatógrafos, que vão revelar a presença e a quantidade desses poluentes.

Não são análises baratas e não podem ser feitas com uma frequência muito grande. Isso é um desafio no avanço do monitoramento desse tipo de problema nos cursos d’água e nos oceanos de forma geral. Precisamos de desenvolvimento tecnológico que nos ajudem a ter mecanismos mais rápidos, eficientes e baratos para que possamos obter informações, ainda que não tão precisas, mas relevantes para conseguir acompanhar a presença desses tipos de poluentes dentro dos ambientes.

IHU – Quais os medicamentos que mais preocupam os cientistas e por quê?

Alexander Turra – Entre os medicamentos que estão liderando as preocupações estão os antibióticos, uma vez que, assim como no nosso corpo, no ambiente eles podem ter um efeito de criar resistência em microrganismos presentes, tanto na água doce quanto na salgada. Com isso, podem ter o efeito igualmente de criar superbactérias que tenham um efeito deletério na biodiversidade. Isso em uma situação muito potencializada, porque não há uma concentração grande desse tipo de material nesses ambientes porque há uma diluição.

A mesma lógica se aplica aos antidepressivos e anticoncepcionais, que têm riscos de gerar, no caso dos anticoncepcionais, influências no sistema reprodutivo dos organismos. Os psicotrópicos, como as drogas, que também fazem parte desse grupo de moléculas que estão presentes nos efluentes das estações de tratamento de esgoto, também podem ter efeitos na atividade dos organismos marinhos, assim como as moléculas conhecidas como psicoativas, que influenciam o comportamento e a atividades dos organismos.

IHU – Quais são os riscos mais alarmantes quanto ao surgimento de bactérias resistentes a antibióticos?

Alexander Turra – O risco associado é de microrganismos que não conseguem ser controlados quando não temos antibióticos para os quais eles não são resistentes. Isso no caso de populações de peixes, por exemplo, que são usadas como recurso pesqueiro, podemos ver uma mortandade gigantesca e não ter condições de promover uma recuperação. Isso vale para organismos cultivados em tanques, como tilápia em água doce ou o beijupirá em água salgada, o salmão em outras regiões – não aqui no Brasil –, mas que têm grandes concentrações de indivíduos e que podem amplificar esse risco de existir um surto de uma infecção por bactérias que são resistentes a antibióticos. Então, acaba não tendo tratamento, e esses organismos vão acabar sofrendo muito e perdendo uma grande quantidade de indivíduos.

IHU – Esse tipo de poluição, com medicamentos, incluindo antibióticos, pode afetar as características sexuais dos animais? De que ordem seriam essas alterações?

Alexander Turra – Sim. O efeito pode ser na determinação das características sexuais secundárias nos organismos. Isso dependerá muito do tipo de organismo e de hormônio que está sendo liberado na área. Os anticoncepcionais, por exemplo, vão acabar afetando os ciclos desses organismos, especialmente no que se refere ao sistema reprodutivo feminino, levando a um desbalanço na produção de ovos no caso de peixes.

No caso dos invertebrados a lógica se aplica, mas a magnitude dependerá fortemente de quanto temos desse produto na água, qual tipo desse produto e qual organismo que está sendo afetado. Podemos ter processos de feminilização ou de masculinização desses organismos que estarão expostos a esses medicamentos.

IHU – Como isso afeta a fauna mais diretamente?

Alexander Turra – De forma geral, temos os fármacos ou esses poluentes emergentes, como medicamentos e drogas, afetando diferentes aspectos da vida desses organismos e o funcionamento do seu corpo, mexendo com o metabolismo e a homeostase. Dentro desses efeitos, há os desbalanços hormonais que terão efeitos muito fortes nas características sexuais e na própria reprodução desses organismos.

Mas também há efeitos que desembocam e têm consequências na resistência das bactérias aos mecanismos de defesa desses organismos e que se tornarão bactérias muito potentes. Assim como existem algumas moléculas irão afetar a capacidade desse organismo de se relacionar com o ambiente, podendo perder a capacidade de nadar, de perceber o entorno e, com isso, ficar mais vulnerável a predadores e não ter tanta capacidade de se alimentar.

IHU – Como evitar que isso aconteça? O tratamento de esgotos é a única alternativa?

Alexander Turra – A forma de evitar esse tipo de contaminação passa, fortemente, por uma sequência de ações. Obviamente, a primeira delas é que deveríamos estar tomando menos remédios, isto é, deveríamos estar menos doentes para precisarmos de menos remédios.

Especialmente quando falamos em antidepressivos, vivemos uma epidemia de problemas psicológicos e mentais que têm levado as pessoas a tomarem medicamentos como esses. A consequência é que parte desses produtos sai pela urina, vai para o esgoto e o sistema de tratamento de esgoto não tem uma eficácia para a retirada dessas moléculas. Pensando dentro da lógica circular e de maneira mais holística, é fundamental pensarmos nas causas que estão nos levando a ficarmos doentes demais, que está destravando esses problemas e como podemos melhorar.

É claro que essa é uma parte bastante complicada de equacionarmos, mas temos que falar objetivamente dos sistemas de tratamento de esgoto. É preciso desenvolver tecnologias para que essas moléculas sejam retiradas [dos cursos d’água]. Já há tecnologias, mas elas ainda não foram escaladas a ponto de estarem totalmente implementadas nas estações de tratamento de esgoto do país. Além disso, boa parte da população brasileira não tem acesso à coleta e ao tratamento de esgoto oferecidos como serviço público. Então, há um problema maior ainda que precisa ser equacionado.

IHU – O senhor é coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano. Poderia explicar do que se trata o órgão, quais seus objetivos e quem o compõe?

Alexander Turra – A Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano foi criada em 2018 na Universidade de São Paulo – USP, junto aos Institutos Oceanográficos e de Estudos Avançados, como uma forma de fortalecer uma agenda de oceano que não necessariamente era trabalhada de forma consistente na universidade, que é a agenda que busca integrar a ciência, o conhecimento, com a tomada de decisão e a universidade com a sociedade; esse é o nosso mote. A missão da Cátedra é produzir e integrar ciência de forma combinada e conjugada com diversos atores sociais, dentro do que chamamos de codesenho de processos e arranjos de governança para se tomar decisões e mudar a realidade.

Temos também uma pegada muito forte em cultura oceânica. Organizamos o maior evento do mundo na área, que é a São Paulo Ocean Week, que, em 2024, teve um alcance de três milhões de pessoas – incluindo TV, redes sociais e público presencial. Foi um enorme movimento de integração da sociedade na cultura oceânica. Além disso, acabamos de publicar a história em quadrinhos da Turma da Mônica dedicada aos oceanos. Será a primeira das seis edições anuais até o fim da Década dos Oceanos [2021-2030].

A Cátedra não reinventa a roda, mas ajuda a direcionar o que tem sido feito de ciência no sentido de promovermos contribuições para mudar a realidade do oceano.

IHU – O Brasil sediará a COP30 em novembro deste ano. Qual a necessidade e a importância de o país assumir um protagonismo global na proteção dos oceanos como parte importante da agenda climática? Como fazer isso?

Alexander Turra – O Brasil está sediando a COP30, que é a COP do clima e é fundamental que o oceano esteja presente nas discussões, uma vez que o oceano é o grande aliado da humanidade na regulação climática. Ele faz a Terra ser habitável: se não existisse o papel do oceano, a Terra seria muito mais quente. O nexo Oceano-Biodiversidade-Clima é fundamental de estar presente nas COPs. Na medida em que o Brasil assume o protagonismo dessa agenda de oceanos, isso naturalmente transborda para a COP.

Oceano não fazia parte da primeira carta do embaixador André Correa do Lago em relação à COP. Mas, a partir da segunda, com manifestações e argumentações, incluindo da Cátedra e de parceiros, conseguimos fazer com que esse assunto permeasse um pouco mais amplamente a temática da COP.

Durante a COP há a possibilidade de termos um pavilhão oceânico, que vem ocorrendo nas últimas COPs, organizado pelo Instituto Oceanográfico de Woods Hole (WHOI) e pelo Scripps Institution of Oceanography com parceria com o governo federal e do estado do Pará, com o apoio da Cátedra.

Belém é um lugar simbólico, no qual temos o encontro das duas Amazônias: a Amazônia Verde e a Amazônia Azul. Nesse sentido, o nexo oceano-clima acaba ficando mais explícito e é um local perfeito para trabalharmos essa temática. O papel do oceano, para os cientistas, está colocado há muito tempo nessa agenda global, incluindo a agenda de clima, mas precisamos avançar um pouco mais e consolidar essa presença nos discursos dos tomadores de decisão.

A declaração do presidente Lula, aqui na Conferência da ONU sobre os Oceanos, acabou de enfatizar que o oceano efetivamente entrou na agenda nacional, abrindo uma janela de oportunidades para amplificarmos a discussão e os compromissos do Brasil em relação a essa temática.

IHU – Por que os oceanos são centrais para as questões climáticas contemporâneas, tanto no que toca a questão do aquecimento global quanto em relação à biodiversidade terrestre?

Alexander Turra – O oceano tem um papel central na discussão climática por várias razões. Primeiro, porque o oceano tem uma função na regulação do clima: o gás carbônico que aumenta na atmosfera por causa das ações humanas é dissolvido no oceano, ele penetra na água e o oceano acaba retirando esse gás da atmosfera. Parte do gás carbônico é assimilado pelos fitoplânctons e por produtores primários, vira matéria orgânica e é estocado no fundo do mar. Parte desse CO2 passa por uma série de reações químicas e acaba levando a uma acidificação da água do mar, o que é um grande problema – silencioso – que tem aumentado no mundo. Mas esse é um papel que o oceano cumpre na redução do efeito estufa. Além disso, o oceano troca calor com a atmosfera e ajuda a diminuir um pouco a temperatura da atmosfera. Esse é o papel do oceano como regulador climático.

O oceano acaba sofrendo as consequências das mudanças [climáticas] e precisamos tomar cuidado com isso, porque temos os efeitos na biodiversidade, nas atividades humanas, há ondas de calor nos oceanos, a própria acidificação, decorrente da assimilação do gás carbônico. Há também o aumento da frequência e da magnitude de eventos extremos, que afetam não só a biodiversidade, mas também as comunidades costeiras com inundações e eventos que têm efeitos catastróficos na população humana.

O oceano tem um terceiro papel: ele nos ajuda a fazer a transição para uma economia de baixo carbono na medida em que temos fontes de energia renovável no oceano, sendo as energias solar e eólica, mas também marés, ondas e gradientes de salinidade e temperatura. Esses dois últimos precisam ser explorados a ponto de ter um aumento da escala da sua utilização.

IHU – O senhor acompanhou a comitiva brasileira na Conferência de Nice sobre os oceanos. Qual a importância e a dimensão do Tratado de Proteção da Biodiversidade Marinha em Áreas além da Jurisdição Nacional?

Alexander Turra – A importância do Tratado de Jurisdições Internacionais em Nice é muito grande. Tínhamos uma expectativa de que haveria um número suficiente de países ratificando o tratado para ele entrar em vigor, mas isso não aconteceu. Ainda há uma expectativa de que outros países assinem; é necessário, pelo menos, mais 60 países para que o tratado possa entrar em vigor.

Ele é fundamental porque cria instrumentos importantes para que possamos gerenciar a biodiversidade nessas áreas, que são áreas coletivas da humanidade, para que se possa fazer com que os benefícios dessa eventual exploração da biodiversidade (seja para recursos genéticos, seja para o consumo humano) sejam distribuídos de forma equitativa. Infelizmente, não entrou em vigor ainda, mas a expectativa é que até o fim do ano tenhamos 60 países para colocar ele em prática e com o tempo outros países venham a ratificar o tratado.

No Brasil, depende da aprovação do Congresso. E isso, dentro de um Congresso pouco receptivo à pauta ambiental, podemos imaginar que terá uma grande resistência.

IHU – Durante a Conferência da ONU sobre Oceanos, o Brasil não assinou o Apelo de Nice por um tratado ambicioso contra a poluição por plásticos. Como avalia o “Apelo” e a posição do Brasil?

Alexander Turra – O Apelo de Nice para o combate à poluição plástica é um movimento awareness and advocacy que a sociedade civil tem feito tem o seu valor porque traz elementos adicionais para pressionar os países por um tratado mais ambicioso.

O Brasil não assinou, não porque não concorde com os termos, mas porque, para o país apoiar oficialmente qualquer tipo de manifestação ou documento, precisa tramitar pelos canais oficiais, pelo Itamaraty etc. Então, há toda uma avaliação e aí o Brasil se posiciona e não quando chega uma carta ao longo de um evento. O Brasil não se posicionaria em outras ocasiões em nenhum tipo de pleito ou tema dessa forma.

O assunto foi colocado de forma equivocada na mídia, parecendo que o Brasil não está preocupado com a agenda do lixo no mar, sendo que o Brasil é um dos principais países que trabalha na questão da pesquisa, da educação ambiental e da cultura oceânica, com instrumentos bastante claros e robustos para combater a poluição ambiental por plástico.

O Brasil está lançando a Estratégia Nacional Oceano sem Plástico em sintonia com o teor do tratado. Além disso, temos a Rede Oceano Limpo com oito estados costeiros mobilizados para criar políticas e redes estaduais para de combate ao lixo no mar. É mais uma questão de procedimentos do que com posicionamentos. Isso tem sido veiculado na mídia de forma equivocada, uma vez que o Brasil não ter assinado o documento oficialmente foi apenas por não ter tramitado oficialmente a ponto de o país poder assinar oficialmente.

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